‘A gente precisa sair dos nossos limites, dos nossos muros das universidades, e dialogar direto com a sociedade’
Ana Regina Rêgo fala sobre ‘A Seta do Tempo’, seu novo livro sobre plataformas, inteligência e desinformação, a ser lançado esta semana no Rio.
A jornalista, pesquisadora e professora Ana Regina Rêgo lançou nesta semana seu mais recente livro, “A Seta do Tempo: Plataformas, Inteligência Artificial e Desinformação”, publicado pela Editora Mauad X. A obra traz uma análise profunda sobre como as plataformas digitais e a inteligência artificial têm transformado o cenário da comunicação, tornando a desinformação e os discursos de ódio não apenas fenômenos cotidianos, mas também produtos altamente lucrativos para as grandes empresas de tecnologia, ao mesmo tempo que ameaçadores da própria democracia.
Combinando reflexão filosófica e resultados de extensas pesquisas, Ana Regina explora as complexas relações entre tecnologia, mercado e sociedade, evidenciando o poder sem precedentes que as big techs detêm sobre a população e todo o planeta. O livro reúne textos elaborados a partir de artigos acadêmicos e conferências que investigam a realidade de vários pontos de vista: do modelo de negócios das plataformas, da evolução da tecnologia, do impacto da desinformação no tecido social ao longo do tempo e como este conjunto de interesses políticos, econômicos e tecnológicos ameaça regimes democráticos pelo planeta.
“Tenho medo do futuro como qualquer jornalista ou cidadã comum que se vê atravessada pelos fenômenos digitais, políticos e sociais de um tempo que, tanto quanto outros do passado, se apresenta sombrio”, escreve a autora. Ela aponta para a urgente necessidade de um gerenciamento ético e responsável dessas ferramentas para garantir o resgate da integridade informacional e redução dos danos que a desinformação e os discursos de ódio vêm causando no debate público em vários países.
Fundadora da Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), Ana Regina é professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutora em Processos Comunicacionais pela Universidade Metodista de São Paulo, com estágio na Universidad Autónoma de Barcelona, e pós-doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela está finalizando um novo pós-doutorado em Comunicação e Desinformação na Universidad de Sevilla. Tem cerca de 15 livros publicados, entre eles “A construção intencional da ignorância: o mercado das informações falsas”, em parceria com a professora Marialva Barbosa, também editado pela Mauad X.
Além de jornalista, você é pesquisadora, e vem se dedicando a estudar o fenômeno da desinformação há mais de uma década, já tendo publicado diversos livros sobre o tema. Na sua análise, quais as principais contribuições que “A Seta do Tempo” oferece aos estudos deste fenômeno?
Ana: “A Seta do Tempo” é uma tentativa de furar a bolha acadêmica. Ele é composto de 12 textos, que são pesquisas que a gente realizou nos últimos quatro anos. São pesquisas, algumas publicadas em revistas científicas, mas essas revistas científicas, em geral, só quem tem acesso somos nós, os pesquisadores que as conhecemos. A sociedade em geral, pesquisadores de outras áreas não têm acesso, até porque desconhecem. A ideia é que a gente extrapole esse ambiente em que a gente discute, pesquisa, investiga e debate. São os pares que leem o nosso trabalho, que contribuem com o nosso trabalho nos eventos, nos encontros, nas palestras etc. Mas a ideia do livro é que ele seja uma fonte mais comum de consulta, utilizada não só pelos pesquisadores, mas pela sociedade e, a partir dele, que essas investigações que a gente tem feito possam sair desse ambiente e ganhar a sociedade. Porque a gente precisa sair dos nossos limites, dos nossos muros das universidades e dialogar direto com a sociedade. E um desses modos é o livro, então acho que essa é a principal ideia.
O livro olha para a desinformação a partir da perspectiva temporal, problematizando o próprio conceito de contemporaneidade e revelando as discrepantes experiências temporais simultâneas. De onde surgiu a ideia de abordar a desinformação sob esse viés cronológico?
