Em tempos de crise, comunidade acadêmica da UFRGS propõe ações para auxiliar estudantes e servidores afetados pelas enchentes

Solidariedade | Vaquinhas, arrecadação de doações e redes de conexão estão entre as campanhas realizadas por diferentes setores da Universidade

*Ação para arrecadar doações organizada na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS busca auxiliar estudantes atingidos pelas chuvas de maio. (Foto: Marcelo Pires/JU)

Durante a apuração das informações trazidas nesta reportagem, uma das palavras que mais se repetiu na fala dos entrevistados foi “comunidade”. As frases variam, mas esta palavra segue presente nos comentários de como “a comunidade se uniu”, do quanto “a comunidade precisava de ajuda” ou mesmo sobre o surgimento de uma “sensação de pertencimento à comunidade” de determinada faculdade.

A professora do departamento de Sociologia na UFRGS e integrante do Centro Universitário de Estudos e Pesquisas sobre Desastres (CEPED), Lorena Fleury, define “comunidade” como “um sentido de pertencimento coletivo” que não precisa estar vinculado a um local ou tradição. A UFRGS conta com 6.615 trabalhadores e 37.854 estudantes que frequentam algum dos 27 institutos, escolas ou faculdades em Porto Alegre, Eldorado do Sul ou o Câmpus Litoral Norte. 

No mês de maio, 615 mil pessoas chegaram a ficar fora de casa devido às chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul. Durante esse período ações começaram a surgir na Universidade para ajudar sujeitos de dentro e de fora da comunidade acadêmica.

A História registra

Depois que a água baixou na rua Hugo Ribeiro, o doutorando em História e também técnico administrativo no setor de convênios da UFRGS Mayquel Eleuthério conseguiu voltar para o apartamento onde mora no bairro Menino Deus, invadido pela enchente. Era 18 de maio. Quinze dias antes, ele e a esposa, a mestranda em Direito Dálety Eleuthério, se abrigaram na casa dos sogros na Vila Esperança, no bairro Costa e Silva. Durante esse tempo, enquanto se desdobravam para ajudar suas respectivas famílias a atravessar a crise político-ambiental, pensavam, angustiados, sobre o que podiam ter perdido. Ao retornarem para casa, o choque da constatação: a inundação havia destruído tudo.

Num esforço coletivo para tentar reduzir os impactos causados pelas enchentes na vida dos estudantes da graduação e pós-graduação, a comunidade da História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da UFRGS – composta pela chefia do Departamento de História, pela Comgrad (Comissão de Graduação), pelo Programa de Pós-Graduação (PPGH) e também pelo ProfHistória (mestrado profissional em teoria e ensino da História) – se reuniu para traçar medidas de auxílio. Dessa forma, foi criada uma vaquinha online para ajudar, num primeiro momento, os alunos da graduação e da pós-graduação do curso de História. Da meta de R$ 20 mil, até agora foram arrecadados em torno de oito mil.

Na semana seguinte àquela sexta-feira, a comunidade começou a tarefa de mapeamento dos estudantes e técnicos vítimas da tragédia. Segundo dados da Comgrad da História, cerca de 40% dos estudantes da graduação moram ou em municípios da região metropolitana que foram severamente afetados ou em bairros da Capital igualmente castigados. A partir desses dados, foi possível entrar em contato direto com os estudantes residentes nessas áreas. O formulário encaminhado aos alunos com perguntas sobre os impactos das enchentes em suas vidas teve um retorno de 50% do total contatado.  

Segundo a professora do curso de História Natalia Pietra Méndez, foi possível verificar que, dos que responderam ao formulário, 27 estudantes da graduação e 6 do PPGH perderam tudo. Com a primeira leva de arrecadação, os estudantes com perdas maiores receberam ajuda emergencial. “Agora, em um segundo momento, o critério de distribuição vai ser visando a permanência de estudantes no curso”, explica a professora, se referindo a gastos com internet e com transporte que precisará ser utilizado pelos alunos no retorno das aulas.

