Publicado originalmente em O Estado do Piauí por Douglas Gomes. Para acessar, clique aqui.
O Piauí investe no mercado de hidrogênio verde; a produção do combustível levanta desafios e oportunidades para a viabilidade no contexto regional
Como salvar o planeta de uma catástrofe climática? Essa é uma das perguntas que circulam e atormentam os pensamentos dos cidadãos preocupados com a longevidade da vida na Terra. A resposta para essa questão não é simples e nem única. Um dos caminhos para essa solução está ligada ao modelo de desenvolvimento e exploração dos recursos naturais. A transição para uma economia verde, baseada em energias renováveis e tecnologias sustentáveis, é um passo crucial para adiar o fim do mundo. E o Piauí tem apostado alto na produção do hidrogênio verde para traçar um caminho de crescimento econômico focado na sustentabilidade. No entanto, desafios precisam ser enfrentados para implantação e manutenção de métodos que evitem o prejuízo ao meio ambiente e garantam a rentabilidade do negócio.
Desde o início da Revolução Industrial, por volta de 1750, houve um aumento significativo na concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO2), o que representa riscos para a intensificação do efeito estufa. As alterações na composição da atmosfera, causadas pelo acúmulo de gases de efeito estufa, têm desencadeado transformações permanentes nos padrões climáticos globais, que ameaçam a sobrevivência de diversas espécies. Isso ocorre principalmente devido às atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) para energia, transporte e indústria.
Segundo o relatório da 10ª edição do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima, as emissões de gases de efeito estufa no Brasil em 2021 apresentaram o maior aumento desde 2003: o país ocupa a sétima posição entre os maiores emissor de gases de efeito estufa do mundo, com 3% do total mundial. As emissões brutas de gases de efeito estufa do Brasil em 2021 alcançaram 2,4 bilhões de toneladas, representando um aumento de 12,2% em relação a 2020, quando o país emitiu 2,1 bilhões de toneladas. O aumento nas emissões ocorreu em quase todos os setores da economia, impulsionado principalmente pelo desmatamento, pelo agro e pelas formas de produção de energia.
No setor de energia, as emissões atingiram 435 milhões de toneladas de dióxido de carbono, representando o maior aumento em 50 anos. O relatório indica que as emissões de gases de efeito estufa nessa área tiveram um aumento significativo de 12,5%. Esse crescimento, segundo o estudo, está atrelado à recuperação econômica pós-pandemia, bem como a condições de seca extrema que afetaram a geração de energia hidrelétrica e à redução do uso de etanol.
Surge desse panorama, uma urgência: a descarbonização. Descarbonizar significa reduzir ou eliminar a dependência de combustíveis fósseis, que são os principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa.
Como solução, a rápida implementação do hidrogênio verde, ou H2V, parece uma promessa para descarbonizar setores desafiadores em termos de redução de emissões, ao mesmo tempo em que assegura a segurança energética. Essa é a aposta do Panorama das Transições Energéticas Mundiais, lançado em 2022 pela Agência Internacional para as Energias Renováveis (IRENA), que considera o hidrogênio verde, junto da biomassa, as fontes de produção de energia descarbonizadas com maior probabilidade de se tornarem viáveis e rentáveis nos próximos anos.
O hidrogênio é um elemento amplamente encontrado no universo e é o quarto elemento mais abundante em nosso planeta. Embora seja um gás incolor, várias cores são usadas para identificar a fonte e o processo de geração do hidrogênio. Entre as tipos mais comuns, destacam-se o hidrogênio cinza, azul e verde.
Pensando nesse setor, foi instaurada em abril deste ano no Senado a Comissão Especial para Debate de Políticas Públicas sobre Hidrogênio Verde. A Comissão, presidida pelo senador Cid Gomes (PDT-CE), tem como objetivo discutir políticas públicas relacionadas ao hidrogênio verde. Ao longo de dois anos, a comissão irá debater maneiras de promover a expansão dessa tecnologia de energia limpa em larga escala, além de avaliar políticas públicas que impulsionem o uso desse combustível, produzido a partir de fontes renováveis ou de baixo carbono.
