E se vivêssemos sem o jornalismo profissional?

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Magali Moser
Doutora e mestra em Jornalismo pela UFSC, pós-doutoranda no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), pesquisadora associada ao ObjETHOS

Como forma de expressão artística e meio de reflexão, a literatura explora a condição humana em toda a sua complexidade, vulnerabilidade e paradoxo, utilizando situações inusitadas ou ordinárias para questionar as atividades e instituições que estruturam a sociedade. Entre essas atividades, o jornalismo se destaca como um tema recorrente, revelando dilemas éticos, ambivalentes e os riscos associados ao comprometimento da verdade factual. Diversos(as) autores(as) produziram narrativas literárias em que o jornalismo assume não apenas o cenário, mas o protagonismo do enredo, permitindo uma análise crítica e, muitas vezes, inquietante dessa profissão.

Não faltam exemplos para ilustrar esse fenômeno, desde Ilusões Perdidas, publicado em três partes entre 1837 e 1843. No clássico da literatura universal assinado por Honoré de Balzac, a centralidade está na trajetória do jovem Lucien, que deixa o interior da França para viver em Paris na busca por fortuna, consagração literária e pelo sonho de ser escritor. Ele acaba em uma redação de jornal diário, onde se depara com os jogos de poder, o suborno e a corrupção permeando as práticas da atividade. No Brasil, o relato de estreia do escritor Lima Barreto com a publicação em 1909 do romance Recordações de Isaías Caminha, talvez seja um dos primeiros registros dessas configurações da hierarquia das redações no país.

Mais recentemente, em 2015, no romance Número Zero o escritor italiano Umberto Eco explora em tom satírico a criação de um jornal voltado ao fracasso, cujo objetivo é manipular e atrair pessoas influentes. O autor aborda o fazer jornalístico em sua forma mais corrupta e decadente, indicando que o declínio ético da imprensa pode levá-la à irrelevância. Talvez não há autor(a) ainda que tenha se aventurado a pensar como seria a vida em sociedade sem o jornalismo profissional. Este é o exercício de distopia que proponho aqui. Como seria imaginar uma sociedade que dispense essa atividade profissional? Como seria a vida pública em um cenário onde o jornalismo, tal como o conhecemos hoje, deixasse de existir? Quais seriam as implicações para a sociedade e o acesso à informação?

As perguntas são motivadas por um contexto específico: o cenário característico do contemporâneo, marcado por tantos desafios impostos à prática profissional com profundas transformações estruturais, com o avanço das novas tecnologias, como a inteligência artificial. Aliado a tais novidades, desafios que nos acompanham há tempos, como a crise de sustentabilidade da profissão, o envelhecimento do público que consome jornalismo, a erosão democrática, a disseminação da mentira e o avanço de grupos autoritários e intolerantes. Outro elemento a ser citado nesse contexto é o que pode ser entendido como “jornalismo de fachada”, expressão usada para definir práticas que simulam comprometimento com a veracidade e o interesse público, mas que na realidade servem a interesses específicos, como propaganda política, publicidade disfarçada ou manipulação de narrativas (Ernsen, 2024).

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No último encontro da Sociedade Brasileira de Pesquisadores de Jornalismo (SBPJOR), de 6 a 8 de novembro na Universidade Federa do Pará (UFPA), em Belém (PA), a professora Marcia Benetti, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), pesquisadora homenageada este ano com o Prêmio Adelmo Genro Filho na categoria sênior, despertou essa reflexão, ao levantar preocupações sobre as fronteiras cada vez mais borradas entre o jornalismo e a propaganda, por exemplo. Ao refletir sobre a diluição dos limites entre essas atividades, Marcia demonstrou os riscos de se perder os parâmetros daquilo que caracteriza, de fato, a natureza do jornalismo, com um cenário de superabundância de conteúdo, onde o público tem dificuldade para reconhecer e valorizar aquilo que resulta da produção jornalística. Tal panorama traz inquietações e incômodos porque ameaça o futuro da atividade.

