Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Viviane Castanheira e Suianne Souza. Para acessar, clique aqui.
Matéria do portal de notícias gospel Pleno.News, de 9 de outubro passado, destaca que o candidato à Prefeitura de São Paulo Guilherme Boulos (PSOL-SP) foi o mais votado nos presídios e unidades socioeducativas no 1º turno das eleições municipais, realizado em 6 de outubro. De acordo com o site evangélico, o resultado divulgado foi apurado com base nos dados dos boletins de urna das unidades prisionais.
Ainda segundo o Pleno.News, apenas 484 presos exerceram seu direito ao voto dentro dessas unidades, destes, 234 (48,3%) votaram em Guilherme Boulos (PSOL),124 (25,62%) em Pablo Marçal (PRTB), 74 (15,29%) em Tábata Amaral (PSB) e 46 (9,5%) no atual prefeito Ricardo Nunes (MDB). Também receberam votos em unidades prisionais o apresentador José Luiz Datena (PSDB), com quatro votos (0,82%), Marina Helena (Novo) e Ricardo Senese (Unidade Popular), com um voto cada (0,20%).
Imagem: reprodução/Pleno.News
Bereia apurou que outros sites também noticiaram essa informação com títulos semelhantes ao do site gospel. O portal de notícias da Rede Record R7, além de frisar a vitória do candidato psolista nas unidades prisionais, ressaltou no subtítulo que Marçal foi o mais votado no presídio Romão Gomes, onde policiais cumprem penas.
Os sites do Poder 360 e da Rádio Bandeirantes, por sua vez, apresentaram dados ligeiramente diferentes. Segundo o primeiro, veículo alinhado à direita política, Boulos obteve “mais de 50%” dos votos válidos (excluindo brancos e nulos) em 14 unidades de reclusão paulistanas, enquanto Pablo Marçal recebeu 22,91% dos votos válidos (107 votos). Tábata Amaral foi citada com 15,84% dos votos válidos, sem menção ao número exato de votos. Já o portal da Band não citou números absolutos, apenas porcentagens com pequenas diferenças percentuais.
Imagem: reprodução/Poder 360
Sob o título “Veja qual candidato à Prefeitura de SP obteve mais votos nos presídios”, o site Metrópolis, entretanto, é o que traz números mais divergentes. Para o portal, Boulos obteve 56% dos votos válidos, o equivalente a 110 dos 194 presos habilitados para votar. Pablo Marçal (PRTB) obteve 15%, equivalente a 30 votos; Tabata Amaral (PSB), 14%, equivalente a 28 votos; Ricardo Nunes (MDB) 11%, com 22 votos; enquanto José Luiz Datena (PSDB), com 2%, quatro votos.
Bereia checou os resultados
Todos os sites citados alegaram que fizeram o próprio levantamento a partir de dados fornecidos pelo TRE-SP. A equipe do Bereia realizou uma apuração detalhada dos votos nas seções eleitorais instaladas em centros de detenção e unidades socioeducativas de São Paulo, com base nos dados divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Ao analisar os boletins de urna de cada unidade prisional, de acordo com as zonas e seções eleitorais, os resultados confirmam a liderança de Guilherme Boulos (PSOL) com um total de 234 votos. Pablo Marçal (PRTB) ficou em segundo lugar, tendo recebido 124 votos, enquanto Tábata Amaral (PSB) obteve 74 votos, ficando em terceiro lugar. Essa análise confirma os dados mencionados previamente pelo Pleno.News, reforçando a predominância de Boulos nas votações em unidades prisionais.
O que diz o Tribunal Superior Eleitoral sobre votos de presos e internos?
De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presos provisórios – aqueles que ainda não foram condenados por decisão judicial definitiva – e jovens internados em unidades socioeducativas, como a Fundação Casa, têm o direito garantido de participar das eleições. Isso ocorre porque, nesses casos, os direitos políticos não são suspensos, o que permite que esses eleitores votem normalmente, conforme estipulado pela legislação brasileira.
No caso dos jovens internos, o direito de voto é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura a participação cívica de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de internação ou internação provisória. Já os presos provisórios mantêm seus direitos políticos intactos até que haja uma sentença judicial definitiva, o que permite sua inclusão no processo eleitoral.
