Entrevista – Muito além do binômio mulher e homem

Publicado originalmente em Jornal Beira do Rio por Walter Pinto e Foto de Alexandre de Morais. Para acessar, clique aqui.

LGBTQIA+ traduz histórias de luta pela visibilidade e pelo direito de existir

A discussão sobre gênero, sexualidade, relação homoafetiva, orientação sexual, entre outros temas afins, está sendo tratada há mais de meio século na sociedade brasileira. Mas ganhou força, principalmente a partir da década de 1970, com o protagonismo das universidades e com os movimentos feministas. Apesar dos avanços conquistados pelos segmentos que compõem a nossa diversidade sexual, nos últimos dois anos ataques desferidos por uma parcela conservadora da sociedade buscam desqualificar essas conquistas apoiando-se em interpretação negativa, preconceituosa e desprovida de conhecimento. 

Na entrevista abaixo, a historiadora da família, da migração, do gênero e da sexualidade Cristina Donza Cancela esclarece algumas questões inseridas no debate, muitas delas ignoradas pelos críticos. Professora da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da UFPA, Cristina Cancela é investigadora integrada da Universidade de Lisboa, na qual realizou o pós-doutorado, em 2014. Entre os temas tratados na entrevista, ela fala sobre gênero, teoria queer, identidade, orientação sexual, drag queens e evolução das siglas que identificam a diversidade sexual brasileira. 

Gênero

Gênero é uma ferramenta de análise, uma categoria como costumamos dizer. Não é um tema de pesquisa específico. Qualquer tema pode ser trabalhado em uma perspectiva de gênero. Podemos, por exemplo, estudar as formas das coisas e das cores e nos perguntarmos o que nos leva a associar esta ou aquela ao feminino ou ao masculino? Por que formas redondas estão ligadas às mulheres? E, ainda, cores amadeiradas, acinzentadas e texturas como madeira e couro (como das atuais barbearias de Belém), aos homens? Assim como olhamos ao nosso redor e temos a noção de espaço, tempo e quantidade, também costumamos atribuir características femininas e masculinas às pessoas, aos corpos e olhares, às palavras e aos sentimentos. A categoria de gênero é uma perspectiva de olhar primário que atribui feminilidade e masculinidade de forma relacional e assimétrica. Sim, porque o masculino costuma ser pensado como a matriz, o modelo, o referente. E o feminino, o avesso, o outro. Basta lembrarmos que palavras no masculino, como homem público, estão relacionadas a pessoas com cargos, funções e poder. Já a mesma palavra no feminino, mulher pública, significa prostituta, um termo que tem a ver com uma profissão, mas também com um estigma. A mesma palavra tem significado diferente de prestígio ou de desvalorização quando usada no masculino ou no feminino. Ao pensarmos em gênero, devemos pensar em masculinidades e feminilidades plurais, pois as pessoas têm etnicidades, raças, classes sociais, sexualidades, idades, origens e religiões diferenciadas. Mas, a despeito de levar em conta essas diferenças, o gênero ainda acaba por centrar as pessoas no binômio Homem e Mulher.  Nos alerta que o sexo biológico tem uma história e sua percepção está marinada em papéis de gênero, mas, ainda assim, costuma pensar de forma dual.

Teoria queer 

 A teoria queer nos fez questionar o porquê de o fato de nascermos com um certo sexo biológico implica termos que sentir desejo apenas por pessoas do sexo oposto ao anatômico e ter um único comportamento e identidade. Por que, ao nascer homem, você tem que ter desejo apenas por mulheres, ter exclusivamente performance e identidade masculina? Ou seja, os chamados gêneros inteligíveis, que mantêm relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. Essa matriz heteronormativa compulsória, tão naturalizada, costuma trazer peso, dor e sofrimento, estigmatizando e matando os sujeitos que não se conformam a ela, as sexualidades dissidentes, as masculinidades não hegemônicas, as mulheres. A teoria queer nos fala de fluidez e trânsitos. Talvez por isso incomode tanto, pois nos obriga a pensarmos fora de nossas referências primárias, o que pode parecer caótico, confuso, libertador, mas não pode ser desrespeitado e eliminado. A matriz heteronormativa é uma norma, e a suposta coerência da identidade de gênero e sexual é tão “natural” quanto uma tintura de cabelo, uma prótese ou um silicone. Ela atinge também as pessoas Cis, ou seja, aquelas que se identificam com o sexo com que nasceram, como uma pessoa que nasce com o sexo biológico feminino e se identifica com o gênero feminino. 

Todos, todas, todes

 Em graus, pesos e consequências diferentes, a matriz heteronormativa não é uma questão apenas das minorias sociais, ela é uma questão que oprime todos, todas e todes. Ah! O todes pode deixar a frase mais longa, o discurso mais truncado, uma sensação de “onde vamos parar com isso”, “agora inventam de tudo”, mas não podemos esquecer que linguagem é poder e que, às vezes, a unidade cerceia a diferença que precisa ser marcada para não ser invisibilizada.

Identidade e orientação sexual 

O conhecimento do sexo e do corpo tem uma história, carrega percepções diferenciadas no tempo e nas sociedades. Talvez muitos não saibam, mas, durante séculos, acreditava-se que o corpo e os órgãos masculinos e femininos eram iguais, havia um único esqueleto para representar homens e mulheres, no entanto o que no homem estava para fora (testículos e pênis), na mulher, estava para dentro (ovário e trompas). Por se acreditar serem os mesmos, Galeno, médico e filósofo, atribuía ao ovário o mesmo nome que dava aos testículos, Orcheis. A percepção atual do modelo corporal duplo é bem recente, e não algo natural, existente desde tempos imemoriais… 

Transexuais

A sexualidade é uma orientação que a pessoa constrói em sua trajetória de vida. Se uma pessoa nasce com o sexo biológico feminino e possui uma identidade de gênero masculina, ela é um homem. Isso não significa que ela é homossexual. Identidade de gênero é diferente de orientação sexual. Ele é um homem e, caso sinta desejo por outros homens, aí sim, sua orientação é homossexual, entretanto, se o desejo for por uma mulher, ele é um homem com orientação heterossexual. Ser um homem trans ou uma mulher trans tem a ver com identidade de gênero e não com orientação sexual. 

Drag Queens, uma performance

Algumas vezes, as Drag Queens e Drag Kings são classificadas como pessoas trans. Ser Drag não é identidade de gênero ou orientação sexual, tem a ver com performance artística. A pessoa se veste com roupas relacionadas ao outro sexo temporariamente, monta um personagem artístico. A Drag pode ser uma pessoa Cis, homossexual ou heterossexual, essas identidades de gênero e orientação sexual são independentes de sua performance Drag.  

Evolução das siglas 

As classificações de denominação também têm sua trajetória. Na década de 1980, usava-se o termo GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). As mulheres lésbicas questionaram o fato de, até mesmo no movimento de minorias sociais, o L ficar atrás do G. Assim, passou-se a falar no movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis), ao que se somaram, ao longo dos anos, outras identidades de gênero e sexuais, que hoje se traduzem no LGBTQIA+, incorporando pessoas trans, queerintersex, assexuais e mais… pansexuais, agênero. Algumas pessoas ouvem essas expressões com riso de canto de boca, incredulidade, desprezo ou intolerância, mas cada letra dessas tem uma história de luta e de reconhecimento pela visibilidade e pelo direito de existir. 

Beira do Rio edição 158

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