Escolas indígenas colocam os povos originários como agentes de sua própria educação

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Rodrigo Flores. Para acessar, clique aqui.

Cidadania | Direito garantido na Constituição, a educação indígena leva em conta os saberes tradicionais e a cultura de cada comunidade

*Foto: Crianças estudam em escola indígena localizada no município de Redentora, na Terra Indígena Guarita,
no noroeste gaúcho (Crédito: Flávio Dutra/Arquivo JU – 3 de setembro 2012)

Em um lugar quase ao fim da cidade, onde Porto Alegre se confunde com Viamão, uma placa do Governo Federal indica: Reserva Indígena. Vê-se um galpão grande de madeira, com grafismos nas paredes e crianças correndo por toda a parte. Desde pré-adolescentes até os pequenos, conversam em mais de um idioma – além do português, aqui e ali está presente o kaingang.

Dentro do galpão, quadros negros nas paredes. Na frente de cada um deles estão as cadeiras verdes, características de escolas públicas. Afinal, é disso que se trata o espaço: uma escola. Mas essa tem suas particularidades: está dentro de uma aldeia indígena e todos os seus alunos e parte dos professores são kaingang. É a Escola Estadual Indígena Fag Nhin.

Em pouco tempo os alunos voltam para o galpão, se sentam nas cadeiras e os professores começam suas aulas. As matérias, que são ministradas em português, envolvem desde matemática até o idioma kaingang e a disciplina de Valores Culturais. Graduanda em Artes Visuais pela UFRGS, Vera Kaninka é quem ministra as disciplinas que, segundo ela, “trabalham as nossas origens, as nossas marcas, o artesanato, as vestimentas, os alimentos, as ervas medicinais, e também as nossas crenças e a religião”.

Mas nem sempre é assim. A própria história de Vera ajuda a entender como funciona a educação formal para muitos indígenas. Ela conta que, na aldeia em que cresceu, localizada “bem no interior, no meio do nada”, a escola só fornecia até a terceira série – para terminar os estudos, teve de ir para uma instituição fora da aldeia. Esse processo de saída da comunidade ainda é parte da vida estudantil dos kaingang. A Escola Fag Nhin conta com o Ensino Fundamental completo, mas o Ensino Médio precisa ser feito em outra instituição. Além disso, alguns pais preferem matricular seus filhos em escolas não indígenas desde o início, mesmo tendo uma disponível.

A educação indígena, que leva em conta os saberes tradicionais e a cultura de cada povo, é um direito garantido na Constituição e legislado em 2002. Por conta da diversidade que existe entre os muitos povos, as escolas e sua implementação nas aldeias têm suas particularidades. Laércio Gomes, estudante de História na UFRGS, teve uma experiência diferente como mbyá-guarani – realizou toda a sua formação básica dentro de aldeias desde o Ensino Fundamental até o Médio.

Entre os guarani, o português é inserido apenas aos cinco anos de idade, quando entram na escola. Isso reflete as singularidades dos povos: nas aldeias Mbyá-Guarani a conversa do dia a dia é na própria língua, enquanto entre os Kaingang o português é predominante, e o idioma nativo fica restrito ao ambiente familiar dentro das casas.

O idioma é uma das dificuldades dos professores não indígenas nas aldeias. Para contornar essa situação, é preciso “desenvolver diálogos por meio de desenhos, representações corporais e expressão corporal para alunos que não falam português”, como diz a professora Karen Tauceda, do Câmpus Litoral Norte (CLN) da UFRGS. O curso de Licenciatura em Educação no Campo, desenvolvido no CLN, aborda outras perspectivas pedagógicas na sala de aula de aldeias Mbyá-Guarani. Os professores utilizam formas de comunicação não alfabéticas, usando a natureza ao redor e a cultura dos próprios alunos para ensinar. Para Karen, o resultado é positivo, com alunos mais interessados e engajados.