No contexto piauiense, o governador Rafael Fonteles (PT) anunciou a obtenção de um investimento de R$ 50 bilhões para impulsionar a produção de hidrogênio verde do estado. Rapidamente essa fonte de energia se tornou a menina dos olhos de Rafael entrou como um dos focos do atual governo. Durante uma missão na Europa, o governador ressaltou que esse valor é cinco vezes maior do que os investimentos planejados pela União Europeia para o Brasil. Essa iniciativa do bloco europeu visa promover a transição para energias limpas e reduzir a dependência de combustíveis fósseis.
Combustível do Futuro
O pesquisador e integrante do grupo de pesquisa em hidrogênio verde da UFPI, Francisco de Assis Mota, explica que esse combustível é considerado como o futuro da produção sustentável de energia. Para realizar a obtenção de hidrogênio verde é necessária uma quantia abundante de água aliada a uma carga de energia renovável, como a solar fotovoltaica ou eólica, utilizada para alimentar o eletrolisador. Assis fala que o processo de geração de energia a partir desse método, que separa as moléculas de hidrogênio (H) e oxigênio (O), é altamente sustentável. “O processo se dá pela eletrólise, quebra da molécula de água, com auxílio de energia. Ao fim deste processo teremos oxigênio e hidrogênio. A grande vantagem é que torna-se uma fonte inesgotável, ambientalmente correta, auxiliando na redução de impactos ambientais”.
Para essa produção ser viável, um dos elementos essenciais é água. Lidar de forma consciente com esse recurso significa considerar não apenas as necessidades presentes, mas também as demandas futuras. Isso inclui adotar práticas sustentáveis na produção de energia sustentável e limpa. Assis conta sobre a necessidade de mecanismos que permitam a obtenção de água limpa e adequada para o bom funcionamento do processo de obtenção do hidrogênio verde. ‘’A qualidade da água irá influenciar na operacionalidade e manutenção dos equipamentos de uma unidade produtiva. Daí mecanismos que possam propiciar a obtenção de uma qualidade de água, sem que essa comprometa água utilizada para o consumo humano, será de extrema necessidade’’, ressalta.
Após o processo de eletrólise, o hidrogênio resultante da separação da molécula H2O é então armazenado na forma líquida ou gasosa; as moléculas de oxigênio separadas também podem ser comercializadas. Esse combustível, livre de emissões de dióxido de carbono, está pronto para ser utilizado. Segundo Assis, a aplicação desse recurso pode ser aproveitado em diversas áreas, inclusive na aviação. “O hidrogênio, sendo um vetor de energia, poderá ser utilizado em motores elétricos, unidades fabris, produção de fertilizantes, etc. Existem estudos que na atualidade já o convertem em outros combustíveis, exemplo seria o de aviação (QAV)”, diz.
Empreitada piauiense
O presidente da Investe Piauí, Victor Hugo, explica que o Piauí é o estado ideal para o desenvolvimento do mercado de hidrogênio verde devido às riquezas de recursos naturais. Ele indica que a Zona de Processamento de Exportações (ZPE) de Parnaíba vai integrar parte do ecossistema do futuro chamado Vale do Hidrogênio Verde do Piauí, onde os empresários estarão envolvidos na cadeia produtiva do H2V. “O Porto de Luís Correia é um local estratégico para a exportação do hidrogênio e a ZPE Piauí possui uma ampla e moderna estrutura, onde os investidores poderão se instalar com incentivos fiscais e menores custos de investimento”, conta.
Sobre a instalação do Vale de Hidrogênio, Victor Hugo explica que ele “será um ecossistema completo estruturado em uma determinada região para facilitar a produção, exportação e consumo deste vetor energético no estado, envolvendo as plantas de geração, armazenamento e escoamento do hidrogênio verde”.
