Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Artigo | Ricardo Thofehrn Coelho, mestrando em Educação, retoma a experiência dos materiais didáticos criados na década de 1950 e que promoviam a valorização da cultura regional no Rio Grande do Sul

*Por Ricardo Thofehrn Coelho
*Ilustração: Lilian Maus/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS

Em meado do século XX, o Rio Grande do Sul vivia uma situação dramática em relação à Educação. Mais da metade da sua população era analfabeta. Em pouco mais de trinta anos essa situação seria modificada radicalmente. Para isso, foi necessário um conjunto de confluências que envolveram elementos de uma empatia atávica.

Nos anos 1940, surgiu um órgão que esteve no bojo da multiplicação por dez do contingente escolar. O Centro de Pesquisa e Orientação Educacionais (CPOE) foi responsável pela evidenciação de novos rumos. Na década seguinte, chegou à Secretaria Estadual da Educação e Cultura um jovem professor, ex-prefeito de Cachoeira do Sul e deputado: Liberato Salzano Vieira da Cunha. Ele foi o “arquiteto” da transformação que correu. Durante a sua fértil gestão, além do surgimento da Feira do Livro na Praça da Alfândega e da criação do Departamento de Cultura, embrião da secretaria específica desta pasta, seriam implementados dois projetos. Após realizar um levantamento que detectou uma defasagem monumental de vagas, foi concebido um Plano Quinquenal de Construções Escolares. Paralelamente, junto ao CPOE, foram criadas condições para a elaboração de uma Reforma do Ensino.

O fulgurante político tem sua vida ceifada precocemente em um acidente de avião. Na sequência, chega ao governo do Estado o engenheiro Leonel Brizola, pavimentando seu caminho ao poder com o lema “Nenhuma criança sem escola”. Brizola será o construtor daquilo que havia sido arquitetado, realizando o “Plano das Duas Mil Escolas” e implementando de forma integral a Reforma de Ensino, desenvolvida pelas professoras vinculadas ao CPOE. Entre as suas orientadoras, encontrava-se a professora Cecy Cordeiro Thofehrn. Será ela a “mestra” que vai evocar os sentidos ancestrais da nossa cultura para desenvolver quatro séries de livros didáticos que vão fazer circular, num período de 20 anos, entre meados dos anos 1950 e 1970, a impressionante marca de mais de sete milhões de exemplares, construindo uma “obra” revolucionária. Ao menos é como será entendida esta obra pela Ditadura cívico-militar que surgiria mais adiante.

Professora Cecy Cordeiro Thofehrn (Arquivo pessoal)

Essas séries – “Sarita e seus amiguinhos”, “Estudos Sociais e Linguagens”, “Estrada Iluminada” e “Nossa Terra Nossa Gente” – vão privilegiar de modo acentuado o valor da cultura gaúcha. Ensinar valores é aquilo que Edgard Morin aponta como sendo a principal função da Educação. Trata-se de um alinhamento com aquilo que havia sido proposto pela “Escola Nova” em relação à “educação regionalizada”. Os textos presentes nesses livros são, essencialmente, de autores gaúchos. Essa perspicácia vai possibilitar a percepção do que está à nossa volta, reconhecer a nossa geografia, os nossos hábitos, a nossa linguagem. Trago um exemplo de um exercício aplicado em um livro do 3.º ano primário [antiga denominação da primeira etapa de escolarização após a educação infantil]: 

a) O gaúcho galopa pelas coxilhas, orgulhosamente.
Sujeito – ………………………………………………………………………..
Aquilo que se diz do sujeito – ………………………………….

Ao se utilizar do linguajar regional, ao focalizar o ambiente onde vivemos, são disponibilizados fatores empáticos, criando um alicerce indispensável para um relacionamento escolar saudável, favorecendo a interação social, como nos aponta Batson. 

Os seres humanos são sistemas autopoiéticos moleculares, ou seja, sistemas com que nos produzimos a nós mesmos, como lembra o chileno Humberto Maturana. Esse massivo encontro com a nossa própria cultura transformou aquela situação, sendo que mais da metade da população era analfabeta, em uma referência nacional em termos educacionais. Logo em seguida, veio a “Redentora”, apelido sarcástico dado ao golpe militar de 1964. Não demorou muito para entenderem que era preciso estancar esse processo de apropriação cultural, e foi determinado a um coronel que assumisse a Secretaria de Educação com o propósito determinado do extermínio das políticas educacionais bem como o seu órgão formulador, o CPOE. Seriam impostos, nacionalmente, o fim dos livros de didática regionalizados, com o Decreto 68.728/71. No mesmo ano, a Presidência da República fixava as diretrizes e bases para o ensino do 1.º e 2.º graus, favorecendo a formação de mão de obra. E só. Qualquer semelhança com o que assistimos em 2023 não é mera coincidência.  

Mas, mesmo tendo objetivamente buscado destruir esses aprendizados desenvolvidos ao longo de décadas, um imenso movimento cultural seria remanescente. Foi, justamente, nesse estertor que se iniciou em terras gaúchas um movimento musical responsável pelo prestígio de uma cultura nativista.

Tive a oportunidade, ao longo do estágio docência no Ensino Fundamental, de utilizar a “Caixa de Objetos de Aprendizagem Poéticos Nossa Terra Nossa Gente”, desenvolvida em homenagem aos livros da professora Cecy. Na Caixa, há três jogos/brincadeiras que pertencem às nossas tradições: “Tropa de Osso”, “Cinco Marias” e “Pandorga”. O implemento desse Plano de Ensino ultrapassou em muito a sala de aula, envolvendo as famílias. Saindo de uma aula da “Tropa de Osso”, vem correndo atrás de mim um aluno: “Bah, profi, tu lembra muito o vô Bolão”. Em princípio, não entendi o nome. “Vô o quê?” “Bolão, ora. O vô Bolão. Mas ele já morreu.” Entendi do que se tratava. O vô brincava com ele algo semelhante ao que estávamos fazendo. Outro dia, indo a uma aula onde daríamos continuidade às “Cinco Marias”, duas senhoras me param, mãe e avó de uma das alunas. A avó me disse que via o seu pai muito pouco, porque ele era caminhoneiro. Quando chegava em casa, porém, ele a acordava para que brincassem juntos. Elas tinham vindo agradecer.

Existe um enorme lastro no que concerne à legislação que, não apenas apoia, mas condiciona que seja parcela significativa da Educação o estímulo e o acesso à cultura regional. Se se quiser, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), passando pela Constituição Cidadã (1988), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), pela Base Nacional Comum Curricular (2017), pelo Referencial Curricular Gaúcho (2018), tanto do Ensino Fundamental quanto do Ensino Médio e, agora, a necessidade de implementação da Lei do Folclore Gaúcho (2021). A determinação está dada. Resta pela frente toda uma cancha.


Ricardo Thofehrn Coelho é laureado no curso de Licenciatura em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS e mestrando em Educação pelo PPG em Educação da UFRGS. É teatrólogo, jornalista e pesquisador.

O trabalho de conclusão de curso que deu origem a este artigo foi orientado pela professora Andrea Hofstaetter.

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