Deputado evangélico publica montagem enganosa sobre desfile da Vai-Vai

Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Luis Henrique Vieira. Para acessar, clique aqui.

*Matéria atualizada em 19/02 para complementação de informações

O desfile da escola de samba Vai Vai, de São Paulo, que trouxe em uma de suas alas pessoas fantasiadas de policiais militares com chifres e asas, gerou reações negativas de políticos ligados à extrema-direita, com notas de repúdio e pedidos de suspensão do repasse de recursos públicos à escola. 

Entre os insatisfeitos com a apresentação do último 10 de fevereiro, sábado de Carnaval,, que exaltou a cultura Hip Hop no Brasil, estava o deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcanti (PL-RJ), pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo liderada pelo pastor Silas Malafaia. 

O parlamentar publicou, em 15 de fevereiro passado, em suas contas oficiais no Instagram e Facebook, uma montagem com a chamada: “Aberração patrocinada”, seguida de manchete do portal de notícias Metrópoles. O jornal havia publicado matéria, em reforço às críticas da extrema-direita à Vai-Vai, sobre uma autorização do Ministério da Cultura para a escola de samba captar, via Lei Rouanet, cerca de dois milhões de reais. A montagem do deputado recebeu a legenda “No DESgoverno Lula o que não falta é dinheiro público para bancar aberrações”. 

Bereia, então, checou o conteúdo publicado.

Imagem: reprodução Instagram/Facebook

A Vai-Vai, maior campeã do Carnaval de São Paulo, foi autorizada pela Secretaria Economia Criativa e de Fomento Cultural, do Ministério da Cultura, a captar R$ 2,1 milhões de reais, por meio da Rouanet. É o que informa a Portaria nº416, publicada em 25 de julho de 2023.

Contudo, a escola não utilizou o recurso. Segundo a matéria do Metrópoles, a agremiação não conseguiu captar o mínimo de 20% do valor autorizado, estabelecido na Portaria. Na época da homologação do projeto, a Vai-Vai informou ao governo apenas o nome do projeto chamado “??Capítulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o HipHop: Um Manifesto Paulistano”. Até então, a escola não tinha nem mesmo o samba-enredo, que veio a ser composto no final de 2023, conforme o site da agremiação. Este fato foi omitido pelo deputado em sua montagem, que fez uso do título explorado pelo jornal. 

A Lei Rouanet é frequentemente alvo de desinformação. Conforme Bereia explica em diversas checagens, a forma mais comum de financiar projetos pela Rouanet é o incentivo fiscal, prática que articula setor cultural, governo e setor privado. Para beneficiarem-se de um incentivo fiscal, os projetos culturais devem, primeiramente, ser submetidos à avaliação de um corpo técnico, que verifica se o projeto se enquadra nos requisitos da lei. 

Dessa forma, o projeto que é homologado não recebe do Governo a quantia, em espécie, como se pensa, mas recebe a autorização para captar a quantia de empresas dispostas a doar, como é o caso da Vai-Vai, que buscou esse patrocínio, porém não conseguiu, como descrito na matéria.

O deputado federal, entretanto, não está só na divulgação da desinformação. Na competição por views e cliques no X/Twitter, veículos de notícias utilizam, com frequência, manchetes sensacionalistas, que incorrem em desinformação. A chamada do site Metrópoles para este caso, por exemplo, também desinforma. Em sua conta no Twitter, o portal divulgou na primeira linha uma falsidade — o recebimento de R$2,1 milhões pela escola de samba — e depois a informação correta. Um artifício que prioriza o alcance da publicação na plataforma, mas que prejudica a qualidade do conteúdo jornalístico.

Imagem: reprodução X/Twitter

Historicamente, as escolas de samba produzem desfiles cujos enredos expressam abordagens críticas à realidade do paísMesmo no período da ditadura militar, as escolas de samba tiveram papel destacado na crítica ao Estado de exceção. O enredo da Vai-Vai, em 2024, abordou o lugar do Hip Hop na cultura popular, em especial, no que toca o empoderamento das periferias e o repúdio à forma como agentes do Estado praticam arbitrariedades violentas a estas populações. Daí a composição da ala que denuncia o papel da polícia militar na violência contra habitantes das periferias, em especial negros e negras. 

Em 2024, o desfile crítico se deu em um contexto dramático, sob a Operação Escudo, da Polícia Militar Paulista, na Baixada Santista. Moradores da região denunciam a prática de execuções, tortura e abordagens violentas por policiais militares contra a população local e egressos do sistema prisional, depois que um policial foi morto em uma das ações repressivas ao crime.

Esta expressão por meio do samba-enredo da Vai-Vai gerou reações negativas de policiais e de políticos ligados à Bancada da Segurança Pública, conhecida como Bancada da Bala. O governador Tarcísio de Freitas seguiu na mesma direção,  e declarou que teria dado “nota zero à escola”. Veículos da extrema-direita chegaram a publicar que a Vai-Vai tem vínculos com o crime organizado. 

O presidente da Vai-Vai Clarício Gonçalves, explicou à imprensa que o enredo é baseado em livros e fatos: “Aquela ala que foi polêmica é uma coisa que estava dentro do enredo. Não é possível você falar de um enredo e você ocultar a história. Mas, em momento algum, a gente tem alguma coisa contra a organização que realmente protege São Paulo”.