Comunicação e Informação se preparam para quando a água baixar

Na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico), a ação coletiva “Quando A Água Baixar” nasceu da iniciativa de professores que, diante da gravidade dos acontecimentos, sentiram a necessidade de contribuir com a mitigação dos efeitos das enchentes. Conforme a ação foi se estruturando, discentes voluntários e demais servidores foram se juntando à iniciativa.

A vaquinha online criada para auxiliar os alunos e técnicos que foram afetados pelas enchentes já arrecadou, desde que foi criada no início de maio, quase R$ 30 mil. A meta é arrecadar 150 mil. Outra iniciativa da ação será uma festa solidária no dia 21 de junho com o objetivo de arrecadar fundos.

A fragilização psíquica que acometeu quem viu de perto os estragos da destruição também chegou na professora do curso de Jornalismo Gisele Reginato, uma das idealizadoras da ação da Fabico. “Ainda que a gente esteja em um local seguro fisicamente, psiquicamente estamos vivendo desse mesmo lugar de desamparo”, comenta. Contudo, trabalhar com as ações, conforme aponta a docente, ao mesmo tempo que evidencia a dificuldade atravessada pelas vítimas, reforça a tentativa de fazer algo para ajudar. “É sempre mais difícil quando a gente conhece as pessoas.”

A estudante do curso de Jornalismo Brenda da Rosa é uma das vítimas cujo relato sobre os impactos da enchente foi registrado na rede social da ação. Residente do centro de Porto Alegre, a estudante estava com parte de sua família em sua cidade natal, Canoas, no bairro Rio Branco, quando a água começou a subir. Mais adiante, no bairro São Luís, a mãe e a irmã da estudante de Jornalismo também viam a água levando tudo que tinham. 

“A ação é relevante porque quando a gente pensa no perfil do aluno que foi mais atingido, a gente tá falando de pessoas que vêm de grupos de minoria social. São pessoas que moram em regiões afastadas, regiões que são esquecidas pelo poder público. Pessoas oriundas de famílias que não têm dinheiro”

Brenda da Rosa
Além de agasalhos, maquiagem, calçados e itens de limpeza, a ação denominada ‘Quando a água baixar’ oferece livros àqueles afetados pelas chuvas. (Foto: Marcelo Pires/JU)
A solidariedade se espalha na UFRGS

Com a água invadindo as ruas e casas, as aulas suspensas e a instabilidade de energia elétrica e sinal telefônico, diversos cursos e unidades da UFRGS iniciaram tentativas de mapear a situação de seus estudantes através de diferentes métodos.

Jéssica Becker, vice-diretora do Instituto de Artes (IA), e Gustavo Andrada, técnico administrativo no Setor Acadêmico da Escola de Administração (EA), partilham de uma mesma preocupação: a situação dos estudantes de quem não obtiveram notícias. Gustavo ressalta que o fato de os estudantes não atualizarem os dados no sistema da UFRGS dificultou o contato. Embora os mapeamentos não tenham atingido toda a comunidade, foi possível identificar as necessidades imediatas e montar ações para atender as demandas. 

O Instituto de Artes conseguiu identificar que 24 estudantes e seis servidores tiveram suas casas totalmente atingidas. Por isso, foi criada a campanha Ação Conexões com o objetivo de conectar quem precisa de algo com possíveis doadores. O formulário para solicitar itens, assim como a lista inicial de doações necessárias está no site do IA. A entrega das doações pode ser combinada entre doador e receptor ou contar com a ajuda dos centros acadêmicos.

Com o prédio da Escola de Administração inundado, a casa de Gustavo tem servido de “base” para as doações que devem chegar aos 34 estudantes que solicitaram ajuda. A campanha de arrecadação da EA tem ocorrido de forma mais interna. Até o momento, foram arrecadados R$10.740,00 e alguns produtos. Este valor está sendo revertido em compras para atender os pedidos dos alunos. As doações são retiradas na casa do servidor ou levadas por ele e outros funcionários quando necessário.

O Instituto de Biociências (IBio), que também realizou campanha de arrecadação, reverterá os valores para compras destinadas aos estudantes. Aqueles que foram atingidos poderão se inscrever no edital de contemplação.

