Publicado originalmente em Jornal da Universidade por Geovana Benites. Para acessar, clique aqui.
Literatura | Pesquisa analisa os livros “Niketche” e “O Sétimo Juramento” para refletir sobre a vocalização das mulheres a partir de estudos pós-coloniais e de(s)coloniais
Uma dissertação defendida no Programa de Pós-graduação em Letras da UFRGS utilizou os romances “Niketche: uma história de poligamia” e “O Sétimo Juramento”, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, para investigar os silêncios das personagens mulheres e a relação dessa problemática com o colonialismo sofrido por Moçambique, onde as obras são ambientadas. Desenvolvido por Suelen dos Santos Villanova, o trabalho buscou entender as diferenças e semelhanças do levante de voz das personagens. Uma das conclusões obtidas é de que, enquanto Rami (personagem de “Niketche”) reergue sua voz e tenta subverter o silenciamento, Vera (de “O Sétimo Juramento”) utiliza o silêncio como arma e escudo.
O romance “Niketche” conta a história de Rami, uma mulher moçambicana, casada há muito tempo com Tony, um funcionário da polícia de Maputo, com quem teve três filhos. Na trama, a personagem descobre que o marido teve outros relacionamentos e diversos filhos fora do casamento, o que a leva a propor um casamento poligâmico. Já “O Sétimo Juramento” narra a história de David, um ex-combatente nas lutas de libertação de Moçambique, casado com Vera e diretor de uma fábrica. Ambicioso, David quer dar um golpe na diretoria da empresa e recorre a um feiticeiro, Makhulu Mamba, que promete o ajudar desde que faça “o sétimo juramento” – sacrificar um dos membros de sua família.
Suelen conta que começou a estudar as obras de Paulina – primeira mulher moçambicana a publicar um romance – logo no seu Trabalho de Conclusão de Curso em Letras, no qual analisou o silenciamento dos 16 filhos em “Niketche”. No mestrado, a pesquisadora quis focar nas vozes das personagens femininas. “Eu queria falar mais sobre as vozes dessas mulheres, comparar o que essas duas personagens, a Rami e a Vera, têm de diferença e de semelhança nesse levante de voz”, explica.
Moçambique em cena
Ambiente das duas obras e terra natal de Paulina Chiziane, Moçambique, país ao sul da África, foi colonizado por Portugal – processo que deixou marcas que se refletem até hoje. De acordo com Suelen, para analisar a vocalização das mulheres também era necessário falar sobre as fissuras deixadas pelo colonialismo na sociedade. A dissertação aborda como a colonização interferiu na identidade da população moçambicana, principalmente nas mulheres: a pesquisadora investigou como elas e a sociedade patriarcal se comportam dentro dessas duas obras.
“Eu trago esses questionamentos para que as pessoas possam entender o quanto esse colonialismo sofrido por Moçambique atingiu o modo de viver, as identidades e o comportamento social”
Suelen dos Santos Villanova
De acordo com Suelen, apesar de a colonização ter acontecido em todo o país, a divisão entre norte e sul impactou os costumes locais, e cada povo tem um tipo diferente de cultura. Um exemplo disso é a poligamia, que gera muitos conflitos culturais devido aos casamentos monogâmicos, advindos do catolicismo, e poligâmicos, baseados no islamismo. No sul, quem tem o poder maior é o homem, que pode decidir com quantas mulheres irá se casar. Já no norte, a mulher decide se e quando casará. “A Chiziane vai falar, principalmente no ‘Niketche’, como é essa poligamia. E na verdade o casamento [presente na obra] não era poligâmico, era monogâmico, mas aí a Rami, que é a personagem principal, descobre que o marido tinha amantes. Então ela decide falar com essas mulheres, e, posteriormente, ajuda a inseri-las no mercado de trabalho: primeiro ela briga com elas, mas depois ela vê que essas mulheres também teriam direitos”, explica a pesquisadora.
Quantos gritos há dentro do silêncio?
Nas duas obras, os destinos das personagens principais passam por uma reviravolta e mostram o erguer de voz da mulher negra moçambicana. “O Sétimo Juramento” traz a personagem Vera, que vivia um casamento que a sufocava, já que o marido era uma espécie de ditador, e ela não tinha voz.
“Analisando isso sobre essa mulher que não tem voz, que não tem vez, não tem participação social, não tinha direito a voto, não tinha direito a nada, [percebe-se] que isso são planos que o colonialismo tem: de tirar a mulher do foco, de deixar a mulher subalterna, de deixar a mulher de escanteio, de não dar a oportunidade para mulher ter voz e vez”
Suelen dos Santos Villanova
É importante ressaltar que há diferença entre ser silenciado e estar no silêncio. No caso de Vera, o silêncio foi usado como arma e como escudo, uma vez que a personagem usou o silêncio para se revoltar internamente e como uma artimanha, conforme a pesquisadora. “É uma ferramenta para poder dar a reviravolta no romance. Então, quantos gritos há dentro do silêncio? A Vera dá muitos gritos dentro desse silenciamento, então ela usa esse silêncio para poder resistir.” Já Rami, em “Niketche”, tenta subverter o silêncio: ela quer falar sobre o casamento poligâmico, quer que as outras amantes do marido – assim como seus herdeiros – sejam reconhecidas.
Em sua dissertação, Suelen explica que elas representam as dualidades de Moçambique: o norte e o sul, as línguas bantus e a língua portuguesa, o silenciamento e a vocalização, o colonizado que não aceita viver as regras do colonizador e o colonizado que acorda de seu estado de inconsciência social. “Essas são as partes mais legais de fazer pesquisa: é pesquisar o que não está ali na literatura, o que não está ali escrito, é o que está além”, completa.