Publicado originalmente em Observatório de Mídia UFES. Para acessar, clique aqui.
No último dia 25 de outubro, um dos coordenadores do Observatório da Mídia, o professor Edgard Rebouças, em nome da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), foi o indicado pela Comissão Organizadora do Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos para fazer o discurso de abertura da solenidade de premiação. O evento ocorreu no Teatro de Arena da Pontificia Universidade Católica de São Paulo (Tucarena/PUC-SP).
Por ser um momento crítico para os destinos do país, pois estávamos às vesperas do segundo turno da eleição presidencial, o discurso sobre o papel da imprensa na defesa da democracia acabou ganhando muita repercussão.
Toda a emocionante cerimônia foi transmitida ao vivo pela TV PUC e está disponível no YouTube pelo link https://youtu.be/feV0zEEYwK0. Para quem não teve a oportunidade de acompanhar e queira dedicar mais atenção ao que foi falado, disponibilizamos abaixo a versão estendida do discurso.
Sugerimos também que acessem a página oficial do Prêmio Vladimir Herzog para conhecerem todos os homenageados e vendedores desta edição, entre eles a ex-bolsista do Observatório da Mídia, Esther Radaelli, que recebeu uma Menção Honrosa pela produção de uma reportagem exibida no Fantástico, da TV Globo. Também recomendamos que acompanhem a Roda de Conversa 44º Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog, revelando os bastidores de cada reportagem vencedora deste ano.
Discurso de abertura do 44º Prêmio de Jornalismo Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos – **Versão estendida**
São Paulo, 25 de outubro de 2022
Proferido por Edgard Rebouças
Boa noite!
O Brasil passa por uma grave crise e forte ameaça a sua jovem democracia. E o Jornalismo tem papel fundamental nessa luta.
Quarenta e sete anos atrás, exatamente na data de hoje, foi preciso que um jornalista fosse torturado e assassinado pela Ditadura para que a sociedade e as instituições – inclusive a Imprensa – se tocassem de que todos os limites já haviam sido ultrapassados. Vladimir Herzog tinha apenas 38 anos, e foi levado preso de dentro da redação da TV Cultura de São Paulo, onde era diretor de Jornalismo. Ele foi sentenciado por ter ousado sonhar com um país livre, democrático e justo.
Poucos anos depois, durante as trincheiras pela Anistia, Ampla, Geral e Irrestrita, foi criado este Prêmio, que é hoje o mais importante reconhecimento à qualidade jornalística na defesa dos direitos humanos. A intenção era homenagear profissionais de imprensa que tinham a coragem de trazer a público a realidade e os crimes daquela época.
Passados tantos anos, estamos aqui, mais uma vez, precisando defender a Democracia, a Liberdade e os Direitos Humanos no nosso país. Hoje, após dois anos e meio de pandemia do Covid-19, com quase 700 mil pessoas mortas, podemos nos reunir novamente para celebrar o Jornalismo e os jornalistas que têm sido constantemente atacados desde que a relação respeitosa entre Poder Público e Imprensa se rompeu de forma clara a partir de 2019. Afinal, começamos a viver um tempo em que a mentira e o negacionismo passaram a ter mais destaque nas mídias do que a verdade dos fatos.
Podemos dizer, sem nenhuma dúvida, que o cenário vivido pela Imprensa no Brasil é o mais difícil desde que saímos da Ditadura, em 1985. E nunca estivemos tão próximos da continuidade de um governo autoritário que desrespeita continuamente as instituições de Estado. E não podemos esperar que outro jornalista, estudante, professor, religioso, trabalhador ou militante de direitos humanos seja assassinado em nome do Estado, com a desculpa da “garantia da ordem”, “aliança para o progresso”, “Tradição, família e propriedade”, “Brasil, ame-o ou deixe-o” etc.
Isso tudo reforça a importância de estarmos aqui hoje, neste templo da luta pela democracia que é Teatro de Arena da Universidade Católica de São Paulo, instituição que teve alguns de seus estudantes e profissionais também presos, torturados e assassinados pela Ditadura.
