Do ‘PL da Censura’ ao Rumble, como ‘big techs’ e extrema direita se aliaram no Brasil

Publicado originalmente em Aos Fatos por Gisele Lobato. Para acessar, clique aqui.

  • Tentativa de votar ‘PL das Fake News’ em 2023 marcou guinada na estratégia de plataformas;
  • Após abandonar Frente Parlamentar Digital, lobby do setor passou a priorizar parlamentares e influenciadores extremistas;
  • Aliança inaugurou retórica sobre suposta ‘censura’ no Brasil, hoje usada para atacar STF;
  • Parceria foi exposta em fevereiro deste ano, em seminário de comunicação do Partido Liberal.

No dia 20 de fevereiro, um banner hasteado no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, anunciava: “o Partido Liberal e as big techs unidos pela liberdade de expressão”. A exposição causou mal-estar nas plataformas, que há meses buscavam manter nos bastidores sua aliança com a extrema direita.

Há quatro anos, as relações entre os dois setores atingiram seu ponto mais baixo, com o bloqueio dos perfis de Donald Trump pelas plataformas após a tentativa de invasão do Capitólio. Por trás da guinada está a convergência de interesses em torno das discussões sobre a regulação das redes, movimento que ocorre também no Brasil.

Divulgada nos cartazes do 1º Seminário de Comunicação do PL, a parceria começou a ganhar corpo ainda em 2023, quando conseguiu impedir a votação do chamado “PL das Fake News” (PL 2.630/2020).

O sucesso na empreitada marcou uma mudança na estratégia de relacionamento das big techs com o Congresso. Antes concentrado na atuação da Frente Parlamentar Digital, o lobby do setor se pulverizou, passando a influenciar discursos e posts nas redes de representantes de alas extremistas.

A aliança entre as big techs e a extrema direita impulsionou a retórica de que o Brasil vive sob um regime de censura — acusação que ultrapassou o debate interno e ganhou contornos de crise diplomática quando passou a ser usada por aliados de Donald Trump em ataques ao Brasil.

Atualmente, o principal alvo da cruzada é o STF (Supremo Tribunal Federal). O órgão tem em suas mãos temas caros à extrema direita, como o acompanhamento do inquérito sobre as milícias digitais e o futuro julgamento da tentativa de golpe de Estado que resultou nos ataques de 8 de janeiro de 2023 a Brasília.

O tribunal também deverá decidir em breve sobre o futuro das próprias big techs no Brasil, já que está para concluir o julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que trata da responsabilização das plataformas pelo conteúdo publicado por usuários. A decisão pode pressionar o Congresso a retomar as discussões sobre a regulação das redes.

Além de beneficiar as big techs, os entraves à regulação das redes servem aos interesses da própria direita radical, assegurando a propagação de desinformação e discurso de ódio nas redes. A seguir, Aos Fatos detalha alguns dos principais marcos da aliança entre os dois setores.

  1. ‘PL da Censura’
  2. Desmonte da Frente Digital
  3. Guerra de hashtags
  4. Twitter Files Brazil
  5. Ofensiva da Meta
  6. Ação do Rumble

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1. ‘PL da Censura’

aprovação do regime de urgência para a tramitação do “PL das Fake News”, em 25 de abril de 2023, deu início a uma ofensiva das plataformas para tentar barrar o texto na Câmara dos Deputados.

Empresas como Google, Meta e Telegram divulgaram comunicados contrários ao projeto — em muitos casos, deturpando seu conteúdo. Entre as distorções estava a de que a proposta daria ao governo poder de censura.

A retórica passou a alimentar os discursos de parlamentares e influenciadores de extrema direita, em um movimento que contou com o incentivo direto de entidades de lobby das big techs.

Isso pode ser constatado em vídeo divulgado pelo canal Te Atualizei, no qual a apresentadora Bárbara Destefani fez críticas ao projeto exibindo na tela páginas de panfleto elaborado pelo ICD (Instituto Cidadania Digital), organização mantida por associações de tecnologia, como a camara-e.net (Câmara Brasileira da Economia Digital).

Intitulado “9 Motivos para debater o PL 2.630/2020 (Fake News) em uma comissão especial”, o documento trazia conceitos que foram incorporados pela extrema direita, como a expressão “Ministério da Verdade”, para se referir ao órgão regulador previsto pela lei.

 Frame mostra, à esquerda, Bárbara Destefani, que é uma mulher branca, loira, de óculos e batom cor de rosa e, à direita, uma página do panfleto do ICD que trata do “órgão de controle” previsto no PL das Fake News, na qual se lê “Instituindo o Ministério da Verdade e protocolos”
Vídeo do canal de extrema direita Te Atualizei exibe páginas de documento elaborado por entidade de ‘lobby’ das ‘big techs’ na época da discussão do ‘PL das Fake News’ (Reprodução/YouTube)

O vídeo do Te Atualizei sobre o “PL das Fake News”, atualmente fora do ar no Brasil, foi um dos mais recomendados pelo YouTube durante a tramitação do projeto, segundo relatório do Instituto Democracia em Xeque. A promoção do conteúdo ocorreu apesar de, na época, o canal estar bloqueado pelo STF.

