Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio por Walter Pinto e foto Alexandre de Moraes. Para acessar, clique aqui.
Eliene dos Santos Rodrigues Putira Sacuena é indígena, da etnia Baré, e faz parte de um grupo em expansão nas universidades públicas, especialmente na UFPA: os indígenas estudantes com formação acadêmica. Formada em Biomedicina, Putira Sacuena é mestra em Antropologia, na área de Bioantropologia, e cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/IFCH) da UFPA. Integra a Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (ABIA), fundada por indígenas com formação acadêmica em Antropologia, os quais buscam congregar suas expertises às experiências dos movimentos indígenas e projetos de autodeterminação de territórios. Ela também assessora a Associação dos Povos Indígenas da UFPA e atua na equipe de pesquisadores do Projeto Estudo de prevalência, vigilância epidemiológica e biomarcadores de infecção por SARS-COV-2 em áreas urbanas e Indígenas no Pará. Nesta entrevista, ela aborda a situação dos povos indígenas da Amazônia em meio à pandemia de Covid-19. Explica o quadro epidemiológico e fala sobre a exclusão dos índios nas cidades, além de ressaltar o protagonismo das mulheres indígenas contra o machismo, o racismo e o genocídio. Sintetiza essa luta de forma inequívoca: “decidimos resistir para continuarmos existindo”.
Os povos indígenas no início da pandemia
Quando tivemos notícia do surgimento dos primeiros casos de Covid-19 no final de 2019, achávamos que não chegaria até os nossos territórios. Mas, tão logo a epidemia chegou ao Brasil, tivemos a certeza de que seria trágica, não seria nada fácil diante da situação criada pelo governo que temos no país. Além disso, nossa cultura, baseada na coletividade, nos deu a noção de vulnerabilidade dos povos indígenas diante da pandemia. O modo de vida coletivo, na alimentação, nos rituais e nas rodas de conversas, facilitaria a contaminação rapidamente, principalmente com viagens às cidades por causa do auxílio emergencial. Por isso os povos indígenas lutaram muito para a implantação de um subsistema de saúde dentro dos seus territórios, para atuar como nossa segurança.
Dados epidemiológicos
Os dados epidemiológicos dos povos indígenas são divulgados pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), porém são incompletos por se concentrarem nos indígenas aldeados. Os índios em contexto urbano foram tornados invisíveis, nessa estatística, pelo racismo estrutural. Mas a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) vem trabalhando para suprir os números com base em dados coletados nas próprias organizações indígenas, nas quais os índios em contexto urbano contam. A mortalidade para nós, indígenas, não é tratada como números, e sim como parte das nossas histórias. São as nossas bibliotecas, os nossos patrimônios intelectuais que se perdem. Os hospitais não estão preparados para receber essa diversidade, porém, hoje, com as lutas dos movimentos indígenas no Pará e no Amazonas, o diálogo com os estados resultou na destinação de leitos específicos para os povos indígenas.
Vacinação
A inclusão dos povos indígenas entre os grupos prioritários da vacinação foi o resultado da luta dos movimentos indígenas e de parceiros que nos reconhecem como povos originários. Mas ela é específica dos povos indígenas em contexto de aldeamento. Está sob a responsabilidade dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os DSEIs, que atuam nos territórios indígenas. Algumas etnias ainda não foram 100% vacinadas. Lá também ocorre a proliferação de fake News. A intervenção de algumas religiões nas aldeias está fortalecendo a “não vacinação”. Mais uma vez, a religião se manifesta de forma concreta como um processo colonizador que nos mata, tal qual um genocídio, um etnocídio. Estamos em um governo totalmente genocida, que age diretamente em nossas cosmologias indígenas. Em nossas culturas, acreditamos que os pajés se transformam em animais das florestas e dos rios. Então, de fato, não é difícil para os povos indígenas acreditarem que se pode “virar jacaré”. Isso faz parte das nossas cosmologias, como disse Uwira Xakriaba, em sua qualificação de doutorado.
Indígenas em contexto urbano
Por outro lado, os povos indígenas em contexto urbano, segmento no qual me incluo, fomos tornados invisíveis pela política que vem sendo adotada no Brasil. É uma política que nega a possibilidade de atendimento aos indígenas deslocados para a cidade. Nós, indígenas estudantes que estamos na cidade, somos considerados “índios urbanos”, epíteto que demonstra racismo de diversas ordens. Estar fora de nossos territórios é uma contingência e um desafio. A violência aos nossos direitos é de grande proporção. Diminuir essa situação é responsabilidade do Estado brasileiro. Por isso reclamamos e demandamos os nossos direitos. Além de indígenas estudantes, somos cidadãos/ãs e não podemos ser banidos/as mais uma vez.
A Covid-19 já nos fez perder muitos dos nossos parentes, especialmente as lideranças tradicionais. Agora está ceifando a vida dos mais jovens, homens e mulheres, fato que compromete nosso cotidiano. Precisamos de mais educação em saúde nos territórios indígenas, mas de uma forma que respeite as especificidades culturais de cada povo. Precisamos pensar em metodologias diferenciadas nas Amazônias. Os profissionais de saúde dos DSEIs estão fazendo um trabalho muito bonito, sabemos que nossos territórios são de difícil acesso e que a logística enfrenta grande dificuldade. Apesar de tudo, caminha-se para diminuir o impacto da Covid-19 em nossos territórios.
Prevenção e uso de máscara
Juntamente com as lideranças indígenas nas aldeias, os DSEIs estão fazendo o que podem para levar informações sobre a pandemia aos índios, mas, devido ao contexto cultural da experiência em coletividade, como disse antes, fica difícil seguir as recomendações. Vocês imaginam que nós, povos indígenas, fomos criados livres, sem nada no rosto. Sentir o cheiro das matas é fundamental. De repente, temos que usar máscaras, o que é bastante complexo. Mas as informações estão chegando e os povos indígenas já entendem que a máscara é uma maneira de proteção, usada principalmente quando se tem contato com os centros urbanos. Nós, indígenas estudantes na UFPA, juntamente com o Instituto de Ciências Biológicas, na pessoa do professor Jackson Costa Pinheiro, elaboramos cartilhas nas línguas indígenas para colaborarmos em nossas aldeias com a prevenção da Covid-19. Utilizamos uma linguagem simples e com informações essenciais para que, das crianças aos nossos anciões, todos possam acessar esses cuidados. A UFPA, por meio dos Laboratórios de Genética Humana e Médica e do Laboratório de Virologia, está realizando ações de saúde nos territórios indígenas, em colaboração com os DSEIs no Pará. Essa parceria é necessária e de grande importância para nós, povos indígenas. É o retorno à sociedade do investimento feito em educação pública.
O protagonismo da mulher indígena
Todos nós, povos indígenas, temos um papel importante em nossos territórios, mas as indígenas mulheres, nos últimos anos, estão ocupando vários lugares de lideranças. Elas estão assumindo frentes de luta contra o genocídio do seu povo. Aí estão os exemplos de Sônia Guajajara, na Associação dos Povos Indígenas do Brasil; de Nara Baré, na Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira; e de Puyr Tembé, à frente da Federação Estadual dos Povos Indígenas no Pará. O protagonismo delas ressalta o quanto estamos expostas ao genocídio que vem acontecendo em nossos territórios. A violência atinge a todos, independentemente de gênero, porém, quando se trata de indígenas mulheres, o machismo e o racismo estrutural vêm tentando nos silenciar. Mas nós decidimos resistir para continuarmos existindo.
Beira do Rio edição 159