Desabrigados: moradias na Maré são demolidas pela prefeitura e população protesta

Publicado originalmente em Jornal O Cidadão do bairro Maré. Para acessar, clique aqui.

Texto e foto de capa: Carolina Vaz

Cerca de 40 famílias mareenses, moradoras do conjunto habitacional conhecido como Cão Feroz, no Parque União, foram violentamente expulsas de suas casas, tiveram seus objetos pessoais retidos e enviados para depósito, e as moradias destruídas pela prefeitura do Rio de Janeiro. A Secretaria Municipal de Ordem Pública (SEOP) começou as demolições na segunda-feira (19) e, nesta semana, entrou todos os dias no Parque União acompanhada de forças da Polícia Civil e da Polícia Militar, o que forçou a paralisação de toda a comunidade do P.U. e outras favelas como a Nova Holanda. Os moradores realizaram protestos, o último deles na sexta-feira (23).

“Uma notificação sem carimbo, sem nada”

Segundo um dos moradores atingidos, foi há cerca de duas semanas que residentes e comerciantes do Cão Feroz receberam uma notificação da prefeitura dizendo que eles teriam que sair de suas casas, porque os prédios seriam “construção irregular” e por isso seriam demolidos. Não houve um contato presencial e direto, seja de um servidor da SEOP seja da Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) apresentando uma solução para as famílias não se tornarem desabrigadas. Quem apareceu, na segunda-feira, foram as equipes da SEOP acompanhadas de forças policiais e equipadas para derrubar as casas.

Na quinta-feira (22), moradores ainda transportavam seus últimos bens antes de perder a casa com tudo dentro. Foto: Carolina Vaz.

“Não veio ninguém, ninguém para escutar o nosso lado, para bater de porta em porta e ver se realmente é morador”.

Nenhuma família estava, de fato, preparada para sair. A equipe da prefeitura sequer deixou que os objetos pessoais fossem levados pelas famílias para outro lugar; objetos de maior valor, como televisão, foram vistas como obtidas de forma ilegal e caso o morador não apresentasse comprovante de compra, seria transportada para um depósito, porém não foi informado o endereço deste depósito. Neste movimento, os moradores foram tratados como criminosos apenas por não poderem provar que compraram o que têm dentro de suas próprias casas. Não houve diálogo sobre para onde ir, como proceder para receber uma indenização, aluguel social ou qualquer assistência do poder público, apenas expulsão e apropriação dos objetos.

Não foram somente casas; no térreo havia pequenos comércios como mercearias e lojas de material de construção. Eram investimentos de moradores que tentavam ter seu próprio comércio, dentro da comunidade, e tiveram tudo destruído em poucos dias. Houve ainda abuso de autoridade, com xingamentos e ameaças de prisão contra os moradores. Segundo um deles, havia pessoas que tinham vendido suas antigas casas, moto e carro para adquirir um apartamento no Cão Feroz, e agora perderam o que um dia foi uma conquista.

Os prédios que ainda estavam no tijolo foram os primeiros a serem demolidos, mas os habitados também foram logo atingidos. Foto: Carolina Vaz.

“Se você for ver, se você rodar isso aqui, você vai ver que eles acabaram com a vida das pessoas, com os sonhos das pessoas”.

O “luxo” da favela

Os prédios, de até seis andares mas sem elevadores, foram muitas vezes chamados de “condomínios de luxo” por veículos de mídia, e portanto não poderiam ser adquiridos dignamente por moradores de favelas. Vários deles estavam bem pintados por fora e tinham espaço reservado para ar condicionado. Uma das revoltas dos moradores é justamente de que a aquisição de coisas boas na favela seja necessariamente associada a atividades ilícitas, conforme comentou nosso entrevistado: “Se você entrar na minha casa, você vai ver que a minha casa tem porcelanato, entendeu? (…) Eu tenho como comprovar tudo ali, eu paguei tudo, centavo por centavo. Eu não comprei nada roubado porque eu não preciso. Se eu tenho condições de construir uma casa, tenho condições de comprar um negocinho pra minha casa digna… mas eles alegam isso!”

O direito de ter uma casa com boa construção foi uma das reivindicações das manifestações. Foto: Carolina Vaz.

Outra moradora do Parque União, amiga de famílias que foram despejadas, comentou a tristeza de ver trabalhadores, crianças e idosos terem que sair de suas casas, muitos sem ter para onde ir: “É difícil, nós que somos trabalhadores sabemos que é difícil para cada um aqui comprar uma geladeira, um fogão, para eles chegarem assim e a pessoa perder tudo (…) As pessoas querem poder construir uma casa do jeito que quiserem, compram objeto por objeto, mas as pessoas [da prefeitura] não pensam nisso. Acham que a comunidade precisa ser só barraco”.