A forma como o ensino se insere nas diferentes sociedades dialoga com a visão de cada povo sobre educação. Laércio conta sobre o seu povo: “A gente tem que partir do princípio da filosofia da educação: a filosofia Guarani parte de um princípio que a educação se deve ao todo, ao coletivo. A educação de uma criança envolve todo o coletivo da comunidade. Não é necessário um espaço restrito para aprender coisas ou aprender sobre a cultura indígena. A educação indígena, enfim, é do coletivo e principalmente dos anciãos, das lideranças nas rodas de conversa, na vivência na própria comunidade”.

Importância das escolas e sua conquista

As escolas são uma necessidade para as comunidades no momento em que atuam para preservar a cultura e os saberes indígenas e para garantir o acesso das crianças indígenas à educação formal, visto que muitas vezes as aldeias estão longe dos centros urbanos. Infelizmente nem sempre isso é possível. Na Escola Fag Nhin, os alunos são apenas uma parcela das crianças da aldeia; muitas outras precisam frequentar escolas fora dali.

O motivo é justamente a falta de instalações apropriadas. O prédio que deveria servir de escola foi danificado em um temporal e tem problemas estruturais. O prédio de tijolos, com salas de aula, pátio para as crianças brincarem e paredes com pinturas de grafismos, está fechado e passando por reformas. João Maurício Farias, diretor da escola, conta que as instalações estão fechadas há quase quatro anos. “Foi necessária muita mobilização da comunidade para se conseguir a reforma do prédio – as lideranças foram à Secretaria de Educação exigir o investimento.”

A luta faz parte do cotidiano dos povos indígenas. Apesar de as escolas com ensino bilíngue e respeito aos conhecimentos tradicionais estarem garantidas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, isso não significa que sua implementação seja sempre cumprida. Mestre em Educação pela UFRGS, Woie Patté, do povo Xokleng, lembra que até o início dos anos 2000 o ensino nas aldeias abrangia apenas até a quarta série. Foi como consequência das demandas dos povos originários que se expandiu até o Ensino Médio completo – mesmo assim, não em todas as aldeias.

Seguindo os estudos

Mesmo ao saírem para cursar uma educação superior fora da aldeia, muitos indígenas pretendem usar os conhecimentos adquiridos de volta na comunidade. Woie, que pesquisou as Escolas Indígenas em seu mestrado, explica essa visão: “Eu trago isso, na minha dissertação, como ferramenta de luta. Hoje nós [indígenas] na Universidade fazemos esse mesmo caminho de usar, buscar o conhecimento, buscar a nossa graduação e a pós-graduação como resultado dessa luta, de usarmos essa ferramenta ao nosso favor”.

Laércio conta a função da graduação para os guarani: “A gente tem essa noção também de que a gente vem aqui, a gente se forma, mas tem que levar essa experiência e adaptar de acordo com as comunidades, porque, por exemplo, o curso de História é totalmente eurocêntrico. Eu digo nesse sentido, adaptar, falar da história indígena, falar da importância na formação da sociedade brasileira, e não enfatizar tanto o passado recente da colonização. Trazer os povos indígenas aqui como sujeitos históricos”.

A educação não é vista como forma de se integrar à sociedade não indígena, mas de se defender dela. Woie coloca a importância para a autonomia das comunidades: “Precisamos formar advogado, precisamos formar professor, precisamos formar médico, precisamos de outras áreas afins ainda para fazer nossas defesas e voltar para a terra indígena de novo para fazer uma defesa, um advogado fazer uma defesa de um território indígena, antropólogo para fazer laudo de defesa, médico para atender, professores indígenas para ensinar as crianças indígenas”.

As escolas e a educação não são parte de um desejo individual para a conquista de títulos, mas de um projeto coletivo, de povos diversos que buscam aprender e absorver o que há de útil, justamente daqueles que tentaram tomar tudo deles. A educação é uma ferramenta para preservar a sua existência.

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