Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Oberdan Rodrigo Schumann. Para acessar, clique aqui.
Trabalho | Fortalecimento de vínculos entre a equipe é uma das estratégias utilizadas pelos profissionais para superar dificuldades como falta de ambientes de escuta e de apoio institucional
*Foto: Em um dos Centros de Atendimento Psicossocial de Porto Alegre, boneco construído por pacientes e trabalhadores em saúde representa necessidades e preocupações para o bom andamento do trabalho (Flávio Dutra/JU)
Os casos de transtornos mentais e, consequentemente, as discussões e pesquisas acerca da saúde mental cresceram consideravelmente durante as últimas décadas. Não por acaso um destes transtornos, a depressão, é considerado o “mal do século”, e relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) já preveem que esta será a doença mais comum do planeta até o ano de 2030.
A pandemia de covid-19 pode ter acelerado esse processo, afinal o desconhecimento sobre a doença, o isolamento social e o constante medo do contágio – especialmente antes do período de vacinação – foram fatores que afetaram negativamente a saúde mental da população. O surto também causou alterações na organização do trabalho, e entre os trabalhadores, os profissionais da saúde correram os maiores riscos, estando na linha de frente no combate ao vírus e se expondo diariamente aos seus perigos.
Foi nesse contexto que a pesquisadora Larissa Gomes de Mattos produziu a dissertação “Prazer e sofrimento de trabalhadores de um centro de atenção psicossocial no cuidado ofertado a crianças e adolescentes frente à pandemia da covid-19”. Entre os meses de fevereiro e março de 2022, Larissa observou e conversou com os profissionais da saúde do Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi) Pandorga, de Porto Alegre. A pesquisa teve como objetivo verificar o prazer e o sofrimento desses trabalhadores e as estratégias defensivas utilizadas por eles durante o período de pandemia.
O estudo foi realizado pela estudante durante o mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFRGS (PPGENF), dentro da Linha de Pesquisa de Saúde Mental e Enfermagem, sob orientação da professora Maria de Lourdes Duarte.
Observação e conversas com os trabalhadores
Para iniciar a pesquisa, ao todo, foram 120 horas de observação no CAPSi Pandorga. Durante esse tempo, Larissa vivenciou a ação dos profissionais, as interações dos trabalhadores com as crianças e adolescentes e entre os próprios trabalhadores. Entre os 16 funcionários observados, estavam as diferentes áreas que compõem o dia a dia do local: Serviço Social, Medicina, Nutrição, Enfermagem, Psicologia, Educação Física, Educação Artística, Terapia Ocupacional e Pedagogia. Na etapa seguinte do estudo, a pesquisadora realizou entrevistas semiestruturadas com os trabalhadores.
Entre os sofrimentos relatados, estão a falta de um ambiente de escuta – algo que já havia sido perdido antes mesmo da pandemia – e a falta de apoio institucional. Larissa destaca que os funcionários também tinham de lidar com a constante possibilidade de remanejo para áreas de atendimento à covid-19, o que de fato acabou por acontecer com os profissionais da enfermagem. “O técnico (em enfermagem) me disse que isso foi bem frustrante, já que eles não participaram da decisão. Foi uma coisa bem autoritária, como se a saúde mental não fosse importante. Tanto a das crianças e a dos adolescentes do CAPSi quanto a dos próprios trabalhadores”, comenta. Por fim, também foram citadas dificuldades gerais de enfrentamento à pandemia: a desinformação sobre a doença, o medo de contagiar usuários do CAPSi, colegas e familiares, e o distanciamento social.
Na categoria ‘prazeres’, o que chamou a atenção foi o crescimento de laços entre os funcionários. “Eles citaram bastante que aumentou a cooperação entre a equipe nesse período. Isso é muito importante num ambiente laboral”, ressalta Larissa. Ela cita ainda que o “vínculo criado com crianças e adolescentes, a melhora deles e o reconhecimento por parte dos usuários e familiares” ajudaram no sentido de que os profissionais se mantivessem sustentados no trabalho.
O último passo do estudo foi a identificação das estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores durante a pandemia. “A estratégia coletiva foi principalmente a interação entre os colegas, esse momento de conversar, compartilhar os problemas”, explica a estudante. Individualmente, os profissionais buscaram diversas formas de terapias, exercício físico e momentos de interação e lazer com a família.
A importância do CAPSi
A dissertação de Larissa propõe reflexões acerca da saúde mental de trabalhadores de dispositivos de saúde pública como o CAPSi. Isso pode ser contraintuitivo, afinal, essas pessoas são vistas como curadores, e não como possíveis pacientes. A estudante entende que o estudo pode dar visibilidade e desencadear discussões sobre o tema, além de servir de subsídio para a elaboração e implementação de medidas de promoção à saúde desses profissionais, o que, por consequência, melhoraria o ambiente de trabalho e a assistência prestada aos usuários do serviço.
Por fim, a pesquisadora destaca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio, e sublinha a importância dos centros de atenção psicossocial neste contexto. “O CAPSi é um dispositivo muito importante para evitar a internação, que é o último recurso que devemos utilizar. É bem importante que se abordem essas questões de saúde mental e que as pessoas que precisem de tratamento possam ter esse cuidado em liberdade, perto dos familiares e amigos”, finaliza Larissa.