Desinformação e seus ingredientes nocivos

Por Ana Regina Rêgo.

Artigo também disponível em Jornal O Dia e Portal Acesse Piauí.

Muito tem se debatido sobre desinformação, do fenômeno ao conceito, do ecossistema ao modelo de negócios das plataformas, mas existem ingredientes intermitentes que compõem a fórmula básica dos profissionais que trabalham no mercado que denominamos (eu e Marialva Barbosa), de mercado da construção intencional da ignorância e que são estruturais e estruturantes da sociedade brasileira.

Podemos pensar no discurso de ódio que por sua vez, é atravessado pelo machismo e pelo racismo estruturantes, que se manifestam em milhares e milhares de peças comunicacionais carregadas de desinformação e que são direcionadas às mulheres, sobretudo, mulheres negras e trans e demais LGBTQIA+.

Podemos pensar no moralismo arcaico e preconceituoso que trabalha diretamente na regulação dos corpos que tentam fugir aos espaços definidos pelo patriarcado. Corpos femininos são, de um lado, regulados e limitados ao espaço de exibição privado, e, por outro, objetificados dentro do machismo que luta para continuar na gestão das sociedades. 

Podemos pensar nos negacionismos que partem de distorções históricas na tentativa de reescrever o passado a partir de fraudes históricas, visto que a disputa permanente pelo passado, no presente, decide os rumos do futuro. 

Podemos pensar no negacionismo científico que tanto tem se manifestado desde a constituição do lucrativo movimento antivacina que reúne grandes empresários, nos Estados Unidos e em muitos países do norte e sul. Movimento este sobre o qual já tratamos nesta coluna e que trabalha em forma de cadeia produtiva, envolvendo empresários da comunicação, planos de saúde, organizações não governamentais, dentre outros. 

Esse tipo de negacionismo lucrou muito nos anos iniciais da pandemia e teve grande adesão da classe médica, inclusive, no Brasil, onde o tratamento precoce tornou-se objeto de disputa política e teve como grande fomentador e difusor o próprio Presidente Jair Bolsonaro, ainda que atuando de forma contrária à ciência e as instituições científicas que atuaram e continuam atuando na pandemia da Covid-19 e no desenvolvimento e aperfeiçoamento de vacinas. Esse movimento expôs a crise entre os regimes de verdade do médico prático ( experiência) e do cientista (evidência), crise também visualizada em outras áreas da vida em sociedade.

No Brasil já passamos os mais 670 mil mortos por Covid-19, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas com informações corretas e outras tantas, se as vacinas tivessem sido adquiridas e distribuídas mais cedo. 

A desinformação mata e quando é construída com negacionismo e intenta plantar um discurso de ódio a partir do machismo, da misoginia, do racismo etc., é bem pior, tornando-se fatal porque incita a violência física direta. 

Vimos isso, várias vezes. Na Inglaterra durante a campanha do Brexit com o assassinato da Deputada britância Jo Cox em 2016. No Brasil, dois anos antes, em 2014, as fake News  disseminadas nas redes sociais levaram a população do Guarujá, litoral de São Paulo, a assassinar brutalmente Fabiane Maria de Jesus, que teria sido acusada de magia negra.  Já este mês de junho de 2022, um turista foi linchado e queimado vivo pela população de Papatlazolco no México. A cidade acreditou nas informações falsas que o acusavam de roubo de crianças.

Em anos eleitorais como o que estamos vivenciando, o mercado da desinformação trabalha diuturnamente produzindo muita desinformação e procura desenvolver as peças comunicativas de modo profissional e estrategicamente pensado. Em 2018, as famosas fake News que colocaram grande parte da população brasileira contra as chapas dos partidos de esquerda partiram de simples fakes, eram fraudes puras como a mamadeira, o kit gay, o projeto de lei para legalizar a pedofilia, mesmo assim, muitos brasileiros acreditaram na pura mentira. 

Em 2022, os desafios são maiores a desinformação se especializou durante a pandemia e o pleito de 2020, passando a trabalhar narrativas híbridas, não basta mais a pura mentira, como o kit gay, agora fatos são misturados às mentiras e às descontextualizações temporais e/ou espaciais. Para além disso, novas tecnologias como a deepfake, processo tecnológico sobre o qual também já tratei nesta coluna, possibilita que as imagens e os áudios sejam manipulados, tornando mais difícil o combate à desinformação. 

Nos dias atuais, dentro da Rede Nacional de Combate à Desinformação temos recebido um grande número de material de denúncias contendo desinformação e que se referem às narrativas que trabalham negacionismo histórico, misturado com um moralismo exacerbado condenando o aborto, os relacionamentos homoafetivos, e as pessoas LGBTQIA+. Para além disso, um grande rio de ódio corre em canais, perfis e, principalmente, grupos em aplicativos de mensagens de igrejas neopentecostais extremamente conservadoras que misturam tanto os temas relacionados acima, como uma ligação dos partidos de esquerda ao comunismo e que estes seriam não somente inimigos a serem combatidos, mas perseguidores das religiões e de seus fiéis. 

Desse modo, vale ponderar que embora a desinformação possa vir em forma de trollagem, memes e sátiras, mesmo nessas formas, é carregada de intencionalidades ideológicas e políticas, e, terminam cultivando o ódio das pessoas em relação a determinados personagens, instituições, partidos etc.  

O desconhecimento do passado histórico, a falta de relação com a experiência humana, o fechamento para o outro, convoca pessoas para o ódio, criando ondas que têm prejudicado a vida de milhares de indivíduos, principalmente, mulheres. Nesta coluna também já trouxe  a temática da desinformação contra mulheres que comumente é recheada de machismo e misoginia e que tenta desqualificar as mulheres pela cor da pele e/ou desqualificar o trabalho que desenvolvem. 

Vale lembrar aqui, uma pesquisa do Center for Countering Digital Hate -CCDH divulgada recentemente e também já abordada neste espaço opinativo,  identificou um verdadeiro oceano de ódio contra mulheres que possuem grande número de seguidores no Instagram, em face de suas profissões. Esse oceano de ódio se localiza nas DM, mensagens diretas do Instagram, onde homens racistas, machistas e misóginos atacam e ameaçam mulheres. Em alguns casos, os bots fazem o trabalho sujo.

Diante do exposto e de tudo o que já debatemos neste espaço, vale, portanto, concordar com Manuela D’Ávila, em recente fala no I Colóquio Internacional sobre desinformação. Manuela tem sido grande vítima do mercado da desinformação no Brasil e trabalha com a hipótese, com a qual concordamos, de  que a desinformação não se separa do discurso de ódio, ao que acrescento, que também se une ao machismo, à misoginia e ao racismo estrutural em nosso Brasil. Nesse processo, o negacionismo seja histórico, científico ou jornalístico serve de estratégia para sensibilizar as pessoas com vistas a obtenção dos objetivos ideológicos e políticos dos que trabalham na tentativa de manipular as mentes. Fiquemos atentos a tudo o que recebemos, mesmo que seja do Padre ou do  Pastor, do Pai ou da Mãe, do Tio ou da Tia.

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