Publicado originalmente em *Desinformante por Rodolfo Vianna. Para acessar, clique aqui.
Está na apresentação do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados: “para que o Parlamento funcione como um verdadeiro canal de participação popular no processo democrático, é necessário, sobretudo, que ele goze de credibilidade enquanto instituição representativa do cidadão. Se não há democracia sem representação, tampouco há representação sem credibilidade”. Mas o que acontece, na prática, quando um membro do Parlamento dissemina desinformação e fake news?
Até o momento, o Conselho de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados não pediu a perda de mandato de nenhum dos seus membros por disseminação de desinformação. “A dificuldade de enquadrar a disseminação de desinformação como quebra de decoro é a mesma de enquadrá-la como crime”, avalia o cientista político e jornalista Leonardo Sakamoto.
Fernando Francischini, então deputado federal e eleito deputado estadual pelo Paraná em 2018, teve seu mandato cassado e se tornou inelegível por decisão do Tribunal Superior Eleitoral, tomada em agosto de 2021. Com seis votos contra um, a decisão é considerada um marco no entendimento legal em referência à punição por propagação de desinformação pela Justiça Eleitoral. Foi o primeiro parlamentar a perder o mandato por esse motivo.
Enquanto isso, há representações contra três parlamentares no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados apontando quebra de decoro, especificamente, por disseminação de desinformação. A deputada Bia Kicis (PL-DF) é acusada pelo PSOL por propagar notícias falsas sobre o assassinato de um policial militar na Bahia. A deputada Carla Zambelli (PL-DF), acusada pelo PT de disseminar desinformação durante a pandemia de Covid-19. Já o deputado André Janones (Avante-MG) é alvo de representação movida pelo PP acusando-o de propagação de desinformação contra o presidente Jair Bolsonaro. As representações aguardam apreciação do Conselho.
O problema se agrava ao se constatar que a partir de 2023 o país terá, ao menos, 11 deputados federais eleitos e reeleitos que já foram checados e desmentidos pela Agência Lupa. Alguns com longo histórico de propagação de informações falsas. Para o Senado, também foram escolhidos políticos que recorreram à desinformação em mais de uma ocasião, como Magno Malta e Damares Alves.
Vale lembrar que o relatório final da CPI da Covid, realizada em 2021, trouxe o nome de 26 parlamentares que teriam divulgado desinformação sobre a pandemia.
Deputados são corporativistas
O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara é um órgão político. “O que a gente vê, antes de tudo, é que existe um certo corporativismo entre parlamentares que dificulta esse tipo de responsabilização”, afirma Marcelo Issa, advogado e cientista político, que lembra que acordos entre partidos, lideranças e outros interesses muitas vezes acabam produzindo uma “blindagem mútua”.
Leonardo Sakamoto concorda, apontando a dificuldade de se traçar a linha, principalmente pelos próprios deputados, entre o que é desinformação e o exercício da liberdade de opinião. “É claro que quando você fala de disseminação de desinformação em massa, de forma organizada, orquestrada, aí é diferente. Se você consegue descobrir que tal parlamentar está por trás de um esquema de manipulação de opinião pública, utilizando recursos, utilizando isso, utilizando aquilo, o negócio começa a mudar de figura”.
Por essa perspectiva, há a possibilidade de deslocar a questão da disseminação de desinformação do enquadramento de liberdade de opinião e passar a encarar a atitude do parlamentar como agente de um “ecossistema da desinformação”, de objetivos políticos claros e com consequências sociais, como ataques a grupos sociais específicos ou ao Estado Democrático de Direito.
“Eu acho que a gente vai acabar avançando para isso, mas tomando cuidado de garantir a liberdade de púlpito, que é uma das bases do Parlamento”, acredita Leonardo Sakamoto. “Eu acho que a gente vai conseguir avançar por uma questão de punição em cima da consequência, quando você descobre que é um crime de ódio, um crime contra o Estado Democrático de Direito o objetivo final dessa disseminação de desinformação”.
Tentativa de processar parlamentar foi estopim para AI-5
Uma das mais importantes prerrogativas democráticas do exercício do mandato parlamentar encontra-se no Art. 53 da Constituição Federal, que garante que “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Este artigo, de certa forma, os protege de processos por espalhamento de fake news.
Como lembrança histórica, foi a recusa do Congresso Nacional em autorizar que o então deputado federal Márcio Moreira Alves fosse processado, o que levou a ditadura militar a instaurar o AI-5 em dezembro de 1968, levando ao fechamento do Parlamento e endurecimento do regime.
No pedido feito pelo então Procurador-geral da República, Décio Miranda, o deputado era acusado de “abusar dos direitos individuais e políticos, praticando atentado contra a ordem democrática, vilipendiando as Forças Armadas, procurando contra elas criar sentimentos hostis da nação em que as mesmas se integram como instituições regulares e permanentes”.
À luz da necessária liberdade parlamentar de opinião para o exercício do mandato, Leonardo Sakamoto pondera que “de certa forma, essa possibilidade de trazer novos pontos de vista, trazer informações conflitantes, por mais que sejam de qualidade duvidosa, faz parte, inclusive, do embate parlamentar”.