Ana: Além da Rede Nacional de Combate à Desinformação, que eu criei em 2020 e que é uma rede que hoje extrapola o Brasil, que tem participantes da América Latina e de outros continentes, eu participo também de uma outra rede, que é a Rede de Historicidade dos Processos de Comunicação. Também trabalho muito com perspectivas históricas, já presidi a Associação Brasileira de Pesquisadores de História Da Mídia (ALCAR), então sempre que eu olho para um fenômeno, eu vejo nele perspectivas históricas, filosóficas e antropológicas. Então a ideia é ler esse momento a partir das dimensões e dos atravessamentos do tempo, mas dissecando o nosso momento, vendo o que a gente tem por trás daquilo que o Reinhart Koselleck chama de “estratos do tempo”, as camadas desse tempo. E aí a gente traz esse diálogo inicial a partir de uma perspectiva em que tempo e historicidade dialogam, ou seja, uma perspectiva humana do tempo, para depois entrar nas temáticas específicas. Então o livro se divide em três partes principais, e essas partes estão sempre nesse diálogo com o tempo, a ética, o próprio fenômeno da desinformação e a questão da plataformização da vida.
Marinalva Barbosa e Roger Chartier, autores que escreveram o prefácio e posfácio do livro, respectivamente, são unânimes em avaliar o caráter propositivo da sua obra, que não apenas diagnostica e analisa a crise informacional e seus dilemas, trazendo a perspectiva histórica de desenvolvimento desta crise, mas também propõe medidas para gerenciar seus efeitos e caminhar para um ambiente informacional mais saudável. Quais medidas que a obra propõe você destacaria como sendo as mais relevantes, com maior potencial de reduzir os efeitos danosos desta crise?
Ana: Eu acho que está muito ligado a duas coisas. O ensino superior no Brasil está na nossa Constituição Federal e é estruturado em um tripé, que é: o ensino, a pesquisa e a extensão. E, como profissional da comunicação e como professora universitária, eu sempre procuro articular as três coisas juntas. Então a pesquisa, para mim, está muito vinculada àquilo que a gente procura transmitir, mas também aprender dentro da sala de aula de uma universidade pública federal, como também está muito vinculada às relações com a sociedade, que é aquilo que se denomina de extensão. Então a Rede Nacional de Combate à Desinformação nasce com essa ideia, de aplicar aquilo que a gente desvela nas pesquisas no diálogo com a sociedade, propor desvelamentos e ao mesmo tempo propor formas de como a comunicação, as instituições e profissionais da comunicação podem atuar nesse sentido. E uma delas é aquilo que a gente tem feito na Rede Nacional de Combate à Desinformação, que é articular diversas áreas da ciência, diversas áreas de atuação na sociedade, trazer todo mundo junto e, a partir daí, cada um, a partir do seu lugar de ação, pode contribuir da melhor maneira possível no seu entorno para mitigar o fenômeno da desinformação, que é um dos maiores riscos globais já há algum tempo. Então eu acho que a proposição vai muito neste sentido, de valorização da pesquisa, de diálogos interinstitucionais e intercâmbios científicos, e, sobretudo, uma relação e um diálogo maiores com a sociedade, essa quebra de muros da academia para que a gente possa cada vez mais caminhar junto com a sociedade.
No início deste ano, na esteira da posse de Donald Trump como presidente dos EUA, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, empresa dona do Facebook, Instagram e WhatsApp (três das maiores e mais utilizadas plataformas digitais da atualidade), fez um pronunciamento anunciando significativas mudanças nas políticas de uso e moderação de conteúdo dessas plataformas. Este pronunciamento foi avaliado por especialistas como um gesto que transcende a esfera operacional dessas plataformas, significando um gesto de posicionamento político que promove um divisor de águas com repercussões sombrias no cenário político a nível global. Na sua avaliação, como esse cenário pode agravar a crise informacional, sobretudo no Brasil? Você acha que o governo brasileiro tem atualmente mecanismos para minimizar os efeitos danosos desse posicionamento? Existe algum movimento neste sentido?
