Educação menstrual desempenha papel importante no autoconhecimento e na conscientização sobre o ciclo

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Saúde | Projetos buscam romper o tabu sobre o tema e promover o debate sobre menstruação entre públicos de diferentes gêneros e faixas etárias

*Na biblioteca da EMEF Saint Hilaire, zona leste de Porto Alegre, estudantes podem acessar produtos de higiene menstrual (Foto: Pietro Scopel/JU)

Na Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire, em Porto Alegre, a menstruação não é tabu. Estudantes que precisam de absorventes ou de alívio para as cólicas típicas do fluxo sabem exatamente aonde ir. Além de uma vasta coleção de livros infantojuvenis e didáticos e brinquedos pedagógicos, a biblioteca da escola abriga um estoque de produtos de higiene menstrual.

As responsáveis pela implementação dessa cultura na escola são as Garotas de Vermelho, um grupo formado por alunas da Saint Hilaire para promover o debate livre e a conscientização sobre a menstruação entre estudantes do ensino básico. São meninas entre os 9 e 13 anos, algumas das quais nem tiveram a primeira menstruação, debatendo e incentivando a reflexão sobre o ciclo menstrual entre crianças e adolescentes.

A ideia de formar o Garotas de Vermelho surgiu da observação da realidade de colegas da Saint Hilaire em relação à menstruação. “A gente criou esse projeto porque a gente percebia que tinha muitas meninas aqui da nossa escola que tinham vergonha de falar sobre a própria menstruação”, conta Rayssa Ramos, de 10 anos. “Muitas vezes, elas não vinham à escola por não ter absorvente ou deixavam de participar da educação física por estarem menstruadas.”

O tema, que, como em tantas outras escolas, também era quase proibido entre os estudantes da Saint Hilaire, se tornou o foco da conversa nos encontros promovidos pelas Garotas de Vermelho. Seja por vergonha, seja por desconhecimento, as estudantes responsáveis pelo projeto notaram, de início, certa resistência dos alunos em participar do debate sobre menstruação. Foi apenas com tempo e incentivo que o peso do tabu foi removido da conversa, abrindo espaço para trocas e aprendizados. “A gente já vê totalmente a diferença, a escola toda hoje em dia fala disso”, conta Mariah Charão, de 12 anos.

O projeto fez tanto sucesso entre os estudantes da escola que cresceu cada vez mais. Hoje, além de palestrar e promover essas mesmas conversas em outras escolas e eventos, as Garotas de Vermelho se preparam para o lançamento de seu segundo livro, “Histórias de menstruação”. O primeiro, “Que sangue é esse, Joana?”, é um conto voltado para crianças a fim de introduzir o debate sobre a menstruação.

Para as Garotas de Vermelho, conversar sobre o ciclo menstrual desde cedo, entre todos os gêneros, é uma forma de transformar o debate de uma maneira positiva. “São crianças falando com crianças sobre menstruação”, reflete Giovana Viegas, de 13 anos. “A gente tá honrando as mulheres que, na nossa idade, não tiveram a oportunidade de falar sobre a menstruação.”

Garotas de Vermelho utilizam contação de histórias e outros meios lúdicos para educar crianças e adolescentes sobre menstruação. Na primeira foto, da esquerda para a direita, as alunas Rayssa Ramos, Mariah Charão e Giovana Viegas (Fotos: Pietro Scopel/JU)
A descoberta da menstruação

A menstruação é uma das fases do ciclo menstrual que ocorre a partir da menarca, que marca o início da puberdade e geralmente acontece entre os 11 e os 16 anos. Ela se caracteriza pelo sangramento proveniente da descamação do endométrio, o tecido que reveste o útero, que acontece quando não há fecundação de óvulos. Normalmente o sangramento dura de 3 a 7 dias e pode vir acompanhado de alguns sintomas, como cólicas e alterações de humor. No entanto, a menstruação é apenas uma das etapas do ciclo reprodutivo de pessoas com útero, que dura de 21 a 35 dias e é composto pelas fases folicular, ovulatória e lútea e, por fim, o sangramento.