***

Após a apuração, Bereia considera como enganosa a publicação do deputado evangélico Sóstenes Cavalcanti. Apesar de trazer a informação verdadeira — que a escola foi autorizada a captar recursos — o deputado engana seguidores ao colocar em destaque a expressão “Aberração patrocinada”, junto com a legenda. 

Com o intuito de ampliar a rejeição à expressão crítica da Vai-Vai sobre a violência em São Paulo praticada pela PM, a montagem do deputado Sóstenes Cavalcanti usa a desinformação sobre o direito aos recursos da Lei Rouanetfrequentemente atacada com falsidades pela extrema-direita. Com isto, tenta fazer crer que o desfile se utilizou de recursos federais para a sua produção, o que é falso, para classificar como “aberração” e gerar repúdio a uma expressão crítica da qual o parlamentar tem discordância.

Atualização:
A Escola emitiu a seguinte nota dia 16 de fevereiro, em sua conta no X/Twitter:
NOTA DE ESCLARECIMENTO GRCSES VAI-VAI
Em resposta às manifestações de repúdio contra o desfile 2024 Em 2024, a escola de samba Vai-Vai levou para a avenida o enredo Capitulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop – Um manifesto paulistano.

Como o próprio nome diz, tratou-se de um manifesto, uma crítica ao que se entende por cultura na cidade de São Paulo, que exclui manifestações culturais como o hip hop. O desfile homenageou artistas excluídos, que nunca tiveram seu talento e notadamente reconhecido. Neste contexto, foram feitos, ao longo do desfile, uma série de recortes históricos, como a semana de arte de 1922 e o lançamento do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MCs, em 1997.

“Sobrevivendo no Inferno” é considerado o álbum mais importante do rap brasileiro. Em 2007, figurou na 14ª posição da lista dos 100 melhores discos da música brasileira pela Rolling Stone Brasil. Em 2018, na lista de obras de leitura obrigatória para o vestibular da Unicamp.

Racismo, miséria e desigualdade social — temas cutucados nos discos anteriores — foram expostos como uma grande ferida aberta, vide ‘Diário de um Detento’, inspirada na grande chacina do Carandiru”. Ou seja, a ala retratada no desfile de sábado, à luz da liberdade e ludicidade que o carnaval permite, fez uma justa homenagem ao álbum e ao próprio Racionais Mcs, sem a intenção de promover qualquer tipo de ataque individualizado ou provocação.

Vale ressaltar que, neste recorte histórico da década de 90, a segurança pública no estado de São Paulo era uma questão importante e latente, com índices altíssimos de mortalidade da população preta e periférica.

Além disso, é de conhecimento público que os precursores do movimento hip hop no Brasil eram marginalizados e tratados como vagabundos, sofrendo repressão e, sendo presos, muitas vezes, apenas por dançarem e adotarem um estilo de vestimenta considerado inadequado pra época. O que a escola fez, na avenida, foi inserir o álbum e os acontecimentos históricos no contexto que eles ocorreram, no enredo do desfile. Existimos. Resistimos. E seguimos fazendo carnaval!

Referências de checagem:

Poder 360º https://www.poder360.com.br/brasil/pl-pede-a-tarcisio-e-nunes-que-vai-vai-nao-receba-recursos-publicos/  Acesso em 16 Fev 2024

Portaria SEFIC/MINC. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-sefic/minc-n-416-de-25-de-julho-de-2023-498926990  Acesso em 16 Fev 2024

Metrópoles. https://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/escola-pms-diabos-rouanet Acesso em 16 Fev 2024

Site Oficial Vai Vai. https://vaivai.com.br/blog/vai-vai-lanca-sinopse-e-abre-a-disputa-do-samba-para-2024 Acesso em 16 Fev 2024

Núcleo Jornalismo. https://nucleo.jor.br/interativos/2023-06-01-revista-oeste-e-metropoles-disputam-por-views-no-twitter/ Acesso em 16 Fev 2024

Revista USP. https://www.revistas.usp.br/Rumores/article/view/202035/190082  Acesso em 16 Fev 2024

G1. https://g1.globo.com/google/amp/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2024/noticia/2024/02/01/serie-resistencia-do-samba-globoplay.ghtml Acesso em 16 Fev 2024

Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-02/moradores-da-baixada-santista-denunciam-execucoes-na-operacao-escudo Acesso em 16 Fev 2024

Uol. https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2024/02/12/desfile-da-vai-vai-e-criticado-por-delegados-de-sp-demonizaram-a-policia.htm Acesso em 16 Fev 2024

Terra. https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/bancada-da-bala-critica-desfile-da-vai-vai-demonizou-a-policia,c9d898043f64e970586c4722efd392b6evnedmj6.html Acesso em 16 Fev 2024

O Globo. https://oglobo.globo.com/brasil/sao-paulo/noticia/2024/02/15/se-fosse-jurado-daria-nota-zero-diz-tarcisio-sobre-fantasia-da-vai-vai-em-referencia-a-violencia-policial.ghtml  Acesso em 16 Fev 2024

***

Foto de capa: Câmara dos Deputados

Compartilhe:

Share on whatsapp
Share on twitter
Share on facebook
Share on email
Share on linkedin
Share on telegram
Share on google
Language »
Fonte
Contraste