Eleições 2024: Brasil tem falhado em atualizar legislação contra fake news, dizem especialistas

Publicado originalmente em G1 por Nathalia Sarmento. Para acessar, clique aqui.

Uso da ‘inteligência artificial generativa’ nas campanhas é uma das preocupações; TSE e Congresso tentam estruturar novas regras, mas elas ainda não valem para pleito deste ano.

No próximo mês de outubro, eleitores de todo o país vão às urnas para escolher novos prefeitos, vice-prefeitos e vereadores nos 5.568 municípios do país. Assim como das últimas vezes, o desafio de escolher o melhor candidato deve envolver um agravante: a avalanche de informações falsas sobre a votação e sobre os candidatos.

A cada ano, as estratégias para disseminar vídeos, imagens e textos falsos para manchar a integridade de candidatos se tornam mais elaboradas. E, segundo especialistas ouvidos pelo g1, o governo e o Congresso têm falhado em acompanhar esse ritmo no enfrentamento às fake news.

A principal preocupação, segundo esses especialistas, é com a viralização de vídeos e áudios manipulados pela “inteligência artificial generativa” – aquela que resulta na criação de novos conteúdos. São os chamados “deepfakes” 

Materiais desse tipo se tornaram uma “febre”, por exemplo, nas eleições presidenciais argentinas em 2023, corrompendo os depoimentos de candidatos e atrapalhando o direito de cada eleitor de definir, de forma democrática e bem-informada, o seu voto.

Ainda que novas regras não possam mais afetar as candidaturas para este ano (a lei exige antecedência mínima de um ano), os especialistas ouvidos pelo g1 consideram fundamental que o debate prossiga e que o Brasil atualize as regras de combate à desinformação, sobretudo em contexto eleitoral.

“O arcabouço legislativo que temos atualmente dá conta de grande parte do problema. Contudo, a inteligência artificial, o ‘deep fake’ e os ‘bots’ são exemplos de temas sobre os quais o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] ainda deve se debruçar”, diz o advogado Rodrigo Terra Cyrineu, da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

“O grande problema do Congresso Nacional é que ele demanda uma grande saturação do tema, por se tratarem de duas Casas Legislativas”, adicionou.

TSE e inteligência artificial

Enquanto aguarda os avanços no Legislativo, o TSE tem empenhado esforços para estruturar regras que, pela primeira vez na história, enquadrem o uso da inteligência artificial nas eleições – seja na internet ou no próprio horário eleitoral gratuito.

Versões iniciais de resoluções foram divulgadas pelo Tribunal no início do mês e serão debatidas em audiências públicas entre os dias 23 e 25 de janeiro. Depois, a expectativa é que sejam votadas em plenário até março.

Autora do livro “Manual do Candidato”, a advogada Samara Ohanne vê com bons olhos os temas incluídos nessas minutas de resolução (entenda mais abaixo), mas critica o fato de os documentos não preverem a responsabilização das plataformas digitais.

Segundo Samara, o TSE ainda não incluiu nas propostas qualquer instrumento para obrigar sites e redes sociais a excluir conteúdos ou bloquear usuários que façam mau uso das ferramentas.

“A retirada de imediato da postagem deve ser trabalhada. A partir do momento em que a Justiça constata que o conteúdo viola algum direito, a plataforma deve ser penalizada, caso já tenha sido notificada sobre a infração e deixado disponível as informações para outros usuários. A penalidade das plataformas é uma boa saída”, opina a advogada.

O professor de direito da Universidade de São Paulo (USP) Rubens Beçak, por sua vez, avalia que o TSE tem percebido “mais rapidamente” as mudanças na comunicação e considera “um avanço” o fato de os partidos notificarem que houve uso de inteligência artificial na propaganda eleitoral.

“A inteligência artificial é um conjunto de mecanismos que cria uma realidade quase que perfeita. As pessoas podem montar na foto de alguém, uma fala pretenciosa, e isso ludibria. O Tribunal mandou um recado muito claro de que há uma limitação, e que a iteligência deve ser usada com consciência”, afirma o professor.

TSE pauta discussões no Congresso

Vale ressaltar que não existe uma legislação específica que delimite critérios de fiscalização para notícias falsas no Brasil, muito embora tramitem no Congresso Nacional propostas sobre tema, como é o caso projeto de lei conhecido como “PL das Fake News”.

O relator do PL, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), afirmou ao blog da Daniela Limaque pretende retomar a articulação com os parlamentares para aprovar o texto na volta do recesso parlamentar, em fevereiro (leia mais abaixo).

O advogado Rodrigo Terra Cyrineu acredita que ao longo dos anos eleitorais o TSE tem colecionado um histórico de “pautador” de discussões, e que as decisões do órgão fomentam reações no Congresso — que demora a se posicionar em razão do tempo gasto durante a tramitação dos processos nas Casas (Câmara e Senado).

“A existência de um diálogo entre as instituições é uma experiência brasileira histórica. Nesse contexto, o TSE atua como uma espécie de resolvedor imediato. Primeiro, o Tribunal dá o aval para as questões e, depois, com mais calma, o Congresso regulamenta. Tem funcionado bem dessa forma, as questões se afloram mais nas eleições”, afirmou o advogado.

