Em Várzea Queimada, saber ancestral e arquitetura de impacto viram principal fonte de renda da comunidade

Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Luana Sena. Para acessar, clique aqui.

O designer Marcelo Rosenbaum abriu o mapa em papel e apontou uma mancha evidenciando o Nordeste do Brasil: era ali, em uma região com baixíssimo IDH, que ele desenvolveria, ao longo de uma década, uma criação coletiva capaz de mudar a realidade de quase mil pessoas no sertão piauiense. O ano era 2011 e ele chegaria, pela primeira vez, à Várzea Queimada.

A comunidade fica a 27km de Jaicós, município no centro-sul piauiense. Pertence à zona rural da cidade e é nacionalmente conhecida pela grande incidência de surdez entre os moradores. Em Várzea Queimada quase todas as pessoas são parentes e desenvolveram, sozinhas, uma língua própria de sinais, a Cena. Essa história já contamos aqui.

Várzea Queimada: comunidade tinha um dos piores IDH do país (Foto: Tatiana Cardeal)

Além do parentesco, os moradores da comunidade compartilham também um saber ancestral: a trama, nome dado ao trançado feito com a palha da carnaúba. “Nós não chegamos já entendendo a comunidade como uma unidade produtiva”, conta Rosenbaum. “Nós chegamos lá e perguntamos: o que a sua avó fazia?”. Na casa de pessoas como dona Francisca, um cesto centenário – ou “boió”, como chamam por lá – trançado por sua avó, costumava ser escondido aos olhos das visitas. “Era tudo o que a gente queria!”, lembra o designer.

“Surrão” ou “boió”, cestos produzidos artesanalmente com a palha da carnaúba (Foto: Tatiana Cardeal)

Apesar de ficar conhecido por transformar casas num quadro de TV, na Globo, aos sábados e por mais de uma década, Rosenbaum é um dos nomes por trás do A gente transforma, que assina projetos nos quais o design é utilizado como ferramenta de mergulho na cultura dos povos e resgate de saberes – o objetivo é tentar construir um futuro com possibilidades mais justas e sustentáveis.

Marcelo Rosenbaum na última viagem à comunidade (Foto: arquivo pessoal)

Aconteceu com Várzea Queimada, um dos carros-chefe no portfólio do instituto. “A métrica do IDH é muito perversa”, diz Marcelo. “Como uma comunidade detentora de um saber ancestral pode ser considerada pobre e não ter coisas básicas como segurança hídrica, em 2022?”, pergunta à plateia essencialmente formada por estudantes de arquitetura que lotaram o auditório do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Piauí, no último mês de novembro. Ele participava do evento Expo Casa, organizado por alunos e professores da instituição. No palco, contou histórias que preenchem seu currículo de transformador: a intervenção urbana do parque Santo Antônio, na periferia de São Paulo; os cobogós criados com resíduo de sururu, em Alagoas; as moradas infantis em Canuanã, no Tocantins; e, a nova empreitada no sertão piauiense, a Casa da Carnaúba, em Várzea Queimada.

“Estamos vivendo uma grande crise mundial, energética”, alertou em sua fala. “De que forma a arquitetura pode impactar comunidades, trazer luz a povos que nunca foram reconhecidos por um universo colonizador?”. A provocação do designer premiado parecia ecoar no auditório. O evento precedia mais uma de suas longas viagens ao sertão.

Glow up de Várzea Queimada

Marcilene Barbosa aprendeu a fazer a trama com a mãe, que por sua vez aprendeu com a avó, que também aprendeu com a bisavó – e assim vai-se mais de um século de história. “Fazíamos por necessidade, nenhuma de nós se considerava artesã”, diz à reportagem. “Minha mãe teve que viver 70 anos para só agora reconhecer isso como artesanato”.

As esteiras de palha, bem como o pó extraído da carnaúba, eram vendidos na feira livre de Jaicós. “A esteira era usada como uma espécie de plástico bolha, para embalar produtos e depois ia para o lixo!”, explica Rosenbaum num misto de consternação e espanto.

Em fevereiro de 2011, as artesãs da comunidade fundaram a Associação de Mulheres da Várzea Queimada, da qual Marcilene é a líder desde 2012. Hoje, 28 mulheres entre 20 e 77 anos fazem parte da associação e estão envolvidas direta ou indiretamente no trabalho com a matéria-prima oriunda da árvore nativa.

Associação de Mulheres da Várzea Queimada produzindo (Foto: Tatiana Cardeal)

Após 12 anos das primeiras oficinas, do contínuo resgate de saberes das artesãs, o projeto inseriu o nome da comunidade nas principais feiras de design e artesanato do mundo – hoje, ela é reconhecida como uma região que produz artesanato a partir de um saber ancestral. No Google, as peças produzidas em Várzea Queimada aparecem em exposições de São Paulo a Miami. “A comunidade entende o design como uma linguagem, como uma ferramenta que a conecta com a ancestralidade”, diz Rosenbaum.

As peças de artesanato em palha e borracha de pneu deram vida a uma coleção do Clube de Colecionadores de Design do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, num processo inédito de imersão com artesãos e designers na comunidade. Em 2016, o banco Bradesco patrocinou a produção de livro, documentário e site “Várzea Queimada – espírito, matéria e inspiração”, viabilizado pelo Ministério da Cultura via Lei Rouanet.

Hoje, toda a produção escoa para São Paulo, onde a comunidade mantém um representante comercial. Por ano, cerca de 100 mil “olhos de palha” são utilizados e quatro mil peças – entre cestos, esteiras, luminárias, tapetes e bolsas – são vendidas para lojas de design e decoração. O artesanato das mulheres é a principal fonte de renda da região.

