Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Lívia de Souza Vieira
Pesquisadora associada do ObjEthos e professora da UFBA
Em junho do ano passado, a Folha de S. Paulo comemorou 10 anos de implantação de seu paywall. Nesta matéria, o jornal, que foi o primeiro do Brasil a adotar o modelo de negócios que limita e bloqueia o acesso a notícias, afirma: “Graças ao paywall, a Folha se tornou o primeiro grande jornal do país a ter mais assinantes digitais do que impressos”. Segundo o Instituto Verificador de Comunicação (IVC), cerca de 300 mil pessoas assinam a Folha nos meios digitais.
The New York Times e Financial Times foram os primeiros a ter paywall, também no ano de 2012. Atualmente, o NYT tem mais de 10 milhões de assinantes digitais e é considerado o maior case de sucesso do modelo no jornalismo. No Brasil, a grande maioria dos veículos jornalísticos brasileiros têm paywall. A exceção fica com os portais e com alguns sites independentes.
Dado este contexto inicial, é possível afirmar que o paywall é uma forma de financiamento bem sucedida. No entanto, 10 anos se passaram e algumas questões éticas permanecem em aberto, sem resolução prevista por parte das empresas jornalísticas. Parece que não há interesse em enfrentar esses dilemas, que são considerados menores diante do argumento de que “o jornalismo profissional precisa do dinheiro dos assinantes para se manter independente”, como afirmou Sérgio Dávila, diretor de redação da Folha. Pelo contrário, os sites jornalísticos estão cada vez mais fechados. Houve um tempo em que se podia acessar 10, até 20 matérias por mês sem esbarrar no muro de pagamento. Hoje, o acesso livre é bem mais restrito e ainda há conteúdos que são exclusivos para assinantes (principalmente colunas), o que faz com que o bloqueio exista mesmo se estou acessando aquele site pela primeira vez.
E por que estamos falando em questionar o paywall? Ao digitar a palavra no Google, um dos primeiros resultados mostra maneiras de burlá-lo. Na lista de perguntas mais feitas no buscador, a primeira é “como fugir do paywall?”. A partir desse comportamento do leitor, podemos inferir que há interesse pelo conteúdo jornalístico, mas o paywall surge como barreira quase intransponível. Há sites que removem o muro, mas não demora muito até que as empresas jornalísticas criem maneiras de não fazê-los funcionar. Um jogo de gato e rato que nos lembra, sempre, que a informação quer ser livre.
Vamos então a algumas questões éticas sobre adoção do paywall como principal modelo de negócios do jornalismo brasileiro.
Formas menos restritivas
O jornal britânico Guardian, por exemplo, dá acesso livre a seu conteúdo e pede contribuição voluntária dos leitores. Em que pesem diferenças econômicas e culturais entre Brasil e Inglaterra, o jornal provou que é possível fazer a mesma virada digital que o New York Times fez – com mais assinantes digitais do que do impresso – sem subir o muro de pagamento. O Guardian ainda conseguiu uma maneira criativa e relevante de beneficiar os assinantes: empacota e hierarquiza de maneira diferente a informação para quem paga, provando também o valor da curadoria do jornalista. O modelo de membership também não pressupõe o uso de paywall, mas a formação de comunidades de leitores que, muitas vezes, participam da gestão e da parte editorial do veículo.
Não dá pra assinar todos
Veja se você já não se deparou com a seguinte situação: você é assinante de um veículo nacional, mas quer muito ler uma notícia cujo furo de reportagem foi do jornal concorrente. Nenhum outro deu ainda, então é importante ter acesso à matéria original. No entanto, ela está com paywall e você não consegue ler. Isso acontece porque é financeiramente impossível, para a grande parte da população brasileira, assinar dois, três ou mais sites jornalísticos. Para as empresas, isso é considerado uma vantagem, já que fideliza o leitor. Mas para o leitor, é uma fidelização compulsória, que exclui a diversidade de angulações e de informação.
Dificuldades do jornalismo local
Como tem dado certo com os grandes, os veículos jornalísticos menores – muitos deles dedicados ao jornalismo local -, também aderem ao paywall, esperando o mesmo sucesso. No entanto, se já é difícil assinar mais de um veículo, como mostramos no argumento acima, pior ainda é decidir por assinar um jornal local, cujo “local” muitas vezes fica só no nome. Notícias de agências e caça-cliques nacionais acabam desviando o conteúdo local e esvaziando a pertinência da assinatura.
Na mesma matéria da Folha que citamos, o jornal afirma que “em 2020, no início da pandemia, a Folha tomou a decisão de liberar todos os textos com serviços relevantes sobre Covid”. Além da subjetividade do critério – o que seriam serviços relevantes sobre a Covid? Ou, dito de outra forma, o que não é relevante em se tratando de Covid? – há uma espécie de paradoxo nessa estratégia. Quando a notícia for realmente importante para o leitor e tiver um impacto sobre sua vida o paywall será derrubado, o que faz com que esse mesmo leitor questione a qualidade e relevância do conteúdo que está dentro do paywall. Será que ele é tão indispensável assim? Porque, quando for, o muro será derrubado. Além disso, essa estratégia aparentemente “boazinha” e focada no interesse público guarda um aspecto mercadológico: eu abro minhas notícias na intenção de que a pessoa leia, goste e decida pagar. Algo legítimo, mas que fica subentendido diante do discurso em prol da “relevância do assunto para o cidadão”.
Fake news não têm paywall
A desinformação complexificou e levantou novas questões sobre a existência do paywall. O esforço de bem apurar, checar e divulgar as notícias pelo jornalismo profissional não consegue fazer frente às fake news quando estão sob o paywall. A lógica é inversa: a desinformação quer circular o máximo possível, enquanto a notícia bem feita e de qualidade fica presa no bloqueio do paywall. A primeira incentiva o espalhamento e circulação. A segunda incentiva a restrição, que só acaba com a contribuição financeira. Diante dos incontáveis prejuízos que as fake news já causaram ao jornalismo e ao país, este talvez seria o melhor argumento para que os veículos começassem a repensar o paywall. Mas, como dissemos anteriormente, não há sinais de que o modelo esteja arrefecendo.
As questões acima não esgotam a discussão sobre o modelo do paywall, mas são um ponto de partida que convida à adoção de outras formas de financiamento que privilegiem a informação livre. Se é de interesse público o que o jornalismo faz, deveria também ser de abrangência pública seu conteúdo, o que não exclui a monetização e a sustentabilidade financeira do jornalismo.