Os presos provisórios são aqueles que ainda não foram julgados e, portanto, não foram condenados. Estão aguardando o julgamento em regime fechado ou semiaberto. A prisão provisória, também conhecida como prisão cautelar, é uma medida excepcional e só pode ser decretada por um juiz em casos específicos. Ela serve para garantir a ordem pública, evitar a fuga do acusado, impedir a obstrução da justiça ou assegurar a aplicação da lei penal. Como estes presos não possuem uma condenação transitada em julgado (sem possibilidade de recurso), podem votar.
Vale ressaltar que presos condenados têm seus direitos políticos cassados, não têm direito ao voto. Só podem participar do pleito depois de cumprirem a pena imposta pelo juiz no fim do processo. Quando a pessoa sofre uma condenação, independente do seu regime (fechado, semiaberto ou aberto), ela tem os seus direitos políticos suspensos, não pode votar, nem ser votada, de acordo com o artigo 15 da Constituição Federal.
O processo de votação nessas unidades prisionais e de internação segue uma série de normas rigorosas para garantir a segurança e o sigilo do voto. A organização das seções eleitorais nestes locais é disciplinada pela Resolução TSE nº 23.736/2024, que especifica todos os procedimentos a serem seguidos. A instalação de urnas eletrônicas nas unidades depende de uma estrutura mínima, como a presença de, ao menos, 20 eleitores aptos. Além disso, as mesárias e mesários são escolhidos entre servidores do Ministério Público ou do sistema penitenciário (desde que não sejam agentes diretamente envolvidos na segurança), e advogados, para assegurar a neutralidade e a regularidade do processo.
Após o encerramento da votação, os resultados são registrados em Boletins de Urna (BU), que são documentos físicos impressos pela urna eletrônica, nos quais estão transcritos todos os votos computados naquela seção. Em seguida, o presidente da seção eleitoral retira a mídia do resultado da urna, que é um dispositivo eletrônico semelhante a um pendrive, contendo os dados de votação. Tanto o BU quanto a mídia de resultado são enviados ao cartório eleitoral local, onde os dados são conferidos e processados. A partir daí, as informações são transmitidas eletronicamente ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília, para a totalização e conferência final dos votos. Esse processo garante que a apuração seja segura, transparente e eficaz, mesmo em contextos como unidades prisionais e de internação, onde a logística é mais desafiadora.
Em todo o estado de São Paulo foram instaladas 51 seções eleitorais em estabelecimentos prisionais e unidades de internação, distribuídas em 27 municípios. Com isso, 2.729 presos provisórios e jovens internos tiveram direito ao voto no primeiro turno das eleições de 2024. Nas eleições realizadas em presídios, as mesárias e os mesários, três por seção, são selecionados entre servidores do Ministério Público ou do sistema penitenciário, desde que não sejam agentes, ou entre advogados.
Populismo penal como apelo político
São Paulo tem o maior colégio eleitoral do país, 22% dos eleitores brasileiros, 34.403.609, estão na cidade. O número de presos votantes, 484, é irrelevante se comparado com o total de presos que compõem o sistema carcerário paulistano, 30.170, de acordo com levantamento feito por Bereia, com base nos dados disponibilizados no site da Secretaria de Administração Penitenciária.
Além disso, é importante ressaltar que apenas presos provisórios, que não foram condenados e ainda podem recorrer da sentença e, inclusive, serem inocentados, podem votar. Então, diante dos dados apresentados, matérias como a do Pleno.News e dos demais veículos têm um significado que leva a questionar a motivação das informações divulgadas nesses veículos.
Bereia ouviu o coordenador da área de Direitos e Sistema de Justiça do Instituto de Estudos da Religião (ISER) Lucas Matos sobre a questão. Para ele, há a mobilização, ainda que velada, da ideia que liga todas as pessoas privadas de liberdade ao estereótipo racista do criminoso violento, organicamente associado a grupos do varejo de drogas.
“As reportagens flertam com a conhecida tática da direita política de tentar criminalizar setores políticos por qualquer vinculação com a questão prisional, seja ela real, como no caso de ativistas que lutam pelos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade, ou criada a partir de dados mobilizados de forma tendenciosa, como nesse caso”, explica Matos.
O advogado ressalta: “Em uma chave mais conjuntural, me parece que a quantidade de reportagens com esse destaque se insere na dinâmica específica da eleição da capital paulista, que está sendo marcada, entre outras coisas, por troca de acusações sobre supostas vinculações de candidatos, como o atual prefeito Ricardo Nunes, com o PCC”, afirma o coordenador referindo-se à organização criminosa Primeiro Comando da Capital.