Pois é, Brasil viveu sim uma Ditadura. Alguns, infelizmente, podem até concordar com ela e querer que tais atrocidades voltem; assumam isso. Mas não há como negar a verdade dos fatos.
Os déspotas odeiam a verdade. A mentira é fácil de controlar. A verdade não. Daí os jornalistas serem um dos principais alvos desse tipo de governantes e tiranos. O monitoramento realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) aponta 417 ataques de janeiro a setembro de 2022, 20% mais do que no mesmo período do ano passado. A violência atinge de forma ainda mais grave as mulheres jornalistas, sobretudo na covardia do ambiente online. Os ataques tentam minar sua credibilidade.
Os números do Relatório Anual sobre Violência da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) confirmam o terrível cenário de agressões contra a imprensa: de 2019 a 2021, jornalistas brasileiros foram vítimas de 1.067 agressões. Nesse período, segundo os dados, o atual presidente da República foi o principal agressor, sendo o responsável direto por mais de 40% dos casos; e já recebeu três condenações judiciais até o momento. No monitoramento sistematizado pela ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF) em parceria com o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic-Ufes), no Twitter, somente no primeiro mês da campanha eleitoral de 2022, foram mais 2,8 milhões de postagens com conteúdo ofensivo e agressivo contra os jornalistas.
Por isso, este Dia Nacional da Democracia é ao mesmo tempo tão especial e tão duro, pois em um mundo ideal este prêmio para quem defende e promove os direitos humanos não precisaria existir. Seria uma utopia onde não haveria atrocidades do Estado contra a sociedade. Pouco menos existiria intolerância racial, de gênero, política ou de crença. Este foi o sonho que fez com que Vladimir Herzog fosse assassinado. É sempre importante lembrar que o Estado brasileiro criou uma versão falsa, mentirosa, sobre a morte de Vlado. Aquele cenário para forjar um suicídio. Coube à família Herzog e aos jornalistas trazerem a verdade dos fatos, ainda que vivêssemos em uma época de censura explícita.
Mais do que nunca, a sobrevivência da democracia no Brasil depende de pessoas como as que estamos homenageando nesta noite: profissionais de imprensa determinados em revelar esses fatos, essas denúncias, esses crimes.
Os 528 trabalhos inscritos nesta 44ª edição do Prêmio Vladimir Herzog retratam as preocupações que nos afligem diariamente nos últimos quatro anos. Os premiados de cada categoria que chegaram até aqui são um reflexo direto desse sinal de alerta, pois dão um panorama amplo e tocante do Brasil atual. Por meio de fotos, textos, áudios, vídeos, ilustrações ou livros, as jornalistas e os jornalistas que premiamos nesta noite se aprofundaram em grandes reportagens sobre temáticas fundamentais para compreender melhor e refletir sobre os desafios que enfrentamos. Parabéns a todos e todas por seguir fazendo jornalismo ético e em defesa dos direitos humanos.
Mas é preciso chamar à responsabilidade de várias das empresas, onde essas reportagens foram veiculadas, para que tais temáticas sejam tratadas em seus demais produtos, não apenas em publicações especiais. Jornalismo de qualidade agrega valor para as empresas. Se tivessem ações na bolsa, talvez dessem mais atenção ao que os investidores de outros setores chamam de compliance e accountability. Ou seja, ser ético e socialmente responsável dá lucro. Só que vale lembrar que, no Jornalismo, ser ético, respeitar e promover os direitos humanos e defender a democracia não são virtudes, e sim atributos. Nada mais do que obrigação. Do mesmo jeito que fake news não é Jornalismo. Se é falso não é notícia. É mentira. É ficção…
São tantas atrocidades que temos que cobrir, sistematizar e reportar, que o abominável “pintou um clima” parece que já foi há muito tempo. A naturalização e banalização do desrespeito e da intolerância chegou a tal ponto de muitas pessoas acharem normal alguém, em prisão domiciliar, atirar de fuzil e jogar granadas na polícia. O pior é que o inverso também seria normal, pois se fosse em Heliópolis ou no Jacarezinho, muitos achariam normal dezenas de jovens serem executados pela polícia por muito menos, muitas vezes, pelo simples fato de serem pretos, pobres e de periferia.