O panfleto do ICD também antecipou outra distorção que ajudou a travar a tramitação da regulação das plataformas: a ideia de que o PL 2.630/2020 iria proibir a publicação nas redes de versículos da Bíblia como o Colossenses 3:18, que prega a submissão das mulheres aos maridos.

O mesmo versículo reapareceu, dias depois, na campanha contra o projeto promovida pelo então deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Omitindo que o texto previa o respeito à liberdade religiosa, o político inaugurou uma corrente desinformativa contra o projeto que teve como alvo os evangélicos.

Card de fundo preto tem um símbolo de proibido sobre o desenho de uma Bíblia. Tarja vermelha destaca frase “atenção cristãos”. Texto segue dizendo que “alguns versículos serão banidos das redes sociais”, citando como primeiro exemplo o Colossenses 3:18.
Card divulgado pelo então deputado Deltan Dallagnol mente ao dizer que versículos bíblicos seriam censurados por projeto, desinformação propagada pelas ‘big techs’ (Reprodução/X)

Segundo o Metrópoles, um documento argumentando que o projeto iria censurar textos religiosos foi enviado a deputados evangélicos pela câmara-e.net.

2. Desmonte da Frente Digital

Na época da votação do “PL das Fake News”, a principal voz das big techs no Congresso era a Frente Parlamentar Digital, cujo secretariado estava sob a responsabilidade do ICD — um modelo inspirado na bancada ruralista.

O colegiado foi responsável, por exemplo, por organizar uma viagem de parlamentares ao Vale do Silício em novembro de 2022, que usou dinheiro público para permitir que um grupo de deputados conhecesse as sedes das principais empresas de tecnologia.

Na tramitação do PL 2.630/2020, membros da frente atuaram fazendo oposição ao texto do então relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), propondo alternativas. O então presidente do colegiado, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), chegou a apresentar um substitutivo.

Em agosto de 2023, porém, o ICD anunciou que deixaria a secretaria-executiva da Frente Digital, o que representou a extinção da bancada. Com o desmonte, o instituto — que em 2024 mudou seu nome para Conselho Digital — passou a diversificar os interlocutores no Congresso.

Mensagem de WhatsApp assinada pelo Conselho Digital convida assessores parlamentares para brunch em Brasília.
Convite enviado pelo Conselho Digital a assessores dos parlamentares membros da comissão que discutia a regulação da IA no Senado (Reprodução/WhatsApp)

lobby das big techs também começou a atuar por meio de outros colegiados — caso da Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo, que organizou uma viagem de deputados e senadores aos Estados Unidos na época em que o Senado discutia a regulação da inteligência artificial. Como o Aos Fatos mostrou, os campeões de emendas ao projeto da IA participaram da comitiva.

3. Guerra de hashtags

Enquanto parlamentares da direita mais moderada ou de partidos do Centrão assumiam a tarefa de apresentar emendas e levar as reivindicações das big techs para o plenário, a ala extremista do Congresso — sobretudo do PL — usava sua influência nas redes a favor dos interesses das empresas.

Seguindo a fórmula que ajudou a bloquear o debate do “PL das Fake News”, outras propostas de regulação do ambiente digital passaram a sofrer ataques sistemáticos de parlamentares como Nikolas Ferreira (PL-MG), Marcel Van Hattem (Novo-RS), Gustavo Gayer (PL-GO) e Kim Kataguiri (União-SP), dentre outros.

O argumento ligando a regulação a um suposto risco de censura voltou a ser evocado mesmo em relação a projetos que não tinham qualquer pretensão de remover conteúdos das redes — caso da regulação da IA (PL 2.338/2023), discutida pelo Senado no ano passado.

À esquerda, deputado fala próximo à câmera vestindo terno azul, camisa branca e gravata xadrez. Van Hattem é um homem branco e loiro. Na legenda da publicação, parlamentar chama proposta de “PL da Globo” e faz referência a “PL da Censura”.
Post de Marcel van Hattem (Novo-RS) celebra retirada de pauta de projeto de regulação do streaming (Reprodução/Instagram)

No caso do “PL das Fake News”, setores da extrema direita tinham interesse direto na não aprovação do texto, que aumentava a responsabilidade das plataformas sobre conteúdo criminoso postado por usuários — como casos de racismo, instigação a golpes de Estado ou riscos à saúde coletiva, por exemplo.

O empenho do grupo em defender os interesses das big techs, porém, ultrapassou a fronteira do interesse em comum. Foi o caso do PL 2.370/2019, que tratava da remuneração dos direitos autorais de artistas e jornalistas pelas plataformas e que ganhou de Nikolas Ferreira o apelido de “PL da Globo”.

