Desinformação à brasileira: muito áudio e voz de autoridade

Publicado originalmente em *Desinformante por Carlos Senna. Para acessar, clique aqui.

O ambiente de desinformação nos espaços comunicacionais em cada país possui peculiaridades, mesmo quando os agentes que propõem as peças de informação enganosa, ou as disseminam maliciosamente, copiam modelos de outros países. O Brasil é um país onde isso pode ser observado pela lente da vasta pesquisa em comunicação e pelo monitoramento da disseminação da desinformação, do seu conteúdo e sua forma, esta última com predileção pela linguagem popular oral e pela voz de autoridade.

Como observa a doutora em Linguística e jornalista Eliara Santana, o sistema desinformativo brasileiro se destaca por uma estrutura única, muito organizada, muito capilarizada, com amplo financiamento que inclui um aporte da própria administração do Estado. O alcance é muito maior que o da mídia tradicional ou das plataformas digitais de interação social e captura de dados pessoais, num país enorme, com uma dimensão de interface com o sistema de informação tradicional e uma forte presença e interação com instituições religiosas.

Por comparação, se olharmos para o ambiente de desinformação norte-americana, há elementos coincidentes. Os Estados Unidos também são um país de grandes proporções onde uma estrutura bastante organizada rege o ambiente de desinformação, com grande alcance e esquema de financiamento, onde o governo federal emprestou parte da sua força à disseminação de informações falsas e onde muitos pregadores ligados ao messianismo protestante também entraram no jogo das operações de influência psicológicas e comunicacionais. As diferenças, no entanto, também são várias, incluindo a dependência ampliada dos canais de TV a cabo e por assinatura, o papel das grandes plataformas digitais e uma estrutura de capilaridade dos canais de transmissão mais limitada do que a brasileira em certos aspectos.

Apesar disso, uma das principais diferenças é quanto ao conteúdo e à forma das peças de desinformação. Diferente dos Estados Unidos, onde os memes e os textos – estruturados como telegramas, comunicações oficiais ou material jornalístico – têm papel preponderante, no Brasil os áudios, depoimentos de vídeo e mensagens enviadas por aplicativos de comunicação direta com fortes marcas de oralidade têm muito mais protagonismo. De forma resumida e simplificada, a linguagem da desinformação norte-americana é da Cultura de Massa (a cultura popular hegemônica produzida pela indústria cultural observada por Adorno), enquanto no Brasil é a linguagem popular.

Uma análise preliminar dos chamados “Q drops”, postagens de uma conta anônima chamada Q nas plataformas 4-chan e 8-kun que pode ter sido alimentada por vários indivíduos – incluindo os donos do 8-kun Jim e Ron Watkins – que orientam as crenças de cerca de 41 milhões de pessoas nos EUA, mostra como imagens e linguagem reproduzida de filmes e livros guia o formato dos textos e funciona como convocação de afetos.

Na sua quarta postagem, quando a plataforma 4-chan ainda era a usada pelo anônimo Q (e reproduzida aqui do site Qposts.online), um estilo com diversas marcas já tinha se estabelecido, seria adotado em praticamente todas as mensagens e emulado por outros líderes em outros grupos de extrema direita. O estilo militar, com frases curtas, colocando questões que devem ser respondidas pelo leitor, mas que levam a certas conclusões para quem está imerso nos sentidos estabelecidos pelos discursos hegemônicos que circulam nos grupos de seguidores é comum nas postagens. Também há as referências a produtos da indústria cultural como o uso da imagética das migalhas de pão que devem ser seguidas, como na história infantil de João e Maria, e o nome da falsa operação, “Mockingbird”, como o título em inglês do romance gótico de Harper Lee “O Sol é para todos” que trata de temas de racismo, mas também de estupro e perda da inocência, temas recorrentes nos drops.

