Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Artigo | Joel Henrique Ellwanger, Marina Ziliotto e José Artur Bogo Chies explicam como as áreas urbanas podem (e devem) ser aliadas nas estratégias de conservação da natureza
*Por Joel Henrique Ellwanger, Marina Ziliotto e José Artur Bogo Chies
*Foto: Flávio Dutra/JU
A palavra biodiversidade tende a ser associada a florestas tropicais preservadas, áreas remotas e, principalmente, pouca interferência humana. No Rio Grande do Sul, os campos do bioma Pampa e a serra possivelmente sejam os lugares de maior biodiversidade no imaginário popular. Na direção oposta, as cidades são comumente consideradas ambientes inóspitos para diferentes espécies que não a humana, afinal são ambientes altamente modificados pela ação do homem, com abundância de poluição e outras ameaças à vida selvagem. De fato, essa visão tem uma parcela de verdade, mas a biodiversidade em ambientes urbanos tem se mostrado mais complexa e importante do que se imaginava. E as notícias são boas, ao menos para as cidades que valorizam suas áreas verdes.
Estudos recentes desenvolvidos em diferentes lugares do mundo e que investigaram os aspectos ecológicos das cidades compõem uma abordagem atualmente chamada de “ecologia urbana” e indicam que cidades bem manejadas têm uma grande importância para a manutenção da biodiversidade, mostrando novos caminhos para incluir as áreas urbanas como aliadas nas estratégias de conservação da natureza. Por exemplo, cidades australianas foram apontadas como refúgios para espécies ameaçadas. Similarmente, Berlim, na Alemanha, foi considerada um “oásis urbano” da biodiversidade, pois serve de habitat para um número surpreendente de espécies animais, incluindo insetos, répteis e mamíferos.
Mas existem exemplos muito mais próximos de nossa realidade. Um olhar mais atento pode revelar a diversidade de espécies nas áreas verdes – e às vezes nem tão verdes – de Porto Alegre. Tente visualizar os parques da cidade e o Arroio Dilúvio. Nesses locais é facilmente possível encontrar tartarugas, roedores, morcegos, peixes, insetos, além de uma abundância de aves; não apenas pombos, mas também caturritas, biguás, cardeais e outras tantas aves que somam 278 espécies já registradas em Porto Alegre. Devemos levar em conta que, dentre as espécies observadas, muitas delas não são nativas, sendo algumas consideradas “pragas urbanas”. Porém, ainda assim, compõem a diversa fauna da cidade.
Um estudo recente realizado pelo nosso grupo de pesquisa em parceria com pesquisadores da Secretaria Estadual da Saúde investigou as espécies de mosquitos encontradas em 11 locais da região metropolitana de Porto Alegre, incluindo o Jardim Botânico da cidade e outras áreas verdes onde há a coexistência de humanos e outros animais. O objetivo principal do estudo foi conhecer de forma mais completa a diversidade de mosquitos em nosso entorno, algo importante para entender aspectos ecológicos desses insetos, além de verificar onde circulam as espécies que oferecem riscos à saúde pública em decorrência da transmissão de arboviroses, como a dengue e zika.
Foram coletados 4.311 mosquitos pertencentes a 50 espécies, 14 gêneros e duas famílias. O número de espécies encontradas em nosso estudo é surpreendente, confirmando a grande capacidade que os mosquitos têm de habitarem diferentes nichos ecológicos em áreas urbanizadas.
Se, por um lado, isso representa um risco à saúde pública, por outro, a ocorrência de uma grande diversidade de espécies pode ser algo bom. Nesse sentido, foram encontrados alguns mosquitos do gênero Toxorhynchites, que são muito grandes em comparação aos seus parentes próximos de outros gêneros e por isso são popularmente chamados de “mosquitos elefante”. Esses mosquitos não se alimentam de sangue (ou seja, não picam humanos) e são inclusive benéficos à saúde pública, pois suas larvas são tão robustas que se alimentam de larvas de outros gêneros de mosquitos, como o Aedes, prejudiciais aos humanos.
