Eficácia da PrEP no combate ao HIV não elimina resistência e estigma

Publicado originalmente Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Saúde | Preconceito contra a Profilaxia Pré-Exposição e seus usuários perdura até mesmo entre profissionais da área médica, mas essa é uma estratégia consolidada contra a infecção pelo vírus do HIV, reconhecida pela OMS e distribuída pelo SUS

*Foto: Com seu tratamento consistindo em um comprido por dia, sem horário pré-definido,
a PrEP é eficaz e traz proteção àquele que a toma regularmente (Crédito: Marcelo Pires/JU)

No centro de Porto Alegre, no quinto andar da Unidade Básica de Saúde Santa Marta, que abriga um Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), um dos pedidos mais frequentes de quem chega é feito quase sempre num sussurro: “Eu queria saber como eu faço pra começar a tomar aquele remédio, a PrEP”.

A PrEP, nome pelo qual se popularizou a Profilaxia Pré-Exposição, é um método de prevenção contra a infecção pelo vírus HIV. O programa consiste na tomada de comprimidos que combinam dois antirretrovirais — o tenofovir e a entricitabina. Os medicamentos podem ser usados de forma contínua, com a ingestão de um comprimido por dia, ou sob demanda, método que consiste no uso de dois comprimidos no dia da relação sexual, um no dia seguinte e, por fim, mais um no dia posterior a esse. O medicamento age bloqueando os caminhos do HIV, caso o organismo entre em contato com o vírus, prevenindo a instalação da infecção. Se a medicação é tomada corretamente, o nível de eficácia da PrEP no combate ao HIV é superior a 90%. Isso, porém, não exclui a necessidade do uso de preservativos, inclusive porque também existem outras infecções sexualmente transmissíveis e que não estão cobertas pelo tratamento preventivo – caso de sífilis e gonorreia, por exemplo.

Desde 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o uso da PrEP para pessoas com risco elevado de contração do HIV. No Brasil, o medicamento é distribuído gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2017. Quando oferecida pelo SUS, a PrEP segue normas rígidas de prescrição e continuidade, que exigem avaliações periódicas de saúde, como conferência de peso, avaliação de risco à exposição ao vírus e monitoramento da função renal, além de testagens regulares de HIV e outras ISTs para todos os usuários. Mesmo assim, a profilaxia ainda encontra resistência em ser aceita como um método preventivo necessário e eficaz tanto dentro da área médica quanto no contexto social mais amplo. Por isso, na capital do estado com mais mortes em decorrência da AIDS no Brasil, quem busca proteção sente a necessidade de abafar seu pedido.

Fachada de centro de saúde aparece em destaque, com um paciente escorado em uma das paredes e outra, entrando na porta do local.
Localizada no Centro de Porto Alegre, a Unidade Básica de Saúde Santa Marta é um dos locais que oferece PrEP para moradores da capital que se enquadrem nas categorias abrangidas pelo programa do SUS. (Foto: Marcelo Pires/JU)
Quem a PrEP protege?

Para o coordenador do Centro de Referência em Direitos Humanos (CDRH) da UFRGS, Guilherme Ferreira, parte da resistência contra a ampla propagação da PrEP vem da sua origem e das populações para quem o medicamento foi pensado. “Historicamente, a PrEP veio para proteger pessoas que não conseguem aderir à camisinha”, explica.

“Então surge uma série de pensamentos comuns da sociedade que dizem que a gente está investindo dinheiro e tempo em uma população que não merece ser cuidada e protegida”

Guilherme Ferreira, coordenador do CRDH da UFRGS

O Ministério da Saúde define como grupos de risco aumentado para infecção pelo vírus HIV os profissionais do sexo, homens que fazem sexo com outros homens e pessoas transgênero. No entanto, independentemente da orientação sexual e da identidade de gênero, o fator mais importante de avaliação são os padrões de atividade sexual de cada paciente: a profilaxia deve ser considerada para qualquer pessoa acima dos 15 anos que tenha múltiplos parceiros íntimos e não utilize camisinha em todas as relações.

Homem branco, de 23 anos e com cabelo raspado aparece sorrindo e posando para foto, enquanto está sentado em um banco de uma praça. Ao seu lado, está uma mochila.
O estudante de Letras Bruno Campos, de 23 anos, buscou informações em um posto próximo de sua casa em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, e desde então iniciou o acompanhamento com a PrEP. Hoje, ele afirma sentir-se mais seguro (Foto: Marcelo Pires)

No Brasil, segundo o Painel da PrEP, 84,5% dos usuários da PrEP são homens cisgênero que fazem sexo com outros homens, o que representa a maior população entre os usuários da profilaxia. Apesar de pessoas trans também se enquadrarem entre os grupos de risco para infecção pelo HIV, entre essa população os números de adesão são significativamente mais baixos: 3,5% dos usuários da PrEP são mulheres trans, enquanto travestis e homens trans, somados, representam apenas 0,8% dos pacientes que aderem ao método preventivo. Para o médico infectologista Eduardo Sprinz, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Médicas da UFRGS, os números têm uma explicação. “Talvez muitas dessas pessoas mais vulneráveis são as que menos tenham acesso aos sistemas de saúde”, pondera. 