No canal bolsonarista no aplicativo Telegram monitorado pelo usuário do Twitter @printsminions, o líder e youtuber Marcelo Frazão, que foi condenado no começo de 2022 por associar a vacina contra a covid-19 com o que ele identificou como “síndromes graves” como o “câncer” e o “homossexualismo”, se comunica principalmente por áudios, produzidos no mesmo estilo das falas do falecido guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho. São falas cheias de comandos, mas com performance invectiva e com variações que vão da calma professoral, passam pela irritabilidade confessa com os membros que falham em seguir suas orientações e confiar plenamente nas qualidades de Jair Bolsonaro e tendem a terminar raivosas, com ataques a inimigos conhecidos e desconhecidos. Tudo devidamente fundamentado em desinformação. Enquanto o modelo do QAnon norte-americano convoca os afetos de medo, ódio e busca pelo conforto na figura do líder paternalista associando-os aos produtos culturais em repetição, o modelo brasileiro convoca os mesmos afetos por meio dos mecanismos da oralidade da voz de autoridade.

Na comunicação dos membros nas posições baixas na hierarquia do grupo, a forma e o conteúdo são bastante diferentes. O formato norte-americano varia com as plataformas, mas tem em comum a repetição dos temas da cultura de massa em forma de memes, textos curtos, imagens e associações mais simples, mas que carregam a narrativa da desinformação, ao mesmo tempo sinalizando participação no grupo, a identificação através da repetição da narrativa e reforçando as fronteiras ao rejeitar posições antagônicas e estabelecer alvos como opositores. O exemplo é de um apoiador respondendo ao próprio Trump com três memes, uma curta referência à teoria de que a eleição foi fraudada, uma notícia falsa e uma referência a um famoso programa de televisão. Em vídeos, há o esforço por reproduzir uma estética televisiva do jornalismo, dos programas de entrevista ou de variedades no estilo Late Night.

A oralidade surge ainda mais forte nesse mesmo recorte nos grupos brasileiros que promovem desinformação. Os aplicativos de mensagens diretas, como o Telegram e o WhatsApp aparecem com maior força no cenário de comunicação Brasileiro porque, neles, os usuários encontram maior facilidade para colocar suas próprias marcas de oralidade, que aparecem como grafias erradas assemelhando a palavra escrita à falada, chamados à imaginação é à fabulação de imagens e cenários futuros (como Jerusa Pires Ferreira aponta no livro “Matrizes Impressas do Oral”, onde aponta que na oralidade do texto brasileiro há uma aproximação entre dizer e ver) e expressões típicas das conversas informais. Nos áudios e vídeos, geralmente essa forma de linguagem é reproduzida, para dar o formato de alguém contando algo a um amigo.

Há, também, mensagens mais longas, onde os membros reproduzem o comportamento dos líderes e colocam suas próprias teorias, revelam suas frustrações ao grupo e com o grupo e propõem ações concretas. Estas mensagens diferem das dos líderes pois tendem a ser textos retomam o formato das mensagens de Olavo de Carvalho, como analisadas pelo professor João Cezar de Castro Rocha no seu livro “Guerra Cultural e Retórica do Ódio”, em vez de convocações de voz gravada. Podem também ser depoimentos em vídeos com a mesma estrutura, mas com a estética do Instagram. Os textos abusam das palavras de baixo calão, dos destaques com letras maiúsculas e do uso dos pontos de exclamação.

Essas características não são mera curiosidade estilística. A oralidade faz parte da cultura do brasileiro e seu uso em material de desinformação surge como elemento capaz de criar identificação com os grupos e fidelização dos sujeitos aos discursos hegemônicos nestes espaços. É uma forma efetiva de convocar afetos, manter os membros radicalizados mobilizados e ampliar o alcance de narrativas enganosas na tentativa de levá-las além das câmaras de eco criadas por estes agrupamentos. É uma das chaves para entender o alcance da desinformação e pode sê-lo, também, para combatê-la.

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