Os investimentos no estado já somam R$50 bilhões. “Já foram firmados memorandos de entendimento com duas empresas que planejam investir na produção do combustível no estado, uma delas é a Solatio Energia, grupo espanhol que investirá R$30 bilhões em plantas industriais de produção de hidrogênio verde no Piauí. A alemã Solar Outdoor Media (SOM) aplicará R$20 bilhões em projetos sustentáveis no estado.”
Existem dois projetos mais adiantados para a produção de hidrogênio verde dentro do estado do Piauí, um deles focado na indústria de fertilizantes. Segundo Victor, ‘’Um dos projetos seria no litoral, onde o H2V pode ser exportado através do Porto de Luís Correia; e o outro projeto seria ao sul do estado, voltado para produção de fertilizantes para o agro com escoamento para a MATOPIBA.’’
Além das potencialidades para a produção sustentável de energia, o investimento no hidrogênio verde também deve contribuir para gerar empregos e oportunidades de desenvolvimento econômico nas regiões produtoras. “A implantação dessas usinas, desde a construção à operação, deve gerar milhares de empregos, além de movimentar toda uma cadeia produtiva e a economia das regiões onde estarão localizadas”, ressalta Victor Hugo.
Como matriz energética para realizar o processo de quebra da molécula de água, Victor conta que o Piauí consegue viabilizar e usar as três formas de geração de energia limpa para a produção de H2V: a solar, eólica e hídrica. Além disso, há uma busca para a regularização do uso da energia das hidrelétricas nesse processo. “E já está sendo articulado o aumento da capacidade da oferta de energia, com o estado buscando as licenças para hidrelétricas aqui visando reforçar a planta de hidrogênio verde” explica.
Desafios para manter a energia verde
A implementação do hidrogênio verde enfrenta um desafio considerável devido ao seu custo mais elevado em comparação com os combustíveis fósseis.O relatório recentemente divulgado pela IRENA (International Renewable Energy Agency – Agência Internacional de Energia Renovável), uma organização intergovernamental dedicada a promover a transição energética para um sistema mais sustentável, recomenda medidas para facilitar a implementação do hidrogênio verde, como a criação de um mercado regulado, a definição de um padrão internacional e o incentivo aos investimentos em toda a cadeia de valor. Além disso, destaca a importância de acelerar o desenvolvimento das fontes renováveis para garantir a disponibilidade de energia para a produção de hidrogênio verde.
O pesquisador do departamento de Química da UFPI, José Machado de Moita Neto, aponta os desafios que o Piauí deve enfrentar para a produção de hidrogênio verde no estado. “Os contratos de compra do mercado externo são de curta duração e depois serão submetidos a forte concorrência de preços internacionais. Somente se tivesse um grande mercado interno justificaria a aposta brasileira em hidrogênio verde”, explica.
Moita Neto também demonstra uma preocupação sobre a distância do Piauí com os principais centros consumidores de energia e o transporte do hidrogênio, visto que a cadeia de distribuição desse recurso deve passar por modelo sustentável para ser considerado “verde”. “Transportar hidrogênio pelo modal rodoviário queimando combustível fóssil (diesel) faz com que o mesmo perca a denominação de verde”, alerta.
Transportar hidrogênio pelo modal rodoviário queimando combustível fóssil (diesel) faz com que o mesmo perca a denominação de verde
Outra questão a ser considerada para a produção de hidrogênio verde é a procedência da água de alta qualidade e em grande quantidade. “A água do mar não serve. A eletrólise de água do mar, por conter sais, irá produzir cloro e hidróxido de sódio também. […] A utilização de poços ou uso de água da concessionária afetarão outras atividades econômicas como a irrigação. […] Os custos ambientais serão percebidos no ponto de captação de água e na recarga dos aquíferos”, adverte Moita Neto.