Regulamentação das eleições

As minutas que estabelecem critérios para a regulamentação das eleições municipais de 2024 foram apresentadas no início do mês pela vice-presidente do TSE, Cármen Lúcia. A ministra vai presidir o órgão durante as eleições em 6 de outubro, visto que o mandato do então presidente Alexandre de Moraes termina em junho de 2024.

Com as audiências públicas dos dias 23, 24 e 25 de janeiro, o TSE busca receber sugestões para aperfeiçoar essas minutas de resoluções. E entre os temas que serão tratados nesses encontros estão:

  • registro de candidatura;
  • Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC);
  • prestação de contas;
  • propaganda eleitoral;
  • pesquisas eleitorais;
  • auditoria e fiscalização;
  • representações e reclamações;
  • sistemas eleitorais;
  • atos gerais do processo eleitoral;
  • e ilícitos eleitorais.

Veja, resumidamente, o que dizem alguns dos tópicos de uma das mintuas que aborda a propaganda eleitoral:

  • durante a pré-campanha, o candidato não poderá fazer propaganda pedindo voto explicitamente ao público;
  • em casos da reprodução de desinformação que comprometa a integridade do processo eleitoral na internet, o TSE terá o direito de polícia (capacidade de limitar direitos individuais) frente à remoção ou à manutenção de conteúdos idênticos);
  • a propaganda eleitoral que utilize tecnologias digitais para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons (incluindo o uso de inteligência artificial) deverá informar o uso da tecnologia durante a exibição ou postagem;
  • é proibida a exibição de conteúdos falsos ou descontextualizados, que comprometam o andamento das eleições;
  • é proibida desde 48h antes até 24h depois da eleição, a circulação de propaganda eleitoral na internet.

Nas últimas eleições presidenciais, em 2022, o TSE elaborou um Grupo de Análise e Monitoramento responsável por avaliar se o conteúdo era “desinformativo” e acionava as plataformas relacionadas.

Legislação atual sobre fake news

Um termo similar ao de fake news foi introduzido na Justiça Eleitoral a partir da Resolução n° 23.551, publicada pelo TSE em dezembro de 2017. Na ocasião, nomearam a prática de “saberes inverídicos”.

“A livre manifestação do pensamento do eleitor identificado ou identificável na internet somente é passível de limitação quando ocorrer ofensa à honra de terceiros ou divulgação de fatos sabiamente inverídicos”, dizia o documento.

A resolução foi implementada de fato em junho de 2018, após denúncias do Diretório Nacional da Rede Sustentabilidade sobre notícias falsas estarem sendo vinculadas em uma rede social a respeito da então pré-candidata à presidência da República Marina Silva.

Na época, o ministro substituto do TSE Sérgio Banhos, que estava à frente do processo, determinou que a plataforma tirasse a publicação do ar no prazo de 48 horas.

Para a professora da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Anna Bentes, as eleições de 2018 foram “marcadas pela desinformação”.

“Os resultados instigaram uma série de debates na sociedade sobre a influência que essas notícias podem exercer sobre candidato na hora do voto. Tivemos o inquérito das fake news, CPMI das Fake News, além do projeto embrionário de regulamentação das plataformas digitais”, pontou Anna, que também é membro do Conselho Diretivo da Rede Latino Americana de Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade.

Após a Reforma Eleitoral de 2021, o TSE instituiu no Código Eleitoral o “Artigo 323”, que proibiu a divulgação de “saber inverídico” nas campanhas eleitorais.

Assim, ficou vedado, conforme a lei:

“Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado.”

A pena para quem é pego descumprindo a norma é de dois meses a um ano de detenção ou o pagamento de 120 a 150 dias-multa.

PL das Fake News

O relator do projeto de lei das fake news, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), sinalizou a retomada, em fevereiro, após o recesso do Congresso Nacional, das articulações com os parlamentares para aprovar o texto na Câmara dos Deputados.

O projeto foi retirado de pauta em maio de 2023, pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), após a solicitação do deputado Orlando Silva, em razão do baixo quórum para votação.

O texto começou a tramitar no Congresso em 2020 e chegou a ser aprovado pelo Senado no mesmo ano, com 44 votos “sim” e 32 “não”, além de duas abstenções. Já na Câmara, a PL não teve encaminhamento.

Em linhas gerais, o projeto torna crime a promoção ou financiamento de divulgação em massa de mensagens com conteúdo inverídico por meio de conta automatizada, as chamadas contas-robôs.

Além disso, estabelece que:

  • provedores tenham representação por pessoa jurídica no Brasil;
  • provedores serão responsabilizados pelos conteúdos de terceiros cuja distribuição tenha sido impulsionada por pagamento;
  • plataformas digitais mantenham regras transparentes de moderação;
  • a retirada imediata de conteúdos que violem direitos de crianças e adolescentes;
  • conteúdos jornalísticos utilizados por provedores deverão ser remunerados;
  • e a extensão da imunidade parlamentar às redes sociais.

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