Já a presidente do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/RS), Carla Almeida, atribui os dados a uma estratégia de comunicação e divulgação falha por parte dos serviços de saúde pública. “A linguagem não é adequada culturalmente, não é uma linguagem acessível e de fácil compreensão, principalmente quando falamos de populações mais vulnerabilizadas”, aponta.

Mãos de homem branco, de 23 anos, aparecem em destaque segurando pote com comprimidos de medicamento.
Disponibilizada gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP) está presente nos postos de todo território nacional desde o dia 1 de dezembro de 2017, atuando de forma eficaz na prevenção de infecção pelo HIV (Foto: Marcelo Pires/JU)
Resistência no campo médico

Em Porto Alegre, o CTA da Unidade Básica de Saúde Santa Marta virou referência para pacientes que buscam iniciar a adesão à PrEP, realizando os exames preliminares e o encaminhamento para a iniciação da profilaxia. “A gente faz exames clínicos, de laboratório, verificamos a pré-existência do HIV no organismo e, estando tudo certo, prescrevemos a prevenção”, explica a enfermeira Adriana de Oliveira. No entanto, ela ressalta que, apesar de o CTA oferecer um lugar seguro para todos em busca da PrEP, a distribuição e triagem deveriam ser uma responsabilidade de todas as UBS, mas isso não é observado na prática. “Todos os profissionais de saúde do SUS são capacitados pra lidar com isso, mas existe uma falta de vontade, então encaminham pra gente”, explica.

Para Guilherme, também é evidente o receio de alguns profissionais da área médica em prescrever e lidar com pacientes em busca da PrEP, o que acaba apartando os usuários dos serviços de atenção primária do SUS e os enquadrando em um serviço particularizado. “Alguns profissionais não querem tomar para si essa responsabilidade de oferta, então isso vira uma prestação de serviço especializado quando poderia ser um serviço da atenção básica”, observa.

Distribuição e divulgação

Mesmo com a falta de distribuição universal e o estigma social, os números de adesão à PrEP seguem crescendo. Entre 2022 e 2023, houve um aumento de 47% nos novos usuários da profilaxia através do SUS. Desde 2018, quando o Ministério da Saúde passou a contabilizar os novos aderentes, o aumento foi de quase 530% — de 4.642 em 2018 para mais de 29 mil em 2023. Desde a implementação da distribuição pelo SUS, o Brasil se consolidou como o país com maior quantidade de usuários da PrEP na América Latina.

Embora os números gerais sejam positivos, ainda existe uma discrepância entre as regiões brasileiras no que diz respeito à distribuição e utilização da PrEP. Ainda de acordo com o Painel da PrEP, juntas, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste somam pouco mais de 37 mil usuários, quase 25 mil a menos que os existentes apenas no estado de São Paulo. Além disso, no que diz respeito à etnia dos adeptos do método preventivo, também há uma assimetria notável: 55% dos usuários se autodeclaram brancos ou amarelos, enquanto pessoas pretas e pardas somam 44% e indígenas representam somente 0,41% das pessoas que aderem à profilaxia. Para Carla, os números refletem as disparidades sociais observadas em todos os âmbitos da sociedade. “Os dados de PrEP refletem muito o quanto essas barreiras estruturantes impactam não só o acesso às estratégias de prevenção como também o acesso à informação”, afirma.

Segundo Eduardo, ainda que haja um inegável desequilíbrio na distribuição e uma resistência médica e social, a PrEP segue sendo um mecanismo essencial para a diminuição de casos e a construção de um panorama mais positivo no que diz respeito ao HIV e à AIDS no Brasil. “Ela é a grande vacina que a gente tem contra o HIV nos dias de hoje”, enfatiza. No entanto, ele destaca a necessidade coletiva de pôr em prática estratégias de captação e retenção de pessoas usuárias da profilaxia, com enfoque especial nos grupos mais vulnerabilizados. “A gente faz um esforço, mas a PrEP ainda está engatinhando. Precisamos continuar batalhando e divulgando.”

Onde buscar a PrEP

No Rio Grande do Sul, o governo estadual disponibiliza uma lista dos municípios gaúchos e unidades de saúde dispensadoras de PrEP. O governo federal também disponibiliza um banco de dados com informações sobre onde buscar a prevenção em todo o território nacional.


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