Matos destaca ainda que o caráter oportunista na divulgação desta informação nesse conjunto de reportagens está inserida em um grave quadro de desinformação em relação a temas como sistema prisional, sistema socioeducativo e segurança pública no Brasil. “Podemos falar, sem rodeios, que esses temas são tratados pela imprensa no Brasil, e não só pelos veículos estritamente conservadores, a partir da reprodução de estereótipos racistas e com pouco interesse por pesquisas sérias e independentes da lógica punitivista que naturaliza a violência de Estado”, disse Lucas Mattos.
De acordo com o coordenador do ISER, além da impropriedade metodológica de tratar números tão pequenos em uma chave estatística, existem questões de fundo que as reportagens nem cogitam discutir. “A população prisional (no Brasil) é composta basicamente por jovens negros das frações mais precarizadas da classe trabalhadora. A afirmação da seletividade desse sistema é um dado incontornável, demonstrado cientificamente, e consequência direta do fato de que toda a sociedade infringe regras e comete crimes, mas só uma parcela determinada é punida e encarcerada”, lamenta o advogado.
Matos aponta ainda que chama a atenção que nenhuma das reportagens demonstra alguma curiosidade sobre o perfil das pessoas privadas de liberdade que votaram. “Isso contraria a própria lógica do debate eleitoral atual, muito preocupado sobre como dimensões como renda, território, faixa etária, raça, gênero e religião influenciam nos votos. Mais uma vez, estamos diante da reprodução de estereótipos que limitam essas pessoas ao rótulo de criminosas e encarceradas, o que seria suficiente para definir a sua preferência eleitoral. Esses estereótipos, vale dizer, compõem o quadro de desumanização produzida pelo Estado e pela sociedade contra as pessoas privadas de liberdade, seus familiares e suas sociabilidades”, finaliza.
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Bereia avalia a matéria do Pleno.News, bem como as dos demais veículos que publicaram na mesma temática, como enganosa. Além de usar em seu título dado estatístico para velar o pequeno e irrisório número de votos que foram computados nos presídios, 484, não deixa clara a situação real dos votantes, que o texto tenta relacionar ao candidato Guilherme Boulos. São presos que ainda não foram condenados e, portanto, ainda não podem ser caracterizados como criminosos. Apenas usam a linguagem jurídica para tanto “sem condenação criminal transitada em julgado” o que dificulta o entendimento do leitor.
Além disso, omite a informação de que a grande maioria dos presos, 30.170, estes sim julgados e condenados, não podem votar. Se considerarmos o universo eleitoral do município paulista, que tem o maior colégio eleitoral do país – 34.403.609 – e compararmos com o número de eleitores aptos a votar em presídios e unidades de internação, 484, verifica-se que é um percentual ínfimo e não reflete o eleitorado do candidato psolista que recebeu 1.776.127 (29,07% dos votos válidos) da população paulistana. Isto torna a classificação do título da matéria como sensacionalista, apesar de o veículo usar dados numéricos corretos.
Referências de checagem:
Band
https://www.band.uol.com.br/radio-bandeirantes/noticias/com-48-dos-votos-boulos-foi-o-candidato-mais-votado-nos-presidios-de-sao-paulo-202410081235 – Acesso 18 de outubro 24
Metrópoles
https://www.metropoles.com/sao-paulo/veja-qual-candidato-a-prefeitura-de-sp-obteve-mais-votos-nos-presidios – Acesso 18 de outubro 24
TRE-SP
https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Outubro/2-700-presos-provisorios-e-jovens-internos-poderao-votar-no-estado-de-sao-paulo – Acesso 18 de outubro 24
https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Outubro/2-700-presos-provisorios-e-jovens-internos-poderao-votar-no-estado-de-sao-paulo – Acesso 18 de outubro 24
https://www.tre-sp.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Julho/eleicoes-2024-sp-tem-22-do-total-de-155-9-milhoes-de-eleitoras-e-eleitores-do-pais – Acesso 18 de outubro 24
TSE
https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Outubro/ricardo-nunes-mdb-e-guilherme-boulos-psol-vao-disputar-o-2o-turno-para-a-prefeitura-de-sao-paulo – Acesso 18 de outubro 24
https://dadosabertos.tse.jus.br/dataset/?tags=Ano+2024 – Acesso 18 de outubro 24
https://resultados.tse.jus.br/oficial/app/index.html#/eleicao;e=e619;uf=sp;mu=71072;ufbu=sp;mubu=71072;zn=0001;se=0001;tipo=3/dados-de-urna/boletim-de-urna – Acesso 18 de outubro 24
Foto de capa: Câmara dos Deputados