Publicado originalmente em ObjETHOS por Álisson Coelho. Para acessar, clique aqui.
O jornalismo e os jornalistas estão sob ataque. De acordo com o relatório Violência Contra Jornalistas e Liberdade de Imprensa no Brasil, organizado pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2020 vivemos o ano mais violento desde o início do levantamento, na década de 1990. Foram 428 casos de ataques à liberdade de imprensa. Já a Repórteres Sem Fronteira (RSF) colocou o Brasil no 107º lugar do ranking mundial da liberdade de imprensa no ano passado. Nas contas da RSF apenas o presidente da República, Jair Bolsonaro, e seu entorno teriam promovido 580 ataques à imprensa brasileira em 2020.
Um desses ataques aconteceu na última segunda-feira (21). Destemperado, descontrolado e desajustado, Bolsonaro gritou e mandou a jornalista Laurene Santos, repórter da Rede Vanguarda, afiliada da Rede Globo na região do Vale do Paraíba, calar a boca. Os insultos foram estendidos à Rede Globo e ao canal CNN Brasil. Na última sexta-feira (25) repetiu a dose. Como se vê, para além dos números, a violência passa ao vivo na televisão, é vista diariamente nas plataformas de redes sociais.
Se os ataques de Bolsonaro estão claramente identificados e fartamente documentados, o mesmo não se pode falar do que ocorre nas redes sociais. No caldo das trocas comunicacionais, os ataques à imprensa se misturam a uma intensa atividade crítica ao jornalismo que circula nas redes. Uma crítica que, por certo, está longe da grande empreitada kantiana que descreve Foucault, mas que cumpre um papel importante no que tenho chamado de “construção social da crítica das práticas jornalísticas” (Coelho, 2019). Nas palavras do professor José Luiz Braga (2006), um comentário social crítico que tem incidência na produção jornalística (essa incidência é demonstrada em Coelho, 2017).
Essa confusão entre o que pode ser considerado uma crítica e o que é ataque puro e simples (ainda que esse processo não seja nada simples e a pureza entre uma coisa e outra seja bastante discutível) é latente tanto em quem critica, quanto em quem ataca. Mais do que isso, as zonas cinzentas entre essas duas atividades confundem até mesmo os jornalistas, que de forma geral têm pouca tolerância com as críticas. Não raro, é possível ver em rede jornalistas que denunciam estar sendo atacados quando estão apenas recebendo um alto volume de críticas. Diferenciar essas duas coisas é fundamental para a comunicação de forma geral, e, de forma ainda mais dramática, para o jornalismo.
Breve diagnóstico
A dificuldade em diferenciar crítica de ataque vem, dentre outras coisas, de três fatores de contexto sobre os quais quero falar rapidamente. O primeiro deles é a configuração do nosso sistema de crítica de mídia. Silva e Soares, ainda em 2013, já apontavam para o fato de que a crítica midiática brasileira é voltada principalmente para o entretenimento. Apesar de raízes profundas e sólidas, que remontam à década de 1960, o desenvolvimento de um amplo sistema de acompanhamento, análise e crítica do jornalismo não se concretizou.
Ao realizar um mapeamento de vozes críticas ao jornalismo no Brasil durante minha pesquisa de doutorado, citada acima e referenciada ao final desse texto, foi possível observar o baixíssimo desenvolvimento de uma crítica essencialmente profissional no Brasil. A figura do crítico de mídia praticamente inexiste, com raras exceções. Há, ainda, uma crítica que chamei de polêmico-profissional esporádica, mais numerosa em quantidade, feita por jornalistas em sites, mas que não se dedicam a uma análise constante do jornalismo. Já a crítica acadêmica resiste, mas tem baixa circulação entre a população. De forma geral, o maior volume de críticas vem do que chamei, a partir de Braga (2006), de comentário social crítico. Essa crítica, no entanto, carece de bases mais aprofundadas, é aquela feita pelo senso comum.
Em um resumo superficial, a sociedade quer falar sobre jornalismo, mas o nosso sistema crítico é pouco desenvolvido e com baixa capacidade de reflexões mais aprofundadas. Há resistência por parte de veículos de imprensa e de jornalistas em aceitar críticas, o que dificulta ainda mais o estabelecimento de uma relação saudável entre a imprensa e o público.
