Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.
Andressa Oliveira
Jornalista, é mestra em Letras pela UESB e pesquisadora associada do objETHOS
Eu tinha 17 anos em 2016, quando pela primeira vez acompanhei a votação de um impeachment contra a presidenta da época, Dilma Rousseff. A primeira mulher eleita e reeleita como presidente na história do Brasil. Rouseff foi denunciada ao Congresso Nacional, acusada de ter cometido um crime de responsabilidade fiscal por assinar decretos, que extrapolaram R$95 bilhões de reais no orçamento fiscal de 2015 sem consultar o legislativo.
Na noite do dia 17 de abril de 2016, eu acompanhei do começo ao fim pela TV a votação do processo na Câmara dos Deputados, em que 367 deles votaram a favor do impeachment. Entre os deputados, a declaração de um despertou fortes críticas na imprensa: Jair Messias Bolsonaro. Com um discurso planejado, leu o seu voto através de um pedaço de papel: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim”.
A frase fixou na minha memória. Pesquisei sobre quem era o “pavor de Dilma Rousseff”. Um coronel que derramou sangue, torturou e infligiu dor em dezenas de pessoas inocentes: Carlos Alberto Brilhante Ustra, que morreu impune em outubro de 2015. No período da Ditadura Militar (1965-1985), ele representou não só o medo da Dilma Rousseff, mas também o de centenas de vítimas, em sua maioria mulheres, crianças, pais e mães. Conhecido como o maior torturador que o Brasil já teve, foi chefe do Departamento de Operações de Informações do Exército de São Paulo e sob seu comando, foram registrados cerca de 434 mortes e desaparecimentos, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Esse acontecimento marcou a minha formação. Primeiro pelo registro histórico de acompanhar um processo de impeachment pela televisão, que me levaria um ano depois, em 2017, a escolher o jornalismo como profissão, intermediado pelo desejo de compreender o universo da comunicação e segundo, porque nesse mesmo ano, em outubro de 2016, após tirar o Título Eleitoral, eu exerci pela primeira vez o direito democrático de escolher os meus representantes políticos nas Eleições Municipais de 2016.
As manifestações nas ruas e a crise política provocada pela queda de um governo e a sucessão do vice-presidente Michel Temer à presidência, revelava um Brasil que ainda usava bandeiras, cartazes e ocupações em espaços públicos para comunicar suas mazelas sociais ou declarar apoio aos representantes políticos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, entre os dias 17 e 28 de março de 2016, com 810 cidadãos de todo Brasil, apontou que 59% dos brasileiros participaram das manifestações para protestar contra a corrupção, 34% pelo impeachment da Presidenta da República e 6% foram motivados pelos protestos contra a situação econômica do país.
Polarização política e redes sociais
Dois anos depois, em 2018, a polarização política ganhou força por meio das redes sociais. Os autores Felipe Nunes e Thomas Traumann, relatam no livro A Biografia do Abismo, que as eleições presidenciais daquele ano inauguraram um novo jeito de fazer comunicação no Brasil.
“Em 2018, 70% dos brasileiros – 126, 9 milhões de pessoas usaram a web regularmente. Naquele ano, o número de domicílios com pelo menos um aparelho celular chegou a 93%. Os resultados de uma pesquisa sobre tecnologias da informação e comunicação (TIC), apontaram também o avanço entre usuários das classes D/E, de 30% em 2015 para 48% em 2018. Em relação aos dispositivos utilizados, o estudo apontou que 85% dos usuários de internet das classes D/E acessavam a rede exclusivamente pelo celular. No total, o celular era o principal meio de conexão para 97% dos brasileiros” (NUNES, TRAUMANN, 2023, p. 43).
Com o tecido social fragilizado pelas polarizações, 2018 foi o ano em que Jair Messias Bolsonaro se tornou o 38º presidente do Brasil com uma campanha eleitoral organizada a partir das redes sociais. Os autores Nunes; Traumann (2023, p. 46) apontam, que após a confirmação da vitória no segundo turno das eleições, Bolsonaro realizou um pronunciamento por meio do Facebook, “rompendo uma tradição de décadas na qual os presidentes eleitos discursam para emissoras de rádio e televisão”.
Essa mudança contribuiu para consagrar as redes sociais como um palco de disputas de narrativas e a política como um fenômeno de fortalecimento da identidade do eleitor brasileiro. Segundo os autores, as eleições de 2018 “foi a primeira em que ficou comprovada a influência do WhatsApp na formação de clusters para a distribuição de informação – verdadeira ou não – de cada candidato” (p. 47).
A interferência direta de mensagens via WhatsApp facilitava a propagação de fake news e apontava para a formação de “um novo ecossistema de comunicação política” baseada pela recusa de informações que afetassem o viés de confirmação do eleitor. Em um estudo sobre o perfil comportamental do eleitor nas eleições de 2022, Nunes e Traumann (2023, p. 55), apontam que esse ecossistema “enviesado produziu dissonâncias cognitivas coletivas capazes de sugar a energia de todos no bate-rebate diário do que é verdade ou mentira”.
“Nas eleições de 2022, esse ecossistema ficou escancarado. Para evitar a vitória do adversário, valia tudo: espalhar mentiras, defender o indefensável e romper com amigos e familiares. É como uma câmara de eco na qual o eleitor ouve ressoar exatamente suas próprias ideias” (NUNES, TRAUMANN, 2023, p. 55).
