Educação para as relações étnico-raciais promove o contato dos estudantes do Colégio de Aplicação com saberes tradicionais

Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Rodrigo Flores. Para acessar, clique aqui.

Ensino | Atividades buscam fomentar visões mais plurais da história e da sociedade brasileira e despertar o pensamento crítico sobre o cotidiano

*Entrada da exposição Guarani Mbya, em cartaz no Museu da UFRGS, com a inscrição “aguyjevete”, uma saudação de boas-vindas na língua guarani (Foto: Ana Terra Firmino/dez. 2022)

Um salão enorme se abre diante de quem entra e, ao fundo, chama a atenção uma série de banners coloridos. Chegando perto, vejo ilustrações de pessoas negras, com nomes e breves biografias. A exposição vai de Zumbi dos Palmares a Marielle Franco, passando por Lupicínio Rodrigues, Carolina de Jesus, entre outros. Um pouco depois, entra no salão e se posiciona no pátio interno um grupo grande de adultos, crianças e adolescentes mbyá guarani com instrumentos, cestas e cocares. Então, chegam os alunos do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRGS e formam um semicírculo. Começa a música.

Esse é o cenário de uma atividade realizada em novembro dentro do programa Educação das Relações Étnico-Raciais do CAp, que começou a ser desenvolvido pela professora Tanise Muller em 2012. A ideia começou quando, durante uma aula, uma aluna disse que “os índios do livro não são que nem os que eu vejo em Porto Alegre”. A imagem que ilustrava o livro didático era A Primeira Missa do Brasil, de Victor Meirelles, obra já clássica – e pintada mais de 360 anos após o evento histórico – que representa uma versão mitificada do encontro entre portugueses e tupis. Os europeus e a cruz estão ao centro, reverentes e iluminados pelos raios de sol, enquanto a massa de nativos nus se amontoa ao redor, nas matas e árvores, indistinguíveis uns dos outros ao ponto de estarem desfocados nas bordas.

Essa discrepância entre a realidade e o livro didático levou Tanise a buscar um contato maior com as aldeias reais. O processo não foi fácil: as primeiras aldeias não foram tão receptivas à ideia. Até que “alguém na Universidade me falou do [cacique guarani] Vhera Poty, fui pesquisar e vi que era alguém jovem, com contato com professores e que tinha essa visão de promover esse contato”. Assim, foi organizada a primeira visita de alunos do Colégio de Aplicação à Aldeia Pindó Mirim – que, desde então, se tornou anual. E a presença indígena na escola também começou a acontecer de forma recorrente.

Com o passar do tempo, Tanise foi descobrindo aliados, como outros professores ativos na educação antirracista, e novas ideias foram surgindo, como trazer mestres de diversos saberes para o espaço escolar. Um deles é Gercy de Mattos, conhecido como mestre Cica, que ministra aulas de diversidade africana e idioma iorubá. “Não tenho formação acadêmica, não sou professor da rede de educação. Sou professor de iorubá, o qual eu posso ser porque sou representante no Colegiado Setorial de Culturas Populares do Estado do Rio Grande do Sul”, afirma o mestre, destacando a importância da parceria com a Universidade.

Mas o maior foco do programa é promover um pensamento crítico no cotidiano. Atividades que visam despertar o interesse científico nas crianças, antes feitas principalmente no Museu de Ciência e Tecnologia da PUCRS, agora também ocorrem na Aldeia Pindó Mirim, onde os alunos têm contato não apenas com os indígenas, mas com sua forma de viver e com um outro olhar para a natureza.

A função do projeto não é tanto propor atividades pontuais, mas sim auxiliar e garantir o cumprimento da lei n.º 11.645, de 10 de março de 2008, que torna obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira e indígena e africana na educação básica. Conforme a legislação, a educação para as relações étnico-raciais (ERER) precisa ir além de uma disciplina independente ou em datas comemorativas, devendo estar “no âmbito de todo o currículo escolar”.

Apesar de a obrigatoriedade existir no papel, sua implementação é bem difícil, aponta Lucas Pesce, bolsista do projeto e estudante de Licenciatura em Ciências Sociais na UFRGS.

“Os professores têm que ser incentivados para que, a partir do local de atuação e do estudo deles, se vejam como agentes da educação para as relações étnico-raciais, se vejam como potenciais agentes e se coloquem como seres propositivos, pois é isso que a lei prevê”

Lucas Pesce

Para se adequar à legislação, foi necessário enfrentar resistência da parte de pais e professores. Desde um militar, pai de aluno, que se propôs a colocar um batalhão do Exército entre os indígenas e as crianças, pois “eles [indígenas] podem ser agressivos e usar vocês de reféns”, até professores que viam com descaso ou incômodo as atividades propostas. Tanise aprendeu a contornar alguns desses empecilhos: “Quando eu era mais nova eu batia de frente, agora percebo que se eu bater de frente perco de cara um aliado; se vou pelas beiradas, não.”

Uma das principais conquistas é a viabilização da ida dos indígenas até a escola. Isso depende de ao menos duas coisas: transporte e refeição. O primeiro é sempre disponibilizado pela própria Universidade. Já a alimentação pode ser oferecida nos Restaurantes Universitários da UFRGS, o que depende de um trâmite burocrático, que, nos últimos anos, tem dado certo.

O principal empecilho é o financeiro: apesar da legislação, não existe financiamento para o projeto. Os convidados, palestrantes, artistas não recebem cachê – se recebem, é por resultado de “vaquinhas” feitas pelos professores. Isso limita significativamente a extensão que a ERER pode tomar, dificultando sua expansão para todas as etapas escolares.

Continuidade

Por ser encabeçado por uma professora das “alphas” (primeiro a quinto ano do Ensino Fundamental), o projeto acaba limitado a essas séries, sem continuidade formal nos anos seguintes. Os próprios alunos notam isso: “Nas alphas tem um trabalho desde o primeiro ano e, quando se chega nas turmas mais avançadas, parece que tudo começa do zero”, conta a estudante do sétimo ano do CAp Maria Fernanda Baialardy.

A partir disso, um grupo de cinco alunos se esforça para levar as discussões sobre relações étnico-raciais para as séries posteriores. A iniciativa deu resultado, gerando, inclusive, um grupo mais organizado. “Antes era só online, não tinha onde ficar, era uma vez por semana; agora é presencial na sala dos professores”, destaca Maria Fernanda. Esse grupo, entre outras coisas, levanta debates étnico-raciais sobre temas do cotidiano dos alunos. “A gente traz coisas do dia a dia, notícias que a gente vê. Por exemplo, existem personagens que perderam sua etnia nos filmes live action: Ariel negra não pode, mas outro personagem branco pode?”, questiona a estudante, referindo-se aos recentes ataques racistas direcionados à atriz Halle Bailey, que interpreta a personagem Ariel no filme A Pequena Sereia.

Num país de maioria negra e de descendentes de povos nativos, promover uma educação para além do universo “ocidental” pode levar os alunos a aprenderem sobre si mesmos, suas próprias culturas e vivências, e também as de outros. Os efeitos vão se notando: a visão colonial e eurocêntrica vai se desfazendo e dando lugar a uma leitura mais plural. Os “índios” de Victor Meirelles dão lugar a indígenas reais, o grupo de pessoas nuas e “selvagens” é substituído no imaginário e vivência das crianças pelos adolescentes de 2022, com suas roupas de FreeFire, celulares e cânticos em guarani.

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