Soma-se a isso as poucas iniciativas de educação para a mídia. De forma geral, a população brasileira tem dificuldade em entender os processos que diferenciam o jornalismo do boato. É comum, ao ler manifestações do público, observar que em muitos casos ao exercitar algum tipo de comentário crítico as pessoas não conseguem diferenciar textos de opinião de notícias ou reportagens, por exemplo. Esse baixo conhecimento dos processos próprios do jornalismo é fator preponderante para a disseminação da desinformação.
Por fim, a falta de transparência da mídia quanto ao que faz, e como faz, dificulta o exercício de uma crítica mais assertiva por parte do público. A falta de iniciativas de accountability também gera um distanciamento entre a sociedade e as redações, que potencializa os ataques. Se o público não conhece boas práticas jornalísticas, como irá cobrar de sua mídia essas mesmas práticas?
O resultado desses fatores é uma crítica essencialmente amadora, pobre em argumentação e que, não raro, cruza o limite entre a crítica e o ataque.
Esse cenário também contribui com o crescimento da descrença na mídia. Pesquisa do PoderData mostra que os brasileiros confiam cada vez menos na imprensa. Nos últimos dois meses do ano passado o percentual de pessoas que disseram confiar pouco ou nem um pouco no que é noticiado subiu 10 pontos percentuais, passando de 20% para 30%. Há um fosso perigoso entre o jornalismo e uma parte significativa da sociedade. Perigoso para a democracia e, em um sentido mais cotidiano, perigoso para quem exerce a profissão.
Uma proposta de debate
Gosto muito da conferência de Michel Foucault, de 1975, em que ele parte da pergunta “O que é a crítica”. Ali Foucault traça algumas características do que podemos considerar crítica. Para ele, a atitude crítica é uma virtude geral, e se coloca como “a arte de não ser governado assim, e a esse preço” (p. 3). Acho muito poderosa a ideia de que a crítica seja um sintoma de resistência dos sujeitos aos poderes. A crítica seria o momento em que nos damos o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade. Ter essa atitude frente ao discurso jornalístico é fundamental.
Não pretendo nesse texto demarcar do ponto de vista teórico e prático onde devemos estabelecer os limites entre crítica e ataque. Pelo contrário. O que quero registrar é a necessidade de não calarmos vozes com críticas consistentes, e mais do que isso, não inibirmos o público que quer debater sobre jornalismo. Ao mesmo tempo, é preciso reforçar a resistência contra os ataques e a defesa intransigente do jornalismo. A tarefa não é das mais simples, mas absolutamente necessária nos tempos em que vivemos.
O professor Ciro Marcondes Filho, a quem perdemos no ano passado, nos ensinou que a crítica é “um sintoma de sobrevivência, de que há a algo vivo no sistema” (2002, p. 17). Retirá-la do charco dos ataques e das tentativas de descredibilização da prática jornalística é uma tarefa que importa diretamente a jornalistas, meios de comunicação, pesquisadores da área e, finalmente, à sociedade de forma ampla.
Referências
BRAGA, José Luis. A sociedade enfrenta a sua mídia: dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006.
COELHO, Alisson. Jornalismo, Sociedade e Crítica – Potencialidades e Transformações. Florianópolis: Insular, 2017.
______, Alisson. A construção social da crítica das práticas jornalísticas: dispositivos críticos na esfera pública em rede. São Leopoldo: Unisinos, 2019.
FOUCAULT, Michel. Crítica e Aufklärung [“Qu’est-ce que la Critique”]. Tradução de Jorge Dávila. Revista de Filosofia-ULA, 8, 1995.
MARCONDES FILHO, Ciro. Mediacriticism ou o dilema do espetáculo de massas. In: PRADO, José Luiz Aidar (org.). Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massa às ciberculturas. São Paulo: Hacker Editores, 2002, p.14-26.
SILVA, Gislene, SOARES, Rosana de Lima. Para pensar a crítica de mídias. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 20, n. 3, 2013.