Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Luis Henrique Vieira. Para acessar, clique aqui.
O deputado federal, integrante da Bancada Católica no Congresso Nacional, Carlos Jordy (PL-RJ) publicou um vídeo em sua conta no Twitter, no qual parabeniza a Polícia Civil do Rio de Janeiro pela derrubada de um monumento em memória dos mortos da Chacina do Jacarezinho (maio de 2021), os quais chamou de traficantes. A afirmação do deputado fez coro com a nota da Polícia Civil divulgada no perfil oficial no Facebook.
A afirmação do deputado veio após mais um episódio de violência ocorrido na favela do Jacarezinho, onde policiais civis e da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) usaram um Caveirão para destruir arbitrariamente, sem mandato judicial, o Memorial às 28 vítimas da violência policial, inaugurado em 6 de maio, para marcar um ano do episódio, com a presença de familiares dos mortos e movimentos sociais. A ação de remoção do monumento foi justificada pela Polícia Civil sob a alegação de que a homenagem configurava “apologia ao tráfico de drogas”.
O Memorial
O Memorial, inaugurado na sexta-feira 6 de maio, fazia parte de uma ação que lembrava a perda das 28 vidas da favela do Jacarezinho pela ação violenta do Estado.
Em 6 de maio de 2021, a Polícia Civil realizou ação armada ostensiva na favela do Jacarezinho (zona norte do Rio de Janeiro), desrespeitando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que restringia incursões nas favelas da cidade no período da pandemia do Covid-19.
A decisão do plenário do STF foi tomada em agosto de 2020, a partir de liminar concedida pelo ministro Edson Fachin, relator do caso, em junho do mesmo ano, em resposta a pedido do Partido Socialista Brasileiro (PSB), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635. A ação pedia a suspensão de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro enquanto perdurasse a pandemia da covid-19. A avaliação era de que a vulnerabilidade da população das favelas foi agravada com as medidas sanitárias de isolamento.
Na análise da ação, o STF considerou que as operações podem causar ainda mais prejuízo a uma população já fragilizada pelo risco do contágio pelo coronavírus em condições ruins de vida, pois tratam-se de locais com sérios problemas de saneamento básico.
A liminar de junho foi concedida 18 dias depois da morte do adolescente João Pedro Mattos Pinto, 14, que foi alvejado pelas costas dentro de sua casa durante uma operação policial em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro. O STF determinou que enquanto a pandemia não terminasse, as operações policiais nas favelas do Rio só poderiam ser realizadas em situações extraordinárias, que deveriam ser justificadas por escrito e comunicadas imediatamente ao Ministério Público do Rio de Janeiro. Ainda assim deveriam ser tomados cuidados especiais para preservar a saúde dos moradores.
A ação policial resultou na morte de 27 moradores e um policial, além de ferir passageiros do metrô na altura da estação Triagem.
Para lembrar um ano do ocorrido, além do monumento, a comunidade participou de uma série de atividades como mutirão de grafite, lambes e rodas de conversa. O evento foi promovido pelo Observatório Cidade Integrada, conjunto de organizações que produzem dados sobre violações de direitos humanos na favela do Jacarezinho. A organização publicou uma nota em que declarou surpresa com a destruição do Memorial.Tanto a incursão policial que completou um ano como a destruição do Memorial foram defendidas pelo governador Cláudio Castro(PL-RJ).
“Envolvidos com o tráfico”?
Uma sentença mencionada na nota oficial da Polícia Civil chama a atenção. Ela afirma que o memorial é uma homenagem a traficantes. Logo em seguida, o texto diz que a Polícia tem provas do envolvimento das vítimas com o tráfico. Esta justificativa foi reforçada no vídeo publicado pelo deputado.
Para comentar o caso, Bereia ouviu a advogada e pesquisadora Bruna Portella, atual coordenadora da área de Direitos e Sistema de Justiça do Instituto de Estudos da |Religião (ISER). Para ela tal afirmação está equivocada: “A categoria ‘envolvido com o tráfico’ é um grande vazio conceitual. É uma afirmação que não permite uma fiscalização ou checagem institucional. Afinal, esse processo de checagem seria justamente feito pelo Judiciário no processo judicial”. A advogada ainda ressalta que o trabalho da polícia é investigar. “Afirmar que alguém é ‘envolvido’ e daí concluir tratar-se de ‘traficante’, sem um processo judicial, é elevar à categoria de certeza judicial uma avaliação discricionária da autoridade policial.”