Ana: Acho que a primeira coisa que temos que perceber é que, não só a Meta do Zuckerberg, mas também o Alphabet (Google) de Larry Page, o próprio X do Musk, a Amazon de Jeff Bezos, enfim, as big techs, têm um tratamento muito diferente entre o Norte e o Sul globais, sobretudo EUA,, Reino Unido e União Europeia. Nesses países eles têm um outro tipo de atuação, outro tipo de controle e fazem um outro tipo de moderação, uma moderação muito mais firme, com uma participação humana muito maior. O Sul Global – e o Brasil se insere nisso – já tinha uma moderação muito fraca, muito negligenciada, com pouquíssima moderação humana. E o fato é que o Brasil e o Sul Global são laboratórios dessas plataformas. Eles jogam o tempo todo com a mudança de estratégia nos seus modelos de negócio semanalmente, para ver que tipo de estratégia cada produtor de conteúdo vai usar para viralizar mais fácil, para vender mais fácil. Então acontece aí aquilo que eu chamo de encontro de interesses entre o mercado de plataformas e o mercado da desinformação ideológica, etc. O anúncio do Zuckerberg logo após a posse do Donald Trump, alguns dias depois, vem a deixar isso muito mais claro, uma coisa muito mais mascarada. Como ele adere à plataforma política e à visão do Trump ele deixa isso claro, o que traz benefícios para as redes dele no sentido da própria lucratividade. Porque ao mesmo tempo que ele deixa de investir em moderação humana, em controle de conteúdos que podem ser ilegais e nocivos, ele passa a lucrar muito mais com a tirada dessas barreiras porque os conteúdos viralizam muito mais rápido – a misoginia, o racismo etc. – e eles lucram também muito mais rápido ao mesmo tempo em que ele permite que uma ideologia, sobretudo de extrema-direita, possa ter um alcance muito maior, que é principalmente onde se massificam as narrativas com desinformação, ou, mesmo sem desinformação, com ódio, com medo, angústia, para poder levar adiante um projeto de mundo que é de cada vez de mais exclusão. Não é um projeto de mundo de inclusão. É um projeto que trabalha para dividir o mundo entre possibilidade de uma vida plena e dos super ricos, e a miséria humana, que, se em 2023 mais de 730 milhões de pessoas passaram fome, em 2024 quase 850 milhões de pessoas sentiram fome no mundo. E esse processo das plataformas potencializa a desinformação, que vem a prejudicar não só a democracia, que está cada vez mais reduzida no globo, mas também a fome, a saúde, e uma série de outras questões. É uma medida bastante desastrosa.
No livro você aponta que o Global Risks Report 2024, divulgado recentemente pelo Fórum Econômico Mundial, revelou que, na opinião de mais de um mil e quatrocentos especialistas ouvidos em vários países, o fenômeno da desinformação é apontado como o primeiro e principal dentre os riscos globais mais graves para os próximos dois anos, ficando em quinto lugar quando se considera os dez anos à frente. Na sua análise, o Brasil tem se preparado para lidar com esses riscos de maneira adequada, sobretudo no contexto eleitoral que se aproxima com as eleições de 2026? Quais os principais mecanismos têm sido apontados como mitigar esses riscos?