Moral da história: quanto maior a diversidade de nichos ecológicos disponíveis em ambientes urbanos, maiores as chances de diferentes espécies ocupá-los, aumentando a biodiversidade e contribuindo para a manutenção da saúde das cidades, incluindo a saúde humana (para saber mais, acesse este artigo também publicado pelo nosso grupo).
A observação de uma grande biodiversidade em áreas urbanas traz consigo diversas considerações. É fato que simplesmente negligenciamos por muito tempo as espécies não humanas que vivem nas cidades. Quando passamos a investigar com mais atenção a ecologia urbana, os resultados mostraram-se surpreendentes. Além disso, é possível que muitas áreas rurais, comumente associadas a uma maior biodiversidade, estejam tão impactadas pela agricultura que tornaram ambientes urbanos um refúgio para a vida selvagem, principalmente em cidades com abundância de áreas verdes.
A capacidade de adaptação de algumas espécies animais a esses ambientes extremos tem-se mostrado surpreendente (assista este documentário, caso queira refletir um pouco mais sobre o assunto). Esses locais podem inclusive representar um abrigo mais estável e duradouro para os animais. Por exemplo, uma área verde como o Parque Farroupilha, a Redenção, pode ter um conjunto estável de nichos ecológicos, mesmo sofrendo intervenções como podas de árvores e corte de grama.
Recentemente causou comoção o caso da instalação de armadilhas para captura de gambás em quiosques do parque. Os gambás são animais que compõem a fauna da Redenção e desempenham importantes serviços ecossistêmicos, como o controle de escorpiões e dispersão de sementes, e por isso é fundamental que exista uma convivência harmônica dos humanos com esses animais. Diferentemente de espaços verdes bem manejados, muitas áreas rurais são completamente devastadas pelo monocultivo de soja, tabaco, arroz, entre outras culturas comuns no Rio Grande do Sul e em outros estados, inviabilizando a sobrevivência de muitas espécies. Considerações como essas devem ser estar presentes em nossas discussões sobre biodiversidade nas cidades.
Além das áreas verdes naturais que foram preservadas durante a expansão urbana, o valor de nichos ecológicos artificiais encontrados nas cidades também não pode ser negligenciado. As estruturas e fendas de concreto aquecidas pela luz solar servem de abrigo a muitas espécies de abelhas observadas em grandes cidades. Um estudo realizado em Halifax, Canadá, mostrou uma grande variedade de insetos em “telhados verdes”, indicando que essas estruturas feitas principalmente com objetivos estéticos têm um papel importante para a manutenção da biodiversidade. O mesmo pode ser dito para pequenos jardins urbanos e “hotéis de abelhas”, como mostrado neste outro estudo. Ou seja, modificações urbanas facilmente aplicáveis por residentes e gestores públicos são benéficas para diferentes animais, além de servirem como importante ferramenta de educação ambiental.
A ampliação e o manejo adequado de áreas verdes ajudam a tornar as cidades aliadas da preservação da biodiversidade e por isso devem receber maior atenção nos projetos urbanísticos. Isso é fundamental em cidades que estão passando por rápidas transformações na paisagem urbana, como é o caso de Porto Alegre. Além disso, as áreas verdes e seus benefícios devem chegar também nas regiões periféricas das cidades. A implantação e manutenção de áreas verdes devem ser encaradas como ações de conservação e saúde pública, e não apenas como uma simples obrigatoriedade quando do desenvolvimento de grandes empreendimentos imobiliários, comumente utilizada como uma estratégia de marketing. Conforme discutimos neste artigo recentemente publicado na revista Urban Ecosystems, as cidades podem e devem ser aliadas na conservação e promoção da saúde – para todos os seus habitantes.
Joel Henrique Ellwanger é pesquisador em nível de pós-doutorado (bolsista PNPD/CAPES) no Departamento de Genética da UFRGS.
Marina Ziliotto é mestranda do Programa de Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular (PPGBM) da UFRGS.
José Artur Bogo Chies é professor do Departamento de Genética da UFRGS.