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) Álvaro Quintão declarou à época dos acontecimentos que havia pessoas entre os mortos da chacina que não tiveram passagem pela polícia, outras que já haviam cumprido suas penas e, portanto, exercido suas obrigações com a Justiça. Quintão também condenou a operação chamando-a de “desastrosa” e relembrou que o papel da polícia é cumprir mandado de prisão e não executar pessoas. “A polícia não pode definir quem vive e quem morre. Se havia mandados de prisão, eles deveriam ser cumpridos respeitando o Estado de Direito”, afirmou em entrevista à rede CNN. Segundo levantamento feito, havia, inclusive, um adolescente de 16 anos, Caio Figueiredo, entre os chacinados.
Policiais denunciados
Para investigar os erros cometidos durante a ação, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) instituiu uma Força-Tarefa logo após o massacre, mas que foi extinta nos últimos dias de abril de 2022 sem conseguir apurar a maioria dos casos. Apesar do insucesso, a Promotoria conseguiu denunciar dois policiais civis, Amaury Sérgio Godoy Mafra e Alexandre Moura de Souza, ambos da Core, pelo assassinato de Richard Gabriel e Isaac Pinheiro. Os policiais civis, além de executarem a sangue frio os jovens, apresentaram provas falsas na tentativa de se eximirem dos assassinatos, segundo a investigação do MPRJ.
Em outubro, a Promotoria já havia denunciado mais dois policiais civis. O policial Douglas de Lucena Peixoto Siqueira foi denunciado por fraude processual e pelo assassinato de Omar Pereira da Silva, 21, que estava desarmado e no quarto de uma criança. Já o agente Anderson Silveira Pereira, foi denunciado por fraude processual, os dois agentes da Core foram acusados de remover o cadáver do local antes da perícia chegar.
Polícia que mata
Apenas em 2018, a polícia brasileira matou 6.220 pessoas, sendo o equivalente a uma pessoa executada a cada 85 minutos, de acordo com os dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Números que chamam a atenção da pesquisadora Bruna Portella para a morte massiva de jovens negros. “É preciso ouvir os movimentos de mães e familiares de vítimas de violência e levar a sério suas demandas. Repetir os números, que são gritantes, é necessário, mas eles têm se mostrado incapazes de trazer a dimensão brutal dessa perda e sensibilizar a sociedade brasileira”, segundo o relatório, 75% das vítimas são homens negros, com idade de 15 a 29 anos.
“Não por acaso, cá estamos falando de chacina em pleno 13 de maio, 134 anos após a abolição, diante de uma conjuntura que ainda desumaniza sistematicamente homens, mulheres e crianças negras. Além do inestimável luto, a morte desses jovens nos retira potências criativas, talentos e a chance de nos constituirmos democraticamente enquanto nação”, analisa Portella.
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Bereia classifica a declaração do deputado federal Carlos Jordy e da Polícia Civil chamando as vítimas de traficantes e o Memorial às vítimas de apologia ao tráfico como falsas. A afirmação não condiz com o devido processo legal, interrompido de forma arbitrária com as mortes das vítimas. Segundo a advogada Bruna Portella, cabe ao Poder Judiciário e não à Polícia, ao fim do processo legal, “concluir pela culpa ou absolvição do sujeito em relação a um determinado fato”. Além do mais, como denunciou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ Álvaro Quintão, algumas pessoas não tinham sequer processos na Justiça. O monumento foi construído para lembrar as vidas perdidas pela violência além de visibilizar a luta da comunidade contra as frequentes violações de direitos na favela.
Referências de checagem:
CNN https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/oab-rj-cobra-respostas-sobre-operacao-no-jacarezinho-que-deixou-28-mortos/ Acesso em: 14 mai 2022.
Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-rio-fachin.pdf Acesso em: 16 mai 2022
Folha de S. Paulo https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/10/promotoria-denuncia-policiais-civis-por-homicidio-e-fraude-processual-em-operacao-no-jacarezinho.shtml Acesso em: 14 mai 2022.
Nota Casa Fluminense
https://casafluminense.org.br/nota-do-observatorio-cidade-integrada-sobre-destruicao-do-memorial-as-vitimas-da-chacina-do-jacarezinho/ Acesso em: 14 mai 2022.
Nota MPRJ
http://www.mprj.mp.br/home/-/detalhe-noticia/visualizar/112317 Acesso em: 14 mai 2022.
O Globo https://oglobo.globo.com/rio/mortes-no-jacarezinho-com-28-mortos-operacao-policial-na-comunidade-da-zona-norte-a-mais-letal-da-historia-do-rio-25006044 Acesso em: 14 mai 2022.
13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/13-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/ . Acesso em: 14 mai 2022.
Foto de capa: Selma Souza/Voz das comunidades