Publicado originalmente em Revista Piauí por Camille Lichotti. Para acessar, clique aqui.
Pesquisa com base em modelo matemático mostra que reabrir colégios, mesmo com alunos em dias alternados, eleva número de casos na comunidade escolar e fora dela
Mesmo com turmas fracionadas e horários reduzidos, a reabertura de escolas pode aumentar em até 270% o número de casos de Covid-19 na comunidade escolar. É o que mostra um estudo conduzido por pesquisadores de seis universidades brasileiras simulando, a partir de modelos computacionais científicos, um protocolo de aulas presenciais em dias intercalados, com turnos de duas horas e turmas separadas em dois grupos. O objetivo era quantificar o efeito da reabertura escolar na dinâmica local da epidemia de Covid-19, comparando os resultados desse modelo com o do cenário de fechamento completo das escolas. Além de quase triplicar os casos da doença entre alunos, professores e demais funcionários em menos de três meses, a estratégia testada resultou em um aumento de 52% nos casos de Covid-19 fora do ambiente escolar, graças ao contágio cruzado propiciado pelos contatos escolares.
O protocolo analisado é o mais comum nos estados que autorizaram a volta presencial das aulas em 2021. Mas, segundo o estudo, ele se tornará “claramente inviável em meio a uma crise sanitária”. É o caso do Plano São Paulo, que permitiu o funcionamento das escolas estaduais em fevereiro deste ano para todas as etapas de ensino, com número reduzido de estudantes. Até 6 de março, menos de um mês depois da reabertura, foram notificados 4.084 casos positivos localizados em 42% das escolas reabertas no estado, além de 19 mortes confirmadas entre servidores e duas entre alunos. Um levantamento da Rede Escola Pública e Universidade (Repu) mostrou que a incidência da doença nas escolas paulistas foi o triplo da observada no resto do estado entre os adultos.
Em abril, o governo de São Paulo antecipou a vacinação para profissionais de educação – medida que foi seguida pelo Ministério da Saúde na última quinta-feira (27). A pasta liberou a imunização de trabalhadores do setor para todo o Brasil, mesmo sem uma diretriz nacional clara de condução de aulas presenciais. Mas as simulações científicas mostraram que só a imunização de funcionários também não é suficiente para barrar a cadeia de contágio em ambiente escolar. O cenário de aulas em regime reduzido e com profissionais imunizados ainda aumenta em 178% o número de casos na população escolar, quando comparado à situação de fechamento total. É um aumento menor do que o observado sem vacinação – o que demonstra a importância dos imunizantes –, mas ainda oferece riscos à comunidade local.
Na simulação feita pelos pesquisadores, o protocolo mais efetivo para proteger o grupo escolar – e a cidade como um todo – é o de reabertura com monitoramentos e fechamentos intermitentes. Funcionaria assim: além de turmas fracionadas e horários reduzidos, medidas já aplicadas hoje, os estudantes seriam testados e isolados por duas semanas quando apresentassem sintomas ou tivessem algum parente infectado. Caso um aluno tivesse o teste confirmado, toda sua turma seria suspensa por catorze dias – e a escola inteira seria fechada por uma semana quando mais de um grupo tivesse estudantes infectados. No modelo matemático que segue todas essas exigências, os pesquisadores observaram um aumento de apenas 18% nos casos de Covid-19 na população escolar – e de 3% no resto da cidade.
O estudo reforça que estratégias de monitoramento são as mais importantes para conter o avanço da Covid-19, inclusive nas escolas. O matemático Tiago Pereira, professor da USP e coordenador do projeto, lembra que a adesão é parte fundamental dessas medidas. “Como é um protocolo ativo, é preciso que as famílias também estejam empenhadas em seguir as propostas”, diz. Mais que isso: para o protocolo funcionar é fundamental que os responsáveis comuniquem à escola caso alguém da família esteja infectado – ainda que isso signifique a suspensão das aulas. Mesmo assim, os professores argumentam que os dados encontrados são robustos e ainda que apenas metade dos casos positivos sejam notificados, o aumento nos números da doença ainda permanece baixo com as regras de intermitência propostas.