O direito dos moradores

Segundo Fernanda Vieira, professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), todas as violações de direitos estão sendo justificadas pela “segurança pública”, no caso o combate a atividades ilícitas já que, segundo a prefeitura, seria esta a origem dos prédios em demolição. Além disso, a ação está sendo completamente apoiada pela mídia que aderiu a termos como “condomínio de luxo” e ignora a situação e o destino das famílias que estão perdendo suas moradias e seus bens pessoais. A soma da ação do poder público com o apoio da mídia é exatamente o sentimento de impotência e abandono dos que estão, agora, desabrigados. Segundo a professora, em casos como este em que uma ou mais famílias residem um espaço que pertence a outro ou está em disputa, a remoção das pessoas não deve ser a primeira medida, e sim a última.

Muitas das frases de reivindicação no chão e nos prédios foram escritas no ato. Foto: Carolina Vaz.

“Se eu estou despejando de uma hora para a outra, eu estou dizendo que de uma hora para a outra uma família com suas crianças, cujas escolas estão naquela localidade, está sem teto”. – Fernanda Vieira, professora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) e co-coordenadora do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUPLuiza Mahin

Ela explicou, ainda, que existem diversas normas válidas para todo o Brasil que garantem o direito à moradia, inclusive em situações de conflito como esta, a exemplo da Resolução 510/2023, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A resolução orienta a realização de visitas técnicas em áreas onde há este conflito sobre a posse, e orienta a criação de Comissões de Soluções Fundiárias para que estas comissões tratem os casos antes de haver, de fato, um despejo, remoção ou até a destruição da casa como vem acontecendo. Sendo assim, a intervenção da Comissão de Solução Fundiária do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro é um caminho possível.

Operações e manifestação

Na última sexta-feira (23) realizou-se uma grande manifestação no Parque União, em resposta aos quatro dias consecutivos de operação policial na favela que causou a baixa movimentação do comércio, escolas e unidades de saúde fechadas e demais consequências dos riscos de circular na favela em dias de operação. Todo o Parque União amanheceu, no dia 23, “fechado”: nenhum comércio estava aberto, com exceção de poucas farmácias e bares. A concentração da manifestação se iniciou exatamente com os funcionários do comércio local, na praça do Parque União, e se encaminhou para o campo de futebol do São Cristóvão Futebol e Regatas, em frente ao BRT Maré e próximo dos prédios em demolição do Cão Feroz. Centenas de pessoas se fizeram presentes, com faixas, cartazes e até lençóis com palavras de impacto refletindo suas demandas.

Foi no campo de futebol que a maioria das pessoas aderiu à manifestação. Foto: Carolina Vaz.

As reivindicações não eram somente por justiça para os moradores do Cão Feroz, mas também pelo fim das operações policiais no território, que deixaram cerca de 9.000 alunos sem aula, unidades de saúde fechadas assim como o comércio, e demais trabalhadores que tiveram que faltar a seus trabalhos, podendo ser punidos. O dono de uma farmácia revelou, em entrevista, que o movimento ao longo da semana foi aproximadamente metade do normal.

Muitos profissionais de educação se juntaram ao protesto, a exemplo de Luana Dala, professora há 11 anos no Centro Educacional Oliveira Silva (CEOS), escola do Parque União que tem cerca de 900 alunos de dois a 15 anos de idade. “Eu estou aqui em prol da educação, estou em prol dos meus alunos, estou em prol da escola, as crianças estão há muito tempo sem aula, então nós precisamos acabar com isso, para que as crianças voltem a ter uma educação com dignidade“, afirmou. Outro fato que revoltou a comunidade na sexta-feira foi a Secretaria Municipal de Educação (SME), outro órgão da prefeitura, ter determinado a abertura das escolas municipais, apesar de haver uma nova operação policial em curso. Por esse motivo, profissionais da rede municipal fizeram outro protesto em frente à prefeitura.

Luana Dala, professora da rede privada, reivindicou o direito das escolas abrirem com segurança. Foto: Carolina Vaz.

O protesto no campo de futebol logo se dirigiu para a favela, percorrendo algumas ruas do Parque União até voltar para Av. Brigadeiro Trompowski, que foi fechada para os carros e tinha caveirões e carros de outras unidades da polícia militar. Os agentes também estavam na avenida, municiados. Ali, foram realizadas algumas falas em protesto, defendendo tanto o direito à moradia dos mareenses quanto o fim das operações policiais, e por fim a manifestação seguiu para o Espaço Lazer, também na Brigadeiro Trompowiski, onde a polícia se retirou e os moradores se encaminharam para os prédios em demolição.

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