Na Faced e no IBio foram criadas comissões, divididas em grupos de trabalho (GTs), para atender as demandas da comunidade. A Comissão de Gestão de Crise da Faced foi um resgate da Rede Solidária Faced que surgiu na pandemia. Já a Comissão de Apoio do Instituto de Biociências surgiu da iniciativa da estudante do bacharelado em Ciências Biológicas Náthalia Paiva.

A Faced criou um pix e realizou um drive-thru, em parceria com a Faculdade de Arquitetura, para arrecadar doações. Estas foram organizadas em kits de acordo com os itens solicitados pelos estudantes. Outra ação foi a criação de um grupo no WhatsApp com os atingidos da comunidade, como forma de possibilitar a troca de relatos e entender melhor o que cada um está precisando. 

No IBio, a comissão que iniciou internamente tomou forma de projetos de extensão. Os pedidos de doação da comunidade chegam através de um formulário e do WhatsApp. A demanda é repassada ao ICBS, que está fazendo arrecadação de doações. Os professores do IBio retiram as doações solicitadas e levam para ser organizadas na casa do professor Márcio Borges. Nathalia ri ao contar que eles chamam a casa do docente de “CDM – Centro de Distribuição Márcio”. As entregas são feitas por professores.

O Centro Acadêmico André da Rocha (CAAR), entidade representativa dos estudantes da Faculdade de Direito, conseguiu contatar 217 estudantes através de formulário online. Destes, 17 perderam tudo o que tinham, 87 tiveram que sair de suas casas e 137 ficaram sem luz e água. Com base nessas informações, a entidade distribuiu cestas básicas e sondou necessidades específicas da comunidade de dentro e de fora da UFRGS. A diretora de comunicação do CAAR e graduanda em Direito Laura Antonioli conta que “tinha uma aluna que tinha uma cadeira de rodas elétrica e precisava de um carregador que perdeu na enchente. Várias pessoas doaram, até de outros centros acadêmicos de Direito no Brasil, e a gente comprou o carregador.”

As doações recebidas no pix da entidade ultrapassaram o montante de R$ 70 mil. Os dirigentes do CAAR agora se esforçam para pensar em medidas a médio e longo prazo para seguir com o trabalho de suporte à comunidade frente à penumbra que se tem em torno do que virá a seguir.

UFRGS em ação: PRAE e Medusa atendem à comunidade

Na linha de frente de toda crise, seja ambiental, econômica ou governamental, estão as populações mais vulneráveis. Quando a água e a luz começaram a faltar em Porto Alegre e a Universidade começava a dar indícios de que uma paralisação no calendário acadêmico seria necessária, uma das preocupações dos estudantes beneficiários do auxílio estudantil da Prae (Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis) era a possível ausência de refeições oferecidas nos Restaurantes Universitários (RU).

Numa tentativa de reduzir os efeitos da paralisação dos RUs, a Prae ofereceu cestas básicas aos alunos beneficiários e um auxílio de R$ 500 depositado no mês de maio. A coordenadora da Prae Ludymila Mallmann conta que, como forma de garantir um auxílio a médio prazo para os estudantes impactados pelos efeitos das enchentes, foi solicitado junto ao Ministério da Educação (MEC) o valor de R$ 7 milhões para que pudesse ser oferecido o benefício de um salário mínimo. O valor liberado foi de R$ 1,2 milhão. Nessa conjuntura, o benefício disponibilizado aos estudantes, limitado a mil vagas, foi de R$ 1.200 divididos em três parcelas de R$ 400 ao longo dos próximos meses. A Prae também está oferecendo apoio psicológico aos estudantes que procurarem ajuda.

O Programa Medusa tem realizado encontros de escuta online abertos aos estudantes. É possível conferir os horários no Instagram do projeto. Moises Romanini, um dos coordenadores, explica que a adesão costuma ser baixa, mas que eles entendem que no momento há tantas coisas acontecendo que entrar em grupo online é uma das últimas coisas que as pessoas lembram. Entretanto, “se tiver apenas um estudante conectado no horário, o grupo acontece.” Moises explica que os encontros são espaços onde “coletivamente vamos construindo acolhimento e pertencimento. Coletivamente vamos construindo estratégias de resistir e existir.”

O envolvimento da comunidade

Quando os entrevistados são questionados sobre como está sendo promover as ações, o consenso é que o momento não é fácil e gera muitas emoções.