A desinformação atingiu um patamar tão alto, que compartilhar informações falsas passou a ser visto como uma tática para fortalecer candidatos. Diante desse breve panorama histórico, os últimos seis anos da política brasileira foram marcados pela ascensão e potencialização do discurso por meio das redes sociais, a desinformação em massa por meio de aplicativos e a polarização política que provocou violência extrema na sociedade.
Inteligência artificial no jogo da política
Em outubro deste ano, milhares de eleitores de todos os municípios brasileiros devem comparecer às urnas para participar das Eleições Municipais 2024. O primeiro turno está marcado para ocorrer no dia 06 de outubro; e o segundo turno deve ocorrer em 27 de outubro, nos municípios com mais de 200 mil habitantes que não conseguirem decidir as eleições no primeiro pleito.
As Eleições Municipais devem ser marcadas por mais um fenômeno social: o uso da Inteligência Artificial nas propagandas eleitorais. Diante da falta de leis que regularize a punição contra o uso de notícias falsas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) elaborou a Resolução Nº 23.610, de 18 de dezembro de 2019, que estabelece diretrizes para coibir e punir a propagação de Fake News e de desinformação nas eleições. Em 27 fevereiro de 2024, o TSE aprovou uma nova Resolução Nº 23.732 que alterou a resolução anterior e estabeleceu novas diretrizes para o uso da IA, especificamente para o cenário político eleitoral de 2024.
Entre as novas mudanças, O TSE proíbe o uso de deepfakes; uma técnica utilizada pela Inteligência Artificial para modificar a voz e a face das pessoas em formato de vídeo. Essa tecnologia pode criar conteúdos falsos que imitam a realidade. Além disso, propagandas eleitorais que utilizarem recursos da inteligência artificial, precisam sinalizar para o eleitor e eleitora que a propaganda foi elaborada com o uso de IA. Outra restrição imposta pela resolução tem relação com o uso de robôs. Partidos, candidatos e coligações não podem intermediar o contato com os eleitores por meio de robôs através de canais das redes sociais. O TSE também aponta que as big techs serão responsabilizadas, se não retirarem das plataformas, “imediatamente, conteúdos com desinformação, discurso de ódio, ideologia nazista e fascista, além de dos antidemocráticos, racistas e homofóbicos”.
A resolução ainda aponta no artigo 9º, que na propaganda eleitoral, o uso das informações em qualquer tipo de conteúdo, “pressupõe que a candidata, o candidato, o partido, a federação ou a coligação tenha checado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação”.
Nessas eleições, o que chama a atenção no texto elaborado pelo TSE é o nível de responsabilização atribuído a todas as instâncias da sociedade, assim como punições específicas para os casos de manipulação de conteúdo e desinformação que provoque “danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral”. A infração para esse tipo de conduta pode “caracterizar abuso de utilização dos meios de comunicação e acarretar a cassação do registro ou do mandato, bem como a apuração das responsabilidades, nos termos do artigo 323 do Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965)”.
Entretanto, apesar das diretrizes estabeleceram princípios normativos específicos que ajudam a compreender, fiscalizar e analisar o uso da inteligência artificial, o limite da desinformação no âmbito das redes sociais continua a desafiar as leis e a interação da sociedade.
No livro Pós-Verdade – A Nova Guerra Contra os Fatos em Tempos de Fake News, o jornalista britânico Mattew D’Ancona, afirma que nas redes sociais,
“Os algoritmos se destinam a fazer: conectar-nos com as coisas que gostamos, ou podemos vir a gostar. Trata-se de algo bastante responsivo ao gosto pessoal e – até agora – bastante cego à veracidade. A web é o vetor definitivo da pós-verdade, exatamente porque é indiferente à mentira, à honestidade e à diferença entre os dois” (D’ ANCONA, 2018, p. 55).
Essas eleições também representarão um marco histórico no país. É a primeira vez que o TSE cria uma resolução específica para o uso da Inteligência Artificial em Eleições Municipais. Esse é um fenômeno novo na qual toda sociedade, inclusive os jornalistas, deverão observar o movimento das redes sociais e como essas novas modificações serão recebidas pelos partidos e coligações, assim como pelo público, que majoritariamente se informa nas redes sociais.
O nível de confiança no jornalismo brasileiro também é uma questão que merece análise. A pesquisa Digital News Report 2023, elaborada pelo Instituto Reuters em parceria com a Universidade de Oxford, apontou que o índice de confiança no jornalismo brasileiro caiu 5% de 2022 para 2023. Apenas 43% dos brasileiros confiam no jornalismo produzido no país. Segundo o Instituto Reuters esse é o índice mais baixo já registrado desde 2015, quando o nível de confiança atingiu 62%.
Outro dado da pesquisa revela que a maior parte do consumo de notícias ocorre nas redes sociais. No Brasil, 79% dos entrevistados afirmaram consumir conteúdo online, 57% se informam por meio das redes socias, 12% através do impresso e 51% pela televisão.
Nesse panorama estatístico, o comportamento do consumo de notícias vem sofrendo alterações desde 2018. O cenário apresenta grandes desafios que que não podem ser solucionados com uma única resposta. Cabe a cada um de nós assumir o nosso papel de cidadão e refletir sobre como sairemos dessas Eleições Municipais de 2024. As possibilidades para encontrar as respostas vai depender do nosso empenho e da nossa atenção diante das mudanças.