Detalhe, abrindo um parêntese: esse criminoso que está ocupando os noticiários nos últimos dias entrou para a vida política por causa de seu sucesso como “””Jornalista”””. Apresentador de programa policialesco. Daqueles que pregam que “bandido bom é bandido morto”. Quarenta anos depois de ter sido eleito deputado federal, está aí atirando em policial federal, com as graças de uma boa parcela da população e de políticos que apostam no quanto pior melhor. O Brasil nunca esteve tão armado, e com os aplausos de tanta gente.
Nesses tempos em que os princípios religiosos do bem ao próximo foram sequestrados por pessoas inescrupulosas, é importante também lembrar o ato inter-religioso em memória de Vladimir Herzog, realizado sete dias depois de seu assassinato. Organizado pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, sob a liderança de Audálio Dantas, dom Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright, reuniu mais de 8 mil pessoas dentro e nos arredores da Catedral da Sé. Estavam ali religiosos de várias denominações: católicos, evangélicos, judeus, espíritas, umbandistas…, ou mesmo ateus. Todos juntos. Porque o que importava era demonstrar a indignação vivida naquele momento. E tudo em silêncio, pois os militares estavam à espreita para prenderem qualquer um que discursasse contra o governo. Foi naquele 31 de outubro de 1975 que a ditadura começou a ruir, e a semente da democracia começou a brotar com mais força.
Era uma época em que religiosos indicavam a seus fiéis o caminho da paz e da harmonia, não o das armas, do preconceito e do ódio.
É o momento de resgatarmos os princípios do Jornalismo que se importa com os destinos da nação. Por isso, parafraseando o jornalista e escritor Emile Zola:
- – Acusamos as instituições da República – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público – de cumplicidade, e até conivência, com a escalada de afrontas à democracia dos últimos anos;
- – Acusamos a imprensa corporativa de, em nome de uma ilusória imparcialidade, não ter cumprido com o papel de esclarecer à sociedade sobre os perigos que estavam se formando;
- – Acusamos as corporações de tecnologia midiática de terem alimentado e se favorecido do maremoto de mentiras e desinformações que circulam nas redes sociais digitais;
- – Acusamos as elites nacionais, que se aproveitam especulativamente das crises e apostam no quanto pior melhor; e
- – Acusamos uma grande parcela da sociedade brasileira por ter achado mais cômodo acreditar em mentiras, e, inocente ou cegamente se deixar iludir por mitos e pessoas completamente desqualificadas para a condução de um país.
No próximo domingo, dia 30 de outubro, iremos às urnas para escolher o destino do Brasil, e do mundo. Assim como há quatro anos, esta não é uma eleição do candidato X versus o candidato Y. É a escolha entre os que têm como valores inegociáveis a defesa incondicional da vida, da liberdade, da ciência, da educação, do respeito à Constituição e às instituições. Dos que defendem os direitos humanos versus a barbárie, o autoritarismo, a intolerância e a violência. Aquilo tudo que levou à morte de milhares de pessoas na pandemia, graças ao negacionismo, à desinformação e ao ódio que tenta dividir não só o país, mas também famílias e amizades.
O Prêmio Vladimir Herzog, ao longo dessas quatro décadas, tem trabalhado pela defesa dos valores fundamentais da liberdade, da diversidade e da pluralidade de ideias e ideais. Pois é disso que se trata a democracia.
Colegas jornalistas, em nome da Comissão Organizadora do Prêmio Vladimir Herzog: parabéns por estarem aqui! Parabéns por insistirem e não desistirem de trazer ao mundo a verdade dos fatos!
E como diria Vlado: “Quando perdemos a capacidade de nos indignar frente a atrocidades cometidas contra outros, perdemos o direito de nos considerar seres humanos civilizados”.
E é por esse sonho possível que continuamos lutando.
Estamos aqui juntos para dizer:
FORA!!
DITADURA, NUNCA MAIS!!
VIVA A DEMOCRACIA!! VIVA O BRASIL!!
Foto: Alice Vergueiro