“Esses relatos de pessoas que estão sofrendo é muito duro, é muito pesado, mas a facilidade é que a gente está agindo, e aí ao fazer a ação a gente não tem muito tempo para lamento, porque a gente precisa ajudar as pessoas. Se a pessoa me pediu uma cesta básica ela precisa disso o mais rápido possível”

Gustavo Andrada

O sentido coletivo de comunidade aparece com força. A professora Lorena explica que momentos de crise como esse causam a necessidade de uma reorganização da vida social. Ela cita a autora Veena Das, que alega surgirem novos vínculos entre sujeitos a partir de um sofrimento social compartilhado, resultando em novas comunidades e sujeitos políticos.

É possível perceber este senso de comunidade e de novas experiências nos relatos daqueles que estão envolvidos nas ações. Jéssica demonstra certa emoção ao falar que o IA tem uma comunidade que se une quando necessário. Já Náthalia se empolga ao relatar a união no IBio e aproximação com os professores, além da experiência ativa do que é praticar extensão.

Para a estudante, esse maior contato dos professores com a comunidade pode ajudá-los a lembrar como é estar ocupando outro lugar na Universidade e conhecer a realidade dos alunos. No horizonte ela vê possibilidades de atividades de extensão que mobilizem mais a comunidade acadêmica a se comunicar com quem está fora dela, ajudando a criar “lideranças locais que sejam ambientalmente responsáveis”.

Jéssica reforça que a Universidade tem um papel social junto à comunidade que vai além do educacional. Para muitos dos entrevistados, as ações são uma forma de cumprir com o papel social da universidade e não “algo a mais” que está sendo feito.


O foco desta reportagem foram ações pensadas dentro da comunidade acadêmica para estudantes e funcionários da UFRGS atingidos. O mapeamento das ações foi realizado através da verificação de postagens nos sites e perfis no Instagram das faculdades, institutos e escolas da UFRGS. Algumas ações que foram mapeadas mas não estão citadas na matéria podem ser verificadas aqui:

SETOR/UNIDADE/CURSODESCRIÇÃO DA AÇÃOTIPO DE AÇÃOLINK
Faculdade de ArquiteturaArrecadação de doações junto da Faced; montaram kits já direcionados para os afetadosDoaçõeshttps://www.instagram.com/p/C7fXsifMgWp/ 
Centro Acadêmico do DireitoProfessores fizeram um webinário para arrecadar fundos em parceria com o centro acadêmico André da Rocha (CAAR).Arrecadaçãohttps://www.instagram.com/p/C7Fsc_Au6ML/
Faculdade de Ciências EconômicasProfessores estão fazendo campanha de arrecadação de dinheiroArrecadação de dinheiro / apoio financeirohttps://www.ufrgs.br/fce/fce-arrecada-recursos-para-prestar-apoio-as-vitimas-das-enchentes/ 
IFCHVaquinha dos cursos para ajudar os alunos afetadosApoio financeirohttps://www.instagram.com/p/C7MX6sNOh7S/https://www.instagram.com/p/C7O4D5_OLbN/ 
Centro de estudantes da LetrasVaquinha para ajudar estudantes afetadosApoio financeirohttps://www.instagram.com/p/C7PBnMkOOyY/ 
Diretório acadêmico da FísicaVaquinha para ajudar estudantes afetadosApoio financeirohttps://www.instagram.com/p/C7e5TtEuA9E/?img_index=1 
Engenharia QuímicaVaquinha para ajudar estudantes afetadosApoio financeirohttps://www.instagram.com/p/C6uEArtOcLf/ 
Instituto de QuímicaEstão atendendo demandas que vêm da comunidadeDoaçõeshttps://www.instagram.com/p/C7M6xFKO8BX/?img_index=3 
Curso de Serviço SocialReuniões online de acolhimentoAcolhimentohttps://www.instagram.com/p/C7PCwL5O-Tl/ 
NUPPEC – Eixo 3O FALAQUI é um espaço de escuta para universitários em situação de sofrimento pelos efeitos das atuais catástrofes político-ambientaisApoio psicológicohttps://www.instagram.com/p/C8NDzUJui_U/?img_index=1

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