Em nota, o Observatório Covid-19 BR recomendou que as escolas continuassem fechadas justamente porque a maioria delas não oferece condições estruturais e funcionais para que as medidas de proteção sejam plenamente seguidas. “Falta a implantação de estratégias de testagem periódica e identificação de contactantes, e falta também orientação à comunidade escolar sobre os protocolos”, alertaram os especialistas do Observatório.
Há ainda outro revés: o protocolo mais seguro – e mais restrito – requer que as escolas fechem em média 40% dos dias. “Considerando ainda o fechamento parcial de turmas, cada estudante teve em média duas horas e meia de aula por semana”, diz a nota. O Brasil foi o quinto país com maior tempo de escolas fechadas desde o começo da pandemia – atrás apenas de Panamá, El Salvador, Bangladesh e Bolívia. Segundo o relatório da Unicef, mais de 44 milhões de estudantes brasileiros perderam praticamente todo o tempo de educação presencial do começo da pandemia até fevereiro deste ano.
As consequências já são visíveis: o governo de São Paulo estima que levará onze anos para recuperar a aprendizagem perdida em Matemática durante a pandemia nos anos iniciais do ensino fundamental. Segundo uma pesquisa realizada pela Secretaria de Educação, estudantes da rede estadual regrediram e perderam habilidades que já haviam adquirido. Hoje, um aluno paulista de dez anos de idade tem desempenho pior do que ele próprio tinha aos oito. Outra questão vai além do desempenho: em áreas muito pobres, as refeições feitas na escola são fundamentais para os alunos da rede pública – isso quando não são a única fonte de alimentação.
Nas simulações, os pesquisadores brasileiros concluíram que o risco de transmissão nas comunidades escolares é alto, em especial porque envolve interações em ambientes fechados. Para modelar as opções de reabertura escolar, eles consideraram aulas em salas fechadas e sem circulação de ar, como é a situação da maioria das escolas públicas do Brasil. As análises foram realizadas com o simulador viral Comorbuss, idealizado por um especialista em matemática computacional. O modelo foi desenvolvido em parceria com professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), na USP, para analisar a propagação da Covid-19. Através de dados sociodemográficos, os especialistas conseguem simular os contatos produzidos pela dinâmica social da comunidade e medir os efeitos de cada serviço nos números da pandemia.
No modelo, cada agente tem uma identidade, rotina e representação biológica e social próprias. É como jogar The Sims: os pesquisadores inserem dados epidemiológicos reais, simulam o comportamento da comunidade e, no final, quantificam o número de doentes. Para medir o efeito das aulas presenciais, eles utilizaram informações das duas maiores escolas públicas de Maragogi, em Alagoas. Ao todo, são mais de 2 mil atores sociais envolvidos, que representam 34% da população escolar da região.
A escolha da cidade é justificada: Maragogi representa a realidade média dos municípios brasileiros, tanto em parâmetros demográficos quanto econômicos. “Essa cidade representa uma média, mas o que importa mesmo para os resultados finais é a prevalência da Covid-19”, explica Pereira. “E nisso a maior parte dos municípios está basicamente igual.” Dessa forma, os resultados encontrados servem como referência para o resto do país.
Mas a situação na vida real pode ser ainda pior que a verificada nas simulações. Isso porque o resultado que mostrou o aumento nos casos de Covid-19 na população escolar foi obtido em cenários calibrados para a primeira onda da doença em Maragogi – entre maio e julho de 2020. Significa que os pesquisadores utilizaram dados da doença relativos àquele momento da epidemia. “Isso não leva em conta as novas variantes e casos de reinfecção, por exemplo”, diz Pereira. Ainda assim, as conclusões do estudo servem como uma base para decifrar os principais entraves da reabertura das escolas.
O próximo passo é testar concretamente a efetividade do protocolo sugerido nas duas escolas alagoanas que serviram de modelo para a simulação. Os pesquisadores querem investigar se o fechamento intermitente baseado em estratégias de monitoramento é factível – e qual o impacto real dessas medidas na dinâmica da pandemia. Para eles, o ideal é que os serviços de saúde e educação sejam integrados, inclusive para escolas privadas – o que não acontece. Sobre os riscos de uma reabertura desorganizada, eles são categóricos. “A retomada de aulas presenciais sem que condições seguras sejam garantidas, e sem o treinamento de suas equipes em protocolos de monitoramento, significa assumir grandes riscos para o aumento de infecções e perda de vidas”, escrevem.