Ana: O Brasil não está preparado. Em termos legais, nós não temos ainda a regulação das plataformas. O PL 2630/20 foi engavetado, nós temos um novo PL que começou a tramitar em dezembro do ano passado, e que tem uma outra proposta, diferente do PL 2630 que a gente já vinha discutindo desde 2019, 2020 e que propunha transparência e responsabilidade. O novo PL agora vem mais no sentido de garantir uma liberdade de expressão, então foi uma mudança expressiva, nós temos que acompanhar esse processo bem de perto junto ao Parlamento brasileiro, sobretudo porque há um lobby muito grande das plataformas e também porque a gente tem uma bancada com muitos participantes que foram eleitos a partir da desinformação, de uma relação muito estreita com as plataformas digitais. E há um movimento deflagrado, sobretudo pela Coalisão de Direitos da Rede, da qual a Rede Nacional de Combate à Desinformação faz parte, que hoje conta com mais de cem instituições e redes, e é uma campanha voltada exatamente para batalhar pela regulação e enfrentar esse advocacy das plataformas no Congresso Nacional, para que a gente possa fazer avançar a legislação. Quando chega o período eleitoral, o que efetivamente se faz valer são as resoluções do TSE, justamente porque nós não temos ainda uma regulação.
Como você acha que a RNCD, criada por você em 2020, tem contribuído para a gente avançar realmente neste debate a fim de construir um ambiente informacional mais saudável, e de onde partiu essa sua iniciativa de criar a Rede? De lá para cá, como você acha que a Rede foi ganhando corpo e assumindo um papel nesse debate?
Ana: A Rede nasceu sobretudo no contexto do pós-doutorado que eu realizei na Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 2019 e 2020, em que a gente tinha saído de um processo eleitoral complexo em 2018 e, em 2020, veio o início da pandemia. Então a Rede surgiu dessa necessidade, daquilo que as pesquisas do pós-doc me apontaram em relação à desinformação eleitoral, e também porque, naquele momento, a pandemia estava em plena forma e nós tínhamos pesquisas, como, por exemplo, aquela realizada no Reino Unido, apontando que houve um crescimento de 900% na desinformação nos três primeiros meses da pandemia. Agora imagina no Brasil, que é um ambiente muito mais complexo no que se refere à produção de desinformação. Então a ideia foi unir forças, fazer um trabalho mesmo sinérgico, para que a gente pudesse trabalhar, num primeiro momento mitigando a desinformação pandêmica, mas também atuando em diversas áreas. Então a Rede é uma tecnologia social informal digital horizontal de network, em que a gente está em contato com vários pesquisadores das cinco regiões do Brasil, de várias áreas da ciência, do mercado e da sociedade civil com esse intuito de contribuir para mitigar a desinformação. É uma rede diferente das outras redes porque não é uma rede acadêmica. A primeira ideia da Rede era que ela fosse uma rede de fact checking, mas percebi atuando só no jornalismo a gente não conseguiria resolver tudo, então a gente foi agregando pesquisadores de outras áreas, e nós temos mais de 30 grupos de pesquisas de várias áreas na Rede. E temos atuação em diversos eixos, um deles exatamente a luta pela regulação das plataformas, além da pesquisa, da divulgação científica, o letramento digital e a educação midiática o próprio jornalismo e o fact checking, todos caminhando juntos, todos muito importantes nesse contexto. Então a Rede tem entre seis e oito eixos principais de atuação a partir dos parceiros. E a gente vai procurando estruturar e fomentar a atuação conjunta dos atores que atuam dentro desses eixos.
Você se inspirou em alguma outra rede que você tenha conhecimento ao redor do mundo, partiu de alguma referência para criar a RNCD?
Ana: Na época eu não conhecia nenhuma outra rede, a ideia era mesmo trabalhar nessa união de forças. Mas depois a gente conseguiu alguns parceiros que vieram agregar conosco e que são redes internacionais, como a Meedan e a Internews. E, com o tempo, outras redes e organizações passaram também a nos procurar para agregar esforços.
Você conta que o livro tem o objetivo de extrapolar os muros das universidades. Você acha que ele pode trazer algum norte, alguma luz para os jornalistas que estão fora dessa bolha acadêmica?
Ana: Acho que sim, apesar de ter também uma parte de linguagem acadêmica, o livro tem essa proposição de trazer dados das pesquisas de uma forma que possa subsidiar o trabalho nas redações e no dia-a-dia dos jornalistas.