No entanto, para Silvana Guerreiro, de 41 anos, assim como para muitas pessoas que menstruam, a verdadeira descoberta do ciclo menstrual aconteceu bem depois da menarca. Após sua primeira relação sexual, ainda na adolescência, Silvana passou a utilizar a pílula anticoncepcional como método contraceptivo. Apesar de ser recomendado apenas iniciar o uso de métodos contraceptivos com a instrução de um ginecologista, muitas pessoas iniciam o tratamento sem esse tipo de amparo. “Eu não tive nenhuma orientação, nem em casa, nem de médicos, nem na escola”, conta. 

A pílula anticoncepcional funciona na prevenção da gravidez pela inibição da ovulação, impedindo a fecundação por espermatozoides. Além disso, ela aumenta a viscosidade do muco cervical e altera o endométrio, dificultando ainda mais a concepção. Pessoas que tomam a pílula anticoncepcional e outros métodos que atuam de maneira similar experienciam um ciclo menstrual artificialmente regulado — já que essas pessoas não ovulam, em vez do sangramento menstrual, o que ocorre é um sangramento de privação hormonal que imita a menstruação geralmente durante a pausa da medicação.

Até os 33 anos, esse era o caso de Silvana. Por tomar a pílula há tanto tempo e desde tão cedo, ela sentia que não conhecia o verdadeiro funcionamento do seu corpo sem a medicação. Educadora física de formação, Silvana cresceu convivendo com o tabu da menstruação, mas decidiu abraçar essa parte da sua vivência. “Resolvi parar de tomar o anticoncepcional para ver o que acontecia, ainda sem orientação. Ninguém falava disso na época”, lembra. Para ela, a oportunidade de experienciar o ciclo menstrual foi um divisor de águas. “Eu percebi como é potente começar a entender que isso é algo natural, e não um erro genético”, explica.

Para Silvana, as raízes misóginas que ancoram o debate público fazem com que a menstruação esteja atrelada, no imaginário popular, às noções de fragilidade e sujeira, o que impede a aceitação do tema como algo relevante. “Quando falamos sobre menstruação, não é apenas sobre o sangramento”, esclarece. “É falar sobre dignidade menstrual, sobre uma sociedade patriarcal, sobre desenvolvimento de autonomia, sobre promoção de saúde.”

Foi a partir dessas percepções e de sua experiência com a descoberta de seu corpo e seu ciclo que Silvana decidiu se tornar educadora menstrual. A partir de uma formação em Terapia Menstrual, ela expandiu seus ensinamentos e passou a trabalhar com a desconstrução de ideias equivocadas sobre o ciclo e sobre pessoas que menstruam.

“O que faz uma educadora menstrual é isso: desmitificar, romper barreiras, levar conhecimento sobre o corpo e o ciclo menstrual, mas também falar de uma sociedade que diminui as mulheres e precariza o acesso à saúde e às informações”

Silvana Guerreiro

Hoje em dia, Silvana atua em palestras e rodas de conversa com adolescentes e adultos, homens e mulheres, na luta pelo debate honesto e aberto sobre a menstruação. Os desafios, no entanto, são muitos. A resistência em falar sobre o tema e o desconhecimento generalizado são os principais. Para Silvana, isso apenas demonstra a importância cada vez mais urgente de conversas sobre o tópico. “Quando se fala de direitos menstruais, algumas pessoas não sabem o que significa dignidade menstrual, algumas sequer ouviram falar de pobreza menstrual”, observa. “E ainda é um público que não interage de forma muito aberta.”

As Garotas de Vermelho mostram que é possível debater sobre a menstruação desde a infância. Na segunda foto, da esquerda para a direita, Giovana Viegas, Maria da Silva, Julia Cruz, Mariah Charão e Rayssa Ramos, alunas da EMEF Saint Hilaire (Fotos: Pietro Scopel/JU)
Pobreza menstrual também é ponto de debate

A pobreza menstrual se caracteriza pela falta de acesso a produtos de higiene pessoal e a boas condições de saneamento básico durante o período de sangramento. Além disso, a falta de acesso à educação acerca da menstruação também se enquadra no conceito. A qualidade de vida de pessoas em situação de pobreza menstrual é severamente afetada durante essa fase do ciclo, levando, em muitos casos, a problemas como a evasão escolar e prejuízos à saúde. Desde 2014, a higiene menstrual é considerada um direito humano e uma questão de saúde pública pela Organização das Nações Unidas (ONU).

