Publicado originalmente em *Desinformante por Matheus Soares. Para acessar, clique aqui.
Na última segunda-feira (4), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) abriu um processo sancionador contra o TikTok para investigar possíveis usos irregulares de dados de crianças e adolescentes. No centro da investigação está o recurso “feed sem cadastro” que permite que usuários acessem a rede sem fazer login e forneçam informações à plataforma. A decisão da autoridade já é considerada por especialistas e representantes da sociedade civil uma ação importante para a proteção online desse público.
Após três anos de fiscalização da plataforma de vídeos, o órgão identificou que há indícios de violação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), especialmente no que se refere ao princípio do melhor interesse de crianças e adolescentes, que está presente tanto na LGPD como na Constituição Federal e que determina prioridade na proteção de crianças e adolescentes.
Também foram constatados indícios de irregularidade nos mecanismos de verificação de idade e de tratamento de dados por parte da plataforma, o que pode configurar descumprimento do artigo 14 da LGPD, que estabelece diretrizes para a proteção dos direitos de crianças e adolescentes.
O processo, que pode resultar em sanções financeiras ao TikTok, vai averiguar as práticas da plataforma em relação:
➡️ A coleta de dados de crianças e adolescentes sem verificação de idade e sem cadastro na plataforma, hipótese em que foram observados indícios de tratamento inadequado de dados pessoais sem fundamento em uma hipótese legal válida e desconsiderando o princípio do melhor interesse;
➡️ Ao tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes cadastrados na rede social, em consequência da fragilidade dos mecanismos de verificação de idade que se mostraram insuficientes para garantir a conformidade legal, expondo crianças a um tratamento de dados inadequado;
➡️ Ao tratamento de dados para personalização de conteúdo no “feed sem cadastro” com fundamento na hipótese legal de execução de contrato.
Além de dar andamento ao processo, a ANPD também determinou ações que devem ser aplicadas a curto prazo pelo TikTok, como a desativação total do recurso “feed sem cadastro” em até 10 dias úteis e a apresentação de um plano de conformidade em até 20 dias úteis com detalhes sobre aprimoramentos a serem realizados pela plataforma para verificar a idade dos usuários e os protocolos de exclusão de contas.
Avanço na proteção de crianças e adolescentes
Maria Mello, coordenadora de programas no Instituto Alana, comentou que a decisão representa um “avanço importantíssimo para o cenário de proteção de direitos de crianças e adolescentes no Brasil”, principalmente na busca em superar a diferença de tratamento das plataformas em países do Norte e do Sul Global. De acordo com ela, as determinações da ANPD exigem da empresa uma postura mais protetiva no Brasil como já é feito em países da Europa e nos Estados Unidos.
Ainda segundo Mello, a decisão também estabelece parâmetros importantes de interpretação de melhor interesse no contexto das plataformas digitais, pois “reconhece o dever de cuidado dessas empresas na proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes determinando que plataformas digitais de alto impacto e/ou atratividade para crianças e adolescentes precisam adotar mais standards de boa-fé e diligência”.
O Instituto Alana auxiliou a ANPD no processo de fiscalização do TikTok como “amicus curiae”, quando uma organização ou indivíduo terceiro ingressa no processo com o objetivo de fornecer subsídios ao órgão julgador. A organização apresentou documentos e pareceres que ajudaram a fundamentar a decisão do órgão.
Rafael Zanatta, co-diretor da Data Privacy Brasil, afirma que o caso levantado pela autoridade, além de ser importante, é bastante estruturado, colocando o TikTok “contra a parede” desde o início. “É como se a ANPD já começasse o processo sancionador com cobranças, predeterminado certos ilícitos, e no final desse processo pode se chegar a uma sanção grande”, pontua Zanatta, explicando que o volume de usuários afetados e o público dessas ações, sendo crianças e adolescentes, deverão impactar na decisão final do órgão.
Por que o foco no “feed sem cadastro”?
A idade mínima para ter uma conta no TikTok, de acordo com as políticas da rede, é de 13 anos. Mesmo assim, ainda é possível ter acesso aos conteúdos da plataforma sem a necessidade de login por meio do recurso “feed sem cadastro”. De acordo com a ANPD, esse mecanismo “escancara o acesso de crianças à plataforma, mesmo após serem barradas na verificação de idade, permitindo que continuem a navegar sem cadastro”.
A autoridade também apontou que há indícios de coleta de dados a partir do uso do feed sem cadastro para produção de perfilamento dos usuários, além de uma estratégia da plataforma que compromete os próprios mecanismos de verificação de idade, pois, mesmo identificando padrões de uso infantil, a rede não consegue impedir o uso de usuários não cadastrados.
“Ao permitir o acesso à plataforma TikTok por meio do feed sem cadastro, de modo a otimizar o seu modelo de negócio, que é baseado no tratamento intensivo de dados pessoais de usuários, a empresa deixou de adotar medidas de segurança para evitar a interação de crianças e adolescentes com conteúdos impróprios e coleta de seus dados para fins comerciais, para o direcionamento de publicidade abusiva”, disse Maria Mello.
De acordo com a pesquisa TIC Kids Online 2024, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 34% das crianças de 9 a 10 anos e 41% das crianças de 11 a 12 utilizam o TikTok várias vezes ao dia ou quase todos os dias no país.
“No caso das crianças, os altos riscos relacionados ao uso de seus dados, somados ao fato de que elas estão comprovadamente presentes na plataforma, exigem uma postura mais proativa e cuidadosa da empresa para evitar que elas se cadastrem e usem o serviço de forma inadequada”, explicou Mello.
Ainda de acordo com ela, tanto o TikTok como as outras plataformas de redes sociais devem adotar medidas para evitar riscos antes que eles aconteçam, especialmente ao lidar com dados de crianças e adolescentes. “É essencial que o TikTok desenvolva soluções técnicas de segurança por design, indo além da adoção de mecanismos de verificação etária, mas que também explique de forma clara e direta os procedimentos adotados”, conclui.
ANPD aperta cerco contra bigtechs
Neste semestre, a ANPD vem atuando próxima às big techs. Em julho, por exemplo, a autoridade suspendeu no país a política de privacidade da Meta que autoriza o uso de dados pessoais publicados em suas redes sociais para o treinamento de sistemas de Inteligência Artificial. A decisão foi revista em agosto após a empresa se comprometer a realizar uma série de medidas, como notificar às pessoas sobre o treinamento e deixar mais claros os mecanismos de se opor ao uso dos dados, se esta for a decisão do usuário.
Em outubro, foi a vez do X (antigo Twitter) entrar na mira do órgão após a rede atualizar, sem alarde, a política de privacidade, tornando obrigatória a coleta de dados dos usuários para o treinamento de IA. Na época, a ANPD afirmou que estava entrando em contato com os representantes da rede para pedir mais explicações.
“Os casos que a ANPD atuou [em relação às big techs] são casos graves e que têm grandes repercussões nacionais”, afirmou Zanatta. “Ela está correta em focalizar esses casos em que a coletividade como um todo é afetada, e é um movimento que se espera que se intensifique no ano que vem.”