Coleção TOCA na Casa Vogue Miami, 2016 (Foto: arquivo pessoal)

Da carnaúba, tudo se aproveita: a palha cobre casas ou solos agrícolas. A casca serve como lenha. Os troncos, de duração indefinida, são úteis para a construção civil. Suas folhas produzem uma cera que, extraída, é usada na fabricação de baterias a vinil. O Brasil é o único país no mundo que produz cera de carnaúba – são 18 mil toneladas por ano, sendo Piauí, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Norte os maiores produtores.

O fruto, colhido maduro e submetido à secagem, é usado para extração de óleo ou vira alimento para o gado. O pó também é bastante utilizado por indústrias de cosméticos e até o caule e as raízes têm uso medicinal. Pelo seu ciclo sustentável, ficou conhecida como “árvore da vida”. A planta, que chega a 15 metros, para as mulheres de Várzea Queimada, representa empoderamento.

Arquitetura de impacto

A força da mão-de-obra feminina inspirou a arquitetura da Casa da Carnaúba, projeto em andamento na comunidade. A iniciativa, do Rosenbaum Arquitetura, A gente transforma e Associação das Mulheres de Várzea Queimada, pretende abrigar a atividade de extrativismo sustentável do pó da carnaúba e, de quebra, beneficiar também a secagem e estocagem da palha para o artesanato.

Projeto Casa da Carnaúba (Imagem cedida pelo instituto A gente transforma)

No papel, a Casa da Carnaúba tem dois ambientes circulares, interdependentes (a Casa de secar e a Casa de bater e guardar a palha), interligados por uma estrutura de copa, banheiro e espaço para armazenamento do pó. Visto de cima, o espaço que tem a finalidade de cultivar a tradição do trabalho coletivo das mulheres revela a forma de um útero, uma espécie de metáfora arquitetônica que reforça o poder feminino da criação.

Artesão trabalhando na trama (Foto: Áureo Tupinambá)

O projeto é financiado pela L’oreal, empresa brasileira de cosméticos, e Brasil Cera – principal compradora do pó de carnaúba extraído hoje em Várzea Queimada. Na última safra foram quase uma tonelada e meia do produto.

“Tínhamos uma grande dificuldade no preparo desse material”, explica a líder Marcilene. “Agora mesmo, é época de chuva, e palha não combina com umidade”, completa. “A casa que usamos atualmente é bem antiga e inadequada para essa finalidade”, segue dizendo a artesã. “O novo espaço será ideal para guardar nossa produção e o material, garantindo uma extração de qualidade, livre de impurezas e perdas por exposição excessiva ao sol”.

Para seguir no conceito “arquitetura de impacto”, o material para construir a Casa da Carnaúba está sendo produzido na própria comunidade. Em parceria com um projeto de extensão da Universidade Federal, a comunidade está usando uma prensa para fazer tijolos, utilizando o barro daquele próprio chão.

Primeiros tijolos ecológicos produzidos com o barro da comunidade (Foto: Áureo Tupinambá)

Nessa etapa, o arquiteto piauiense Áureo Tupinambá teve importante participação. “Caminhei quilômetros ao longo de um rio que não é perene, o solo é muito arenoso e toda a água é absorvida em seu leito”, conta. “Trouxe algumas amostras do solo, que foram analisadas pela professora Luciana Barbosa” (professora do Departamento de Recursos Hídricos, Geotecnia e Saneamento da UFPI). Os primeiros testes com o tijolo ecológico apontaram a necessidade de uma argila melhor.

Pesquisadores da UFPI observam produção dos tijolos (Foto: Áureo Tupinambá)

Após os testes com a engenheira civil, os tijolos prontos e curados foram testados em laboratórios de física da instituição. “Todo material produzido com esta finalidade deve ser submetido a ensaios destrutivos para garantir a segurança do projeto”, explica Antônio Sales, físico e professor do curso de Engenharia Mecânica da UFPI. “Os primeiros ensaios deram os parâmetros para novos tijolos que serão testados agora em janeiro, mas já se mostram promissores”, explica o pesquisador.

A caravana de pesquisadores esteve em Várzea Queimada acompanhando Rosenbaum no último mês de novembro. Jovens, que eram crianças quando o projeto chegou por ali, hoje veem nas ações uma alternativa para o êxodo rural – que era, na verdade, uma forma de fugir da região com pouca ou quase nenhuma oportunidade. “Considero que hoje a principal moeda na comunidade é a troca, o afeto”, comenta Áureo que, entre muitas idas à Várzea Queimada estabeleceu um contato próximo com os moradores. “Tico, um rapaz jovem que foi pedreiro em São Paulo, está de volta à comunidade e agora que aprendeu a técnica, não quer mais sair da região onde nasceu”, revela o arquiteto. “Penso que o que fazemos lá não é resgate: é reconquista”.

Em Várzea Queimada, a ciência que extrapola os muros da universidade pode até ter a pretensão de impactar – mas mestres e professores acabam saindo de lá aprendendo mais do que ensinando. “Esse projeto é com certeza um marco social para Várzea Queimada”, opina Maria Eduarda Coutinho, arquiteta e urbanista nascida em Jaicós. Seu projeto de pesquisa no mestrado em Antropologia da UFPI pretende estudar a técnica de produção artesanal da região como patrimônio imaterial. “É inegável que, através do projeto, as mulheres artesãs conseguiram enxergar a importância do saber fazer que elas carregavam e se colocaram como protagonistas da sua produção cultural”, comenta. “Para mim, é muito importante ver um pequeno povoado no interior do Piauí, perto de onde estão minhas raízes, sendo gradativamente valorizado por isso”.

A comunidade busca no Iphan o registro reconhecendo a sua técnica como patrimônio imaterial da cultura brasileira.

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