Relações entre jornalismo e democracia

Esse tema motivou uma mesa recente que tive a oportunidade de mediar com a participação do jornalista Pedro Dória, idealizador do Canal Meio, e da professoras Suzana Barbosa e Lia Seixas, do Póscom da Universidade Federal da Bahia (UFBA). O Jornalismo tem futuro? Essa pergunta conduziu o debate promovido em 11 de outubro pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD) em parceria com o Póscom/UFBA. No debate, disponível para consulta na íntegra neste link, foram abordados temas centrais como a trajetória histórica do jornalismo como agente de fiscalização dos poderes e discussão das questões públicas, sua sustentabilidade financeira e os desafios e ameaças impostos à prática profissional no contexto das transformações tecnológicas. Sobressaiu entre as três visões apresentadas o consenso de que a democracia não se sustentará se não houver jornalismo de qualidade.

Isso não significa considerar o jornalismo uma tábua de salvação, mas reconhecer suas ambivalências e contradições, potencialidades e limitações. Nos últimos tempos, algumas pesquisas têm desconstruído um pouco a ideia de um jornalismo capaz de salvaguardar a democracia. Wilson Gomes e Michael Schudson, por exemplo, expõem as ambiguidades em torno dessa problemática à medida que tecem críticas à noção de que o jornalismo sustenta a democracia, ao mesmo tempo em que não ignoram a atividade jornalística como atributo da democracia:

“A democracia é uma tarefa. Tudo o que pode ser usado para sustentá-la, promovê-la, também pode ser empregado para corrompê-la, burlá-la ou degradá-la, ainda mais quando se trata de algo tão importante para a nossa sociabilidade, para o nosso conhecimento do mundo e para a nossa interação e enredamento social como a comunicação. O que torna a comunicação relevante para a democracia não é apenas o fato dela poder contribuir para a vida democrática, mas também o fato de que ela pode se tornar uma força antidemocrática muito importante.” (Gomes, 2018, p. 335)

O fragmento reforça que o valor da comunicação para a democracia está em seu potencial ambivalente: ela é tanto um alicerce quanto uma ameaça, dependendo de como é utilizada. A tarefa democrática, portanto, exige esforço constante para garantir que a comunicação seja um instrumento de inclusão, debate e fortalecimento da cidadania. Schudson (2008), por sua vez, também problematiza a noção de que o jornalismo tem uma virtude democrática natural.

“Parece claro que o jornalismo é crucial para a democracia moderna. Parece igualmente claro que não é de forma alguma suficiente para a democracia, e que o jornalismo por si só não produz ou propicia democracia é igualmente evidente […] A democracia não necessariamente produz jornalismo, nem o jornalismo necessariamente produz democracia.” (Schudson, 2008, p. 67)

O autor reflete sobre uma complexa relação entre jornalismo e democracia, sublinhando que, embora estejam profundamente interligados, um não é suficiente ou automaticamente garantidor do outro. Em síntese, Schudson destaca que jornalismo e democracia são interdependentes, mas nenhum é suficiente por si só para garantir a existência do outro. Ambos precisam de contextos, condições e esforços complementares para prosperar. Ao contrapor a ideia naturalizada de uma correlação natural entre jornalismo e democracia, Schudson cita casos de atividade jornalística em governos autoritários, mas também destaca que onde há democracia, o jornalismo pode contribuir para ajudar a consolidá-la. Para o autor, há pelo menos seis funções que fazem a imprensa profissional colaborar para a democracia: informação ao público, investigação, análise, vigilância social, fórum público e mobilização.

Vislumbrando perspectivas de futuro

Com 60 anos de profissão na bagagem, o primeiro retratado num projeto que registra a memória do jornalismo brasileiro, Ricardo Kotscho, afirmou recentemente em entrevista que a reportagem, e por consequência, o jornalismo “Não vai morrer nunca. Crises sempre terá. Aliás, a internet foi a maior revolução nas comunicações humanas desde o alemão Gutemberg”, afirmou. “Podem inventar o que quiserem […], mas o repórter é insubstituível na caça, no carimbo da informação”, enfatizou.

Desde a emergência das primeiras gazetas, no século XVII, a atividade jornalística enfrenta uma trajetória marcada por transformações. A partir do século XIX, o jornalismo começa a se configurar como atividade profissional, o que lhe permite construir o exercício de um papel de expor o contraditório, função que já foi lhe atribuída como insubstituível, por não ser exercida por outras instituições (Franciscato, 2003). Com todas as falhas que comete, o jornalismo se construiu historicamente como lugar do pluralismo e da diversidade, do confronto de ideias da discussão pública. Afinal, há um percurso histórico desenvolvido a partir dos saberes e competências jornalísticas (Moser, 2024). Dentre as funções lhe atribuídas por diferentes segmentos – incluindo público, jornalistas e veículos de comunicação -, sobressai-se principalmente a de informar de modo qualificado, investigar e verificar a veracidade das informações (Reginato, 2019), considerando o seu compromisso com a verdade dos fatos.