Segundo o relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) sobre pobreza menstrual no Brasil, 15 milhões de pessoas no país não têm acesso pleno a produtos de higiene menstrual. O mesmo relatório aponta que um dos principais motivos disso é que as famílias de baixa renda não consideram esses produtos como itens essenciais no orçamento, preferindo investir o dinheiro que seria gasto em absorventes na compra de comida ou roupas, por exemplo. Além disso, o governo federal calcula que 4 milhões de estudantes no Brasil sofrem com privação de higiene menstrual nas escolas.

Desde 2024, o Ministério da Saúde promove o Programa Dignidade Menstrual, uma iniciativa que visa promover a conscientização sobre a naturalidade do ciclo menstrual e a oferta gratuita de absorventes higiênicos em unidades públicas de saúde para a população de baixa renda. Segundo a pasta, cerca de 24 milhões de pessoas são beneficiadas pela iniciativa. Pessoas que desejam ter acesso ao benefício devem se enquadrar nos requisitos e seguir o passo a passo para realizar a inscrição.

No entanto, apenas essa iniciativa não é suficiente para naturalizar o debate necessário. Na UFRGS, o grupo de estudos Onda Vermelha busca ser mais um catalisador na democratização do debate sobre menstruação e direitos menstruais. Formado a partir da parceria entre os Programas de Pós-graduação (PPGs) em Educação e em Enfermagem, o grupo visa promover debates sobre a pobreza menstrual e levar informação sobre o tema para além do ambiente acadêmico.

“A discussão sobre a pobreza e a dignidade menstrual é muito nova no campo da saúde”, observa a professora do PPG Enfermagem Letícia Vieira, uma das responsáveis pelo Onda Vermelha. Ela explica, ainda, que a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, do Ministério da Saúde, é de 2004 e está desatualizada em relação a essas temáticas. Além disso, a distribuição de absorventes pelo governo federal não é o suficiente para garantir a dignidade menstrual para todas as pessoas.

“A dignidade menstrual envolve outros pilares, como a educação e o acesso ao saneamento básico”

Letícia Vieira

Através de práticas extensionistas, o Onda Vermelha já promoveu debates e rodas de conversas sobre pobreza menstrual entre pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Durante as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul entre abril e maio de 2024, o grupo atuou em abrigos com pessoas que perderam suas casas. “A gente conversou com diferentes faixas etárias, de meninas que ainda não menstruaram a mulheres que já estão na menopausa. Falamos sobre o tabu, sobre as dificuldades de manejo, do sofrimento, da evasão escolar por conta da menstruação”, conta Letícia. “Ouvimos relatos sobre utilizar miolo de pão e jornal no lugar de absorventes.”

Iniciativas já dão frutos

É nesse cenário que os projetos trabalham para que pessoas que menstruam saibam, desde cedo, dos seus direitos em relação ao período menstrual. Através de contações de histórias e debates de igual para igual com outras crianças e adolescentes, o empenho das meninas da Saint Hilaire já mostra resultados palpáveis no dia a dia da escola. “Sempre que alguém precisa, não tem mais vergonha: é só vir aqui e pedir um absorvente ou uma bolsa térmica pra aliviar a cólica”, conta Júlia Cruz, de 9 anos.

Para Silvana, a felicidade em ajudar outras pessoas a aceitarem e conhecerem mais seu ciclo é a maior recompensa que poderia receber como educadora menstrual. Seu maior objetivo, no entanto, segue em progresso: formar o maior número de educadoras menstruais possível para que sigam disseminando o trabalho iniciado por ela. “É interessante ver que as pessoas que participam das oficinas acabam sendo agentes e semeando esse trabalho.”

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