Sequência de tuítes de Nikolas Ferreira chama PL 2370/2019 de ‘PL da Globo’ e afirma que texto é de autoria de deputada comunista.
Nikolas Ferreira (PL-MG) critica projeto que prevê remuneração de direitos autorais pelas plataformas; deputado é um dos mais empenhados na defesa das big techs (Reprodução/X)

A mesma alcunha foi usada para atacar outros projetos que poderiam impactar os ganhos de empresas de tecnologia, como as propostas de regulação das plataformas de streaming. Além da vinculação a supostos interesses da grande mídia, as campanhas difundiram alegações de que os textos resultariam em cobranças sobre usuários ou criadores de conteúdo.

4. Twitter Files Brazil

No ano passado, o empenho da extrema direita brasileira em defender os interesses das empresas de tecnologia começou a ser retribuído com o envolvimento de um dos principais magnatas do setor — Elon Musk, dono do X — nas campanhas de ataques ao STF.

Após o episódio conhecido como Twitter Files Brazil — divulgação de supostas ordens de remoção de conteúdo enviadas ao X pelo Judiciário brasileiro —, o empresário sul-africano passou a proferir ataques ao ministro Alexandre de Moraes.

Na ocasião, o empresário também afirmou que passaria a descumprir ordens do STF e que restabeleceria as contas suspensas pela Justiça brasileira — o que levou Moraes a incluí-lo como investigado no inquérito das milícias digitais e a determinar multa diária caso a empresa levasse a cabo a ameaça.

No final de agosto, o embate culminou na suspensão do X, determinada por Moraes após Musk anunciar o encerramento do escritório da plataforma no Brasil e se negar a nomear um representante legal para a empresa no país.

Como Aos Fatos mostrou na época, o caso foi explorado pela campanha de Donald Trump, que difundiu a alegação de que o Brasil teria se tornado uma ditadura com o apoio de Joe Biden e Kamala Harris.

5. Ofensiva da Meta

A vitória de Trump nos Estados Unidos fez com que outras empresas de tecnologia seguissem o exemplo do X, com a radicalização de seus discursos de modo a garantir boas relações com o novo presidente americano.

O caso mais emblemático foi o da Meta, dona de Facebook, Instagram e WhatsApp. Em 7 de janeiro, o CEO e cofundador da empresa, Mark Zuckerberg, anunciou alterações nas políticas de moderação de conteúdo das plataformas e o fim do programa de checagem de fatos nos Estados Unidos.

Print de vídeo mostra Mark Zuckerberg, homem loiro, de cabelos cacheados e pele clara, vestindo uma camiseta preta. Ele está sentado atrás de uma mesa e diante de um fundo amadeirado
Em aceno à extrema direita, Zuckerberg anunciou mudanças na moderação no início deste ano (Reprodução/Facebook)

Em aceno à extrema direita americana, a empresa divulgou que as mudanças afetariam o tratamento de questões de gênero, orientação sexual e imigração — temas caros à base de Donald Trump.

Como o Aos Fatos revelou, no entanto, as novas regras também passaram a autorizar a difusão de declarações de ódio racial, supremacismo branco e ataques a outras minorias.

No anúncio das mudanças, Zuckerberg mandou um recado velado ao STF, mencionando que países latino-americanos teriam “tribunais secretos” dedicados a tirar do ar conteúdo publicado nas redes.

A adesão da Meta aos ataques ao STF representa um reforço da cruzada das plataformas contra a regulação não apenas no Brasil, já que a discussão é travada atualmente em diversas partes do mundo — da Austrália ao Canadá, passando pela União Europeia.

6. Ação do Rumble

O capítulo mais recente da aliança entre a extrema direita e as big techs ocorreu em fevereiro, quando a plataforma de vídeos Rumble e a empresa de mídia do presidente dos EUA Donald Trump entraram com uma ação contra Moraes na Justiça americana.

As empresas alegam que o ministro estaria violando a soberania e a legislação dos Estados Unidos ao exigir a suspensão das contas do blogueiro foragido Allan dos Santos, reativadas após o Rumble anunciar a retomada dos seus serviços no Brasil.

Como Aos Fatos mostrou, as plataformas anexaram ao processo documentos que estão sob segredo judicial no Brasil, argumentando que seriam supostas provas de que as decisões judiciais de Moraes promovem a censura.O caminho da apuração

Aos Fatos analisou notícias e posts nas redes sociais para reconstituir o histórico da aproximação entre plataformas e extrema direita, que já vinha sendo acompanhada nos últimos meses.

A reportagem também conversou com fontes que acompanham os bastidores da política de Brasília, que ajudaram a contextualizar os episódios.

Referências

  1. Folha de S.Paulo (1 e 2)
  2. Poder360
  3. Câmara dos Deputados (1 e 2)
  4. Aos Fatos (12345678910111213 e 14)
  5. Internet Archive
  6. Instituto Democracia em Xeque
  7. Metrópoles
  8. Intercept Brasil (1 e 2)
  9. nic.br
  10. Teletime
  11. Conselho Digital
  12. Correio Braziliense

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