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Minha visão é de que a ausência de um jornalismo profissional — aquele que busca informar de forma ética, responsável e equilibrada — abre espaço para desafios estruturais na forma como as sociedades se organizam e acessam informações. Sem acesso a informações precisas e relevantes, o público teria mais dificuldade em tomar decisões conscientes, especialmente em processos eleitorais. A esfera pública se tornaria menos deliberativa, com menor debate crítico sobre temas de interesse coletivo. O espaço público seria dominado por narrativas de entretenimento, marketing ou propaganda, diluindo o foco em questões sociais relevantes.

O jornalismo é essencial não apenas para informar, mas para mediar, questionar e provocar reflexão. A ausência dessa função comprometeria significativamente a coesão social, a justiça e a transparência, com consequências diretas com a desinformação, o enfraquecimento da democracia e a perda de memória coletiva. Mas como não se pode imaginar uma solução fácil para um problema tão complexo, talvez o maior desafio esteja em pensar e sistematizar aquelas características das quais são fundamentais para o jornalismo de qualidade, buscando alcançar aquele público que tem rejeitado ou menosprezado o papel da atividade.

Para responder à pergunta apresentada no título deste texto é preciso compreender antes de tudo, o que se considera como jornalismo profissional. Quais são os parâmetros e balizas das quais não se pode abrir mão para a atividade? O que de fato caracteriza o jornalismo profissional? Vamos continuar pensando o jornalismo com as mesmas regras, conceitos e categorias usadas há dois séculos? Vamos seguir as mesmas regras usadas desde o século XIX, quando só então o jornalismo assume um status de profissionalização, e que nos conduziram até aqui? As percepções do jornalismo como cão de guarda, por exemplo, são muito recentes se pensarmos em termos de trajetória da humanidade. Estudar o fenômeno jornalístico em profundidade é também reconhecer que a atividade assume papeis e atribuições muito diferentes ao longo do tempo. Sabendo isso, poderemos seguir com os mesmos parâmetros que nos serviram como base até aqui?

Referências:

DEBATE: Jornalismo tem futuro? Salvador: INCT.DD, 2024. 1 vídeo (120 min). Publicado pelo canal INCT.DD. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EpNWJjM9CS8&t=5435s Acesso em 17 nov. 2024.

ERNSEN, Karina Pierin. Jornalismo de fachada: estratégias retóricas sobre COVID-19 do Programa Pingo nos is. Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Paraná, 2024.

FRANCISCATO, Carlos Eduardo. A atualidade do jornalismo: bases para sua delimitação teórica. 2003. Tese (Doutorado em Comunicação e Cultura Contemporâneas) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/6056/1/Carlos-Eduardo-Franciscato.pdf. Acesso em: 22 abr. 2020.

GOMES, Wilson. Por que a comunicação é tão importante quando se pensa a democracia. In: CUNHA, Eleonora Schettini Martins; MENDONÇA, Ricardo Fabrino (org.). Introdução à teoria democrática: conceitos, histórias, instituições e questões transversais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018, p. 335-348.

MOSER, Magali. O método da reportagem: um estudo a partir de depoimentos de repórteres especiais. Cachoeirinha/Brasília: Fi/Editora SBPJor Luiz Gonzaga Motta, 2024. Disponível em: https://www.editorafi.org/ebook/c007-metodo-reportagem Acesso em: 17 nov. 2024.

REGINATO, Gisele Dotto. As finalidades do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2019.

RICARDO Kotscho relembra carreira e reflete sobre o futuro do Jornalismo. São Paulo: Conversas com Bial, 2024. 1 vídeo (13 min). Publicado pelo canal GNT. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9e7wEXnw9AM Acesso em: 17 nov. 2024.

SCHUDSON, Michael. News and democracy: shifting functions over time. Cuadernos de información, n. 22, p. 6, 2008.

Agradeço muitíssimo aos colegas Giovanni Ramos, Karina Pierin Ernsen Alves, Lenise Aubrift Klenk e Frederico Oliveira, pela leitura prévia, trocas, sugestões e contribuições que enriqueceram o texto.

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