Publicado originalmente em Coletivo Bereia por Daniel Reis. Para acessar, clique aqui.
O portal Gospel Prime repercutiu o pronunciamento feito pelo deputado federal e pastor da Assembleia de Deus Nação Madureira, Eli Borges (SD-TO). Membro da Frente Parlamentar Evangélica, o deputado afirmou na tribuna da Câmara dos Deputados que uma cartilha do Ensino Básico da Prefeitura de Palmas, usada na disciplina de Ensino Religioso, promove a “ideologia de gênero” e “flexibiliza” o conceito de família para crianças com até sete anos de idade, além de deturpar o conceito de família previsto no artigo 226 da Constituição Federal.
Imagem: reprodução Gospel Prime
Bereia entrou em contato com o gabinete do deputado e sua assessoria enviou um arquivo em PDF com o conteúdo para proposto para 11 aulas e História e Ensino Religioso, com o registro de docentes responsáveis . O material completo pode ser encontrado aqui.
Na primeira do plano de aulas, referente à aula 3, o material apresenta “diferentes tipos de família”:
Em seguida, o material aponta algumas questões que devem ser respondidas pelos alunos:
Imagem: reprodução de cartilha
Pode-se observar no material que algumas formações familiares presentes na sociedade contemporânea são apresentadas aos alunos e alunas, que são convidados a refletir sobre suas próprias famílias. A partir daí, diversos temas são apresentados.
O material completo tem 14 páginas e oferece planos de aula para temas como geografia, meio ambiente, língua portuguesa, algumas regras de convivência em comunidade, como amor, respeito e empatia, além de assuntos como sentimentos e lembranças, dentro do contexto da convivência em família.
Constituição Federal de 1988 e o conceito de família
O deputado afirma que o artigo 226 da Constituição Federal é deturpado pelo material da Prefeitura de Palmas. O artigo afirma que:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (Regulamento)
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010)
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Regulamento
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
Em que pese a letra da lei do artigo 226, formulado em 1988, as constantes transformações na sociedade brasileira trouxeram a demanda pelo reconhecimento jurídico de novos arranjos familiares, não expressamente consagrados na Constituição Federal.
Artigo disponível no portal Âmbito Jurídico, apresenta a evolução do entendimento jurídico a respeito deste tema e afirma que, na atualidade, a doutrina reconhece um pluralismo de entidades familiares, não havendo primazia do casamento em relação às demais entidades familiares, sendo suficientes para caracterização de entidade familiar o preenchimento dos requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade.
Os tipos de entidades familiares explicitamente previstos na Constituição não são numerus clausus, ou seja, o art. 226 da CF é rol meramente exemplificativo. A Constituição Federal de 1988 não impõe qualquer cláusula de exclusão de entidades familiares, ao contrário de constituições anteriores, as quais apenas admitiam a família constituída pelo casamento.
O Supremo Tribunal Federal (STF), que cuida do devido cumprimento da Constituição, decidiu, em 2011, equiparar as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. Na prática, a união homoafetiva foi reconhecida como um núcleo familiar como qualquer outro. O reconhecimento de direitos de casais gays foi unânime.
Seguindo o entendimento do STF, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – apresenta uma série de julgados que refletem as mudanças da sociedade em relação aos direitos dos homoafetivos e dos transexuais em temas diversos, como a possibilidade de mudança no registro civil e a adoção de crianças.
“Ideologia de gênero” e pânico moral
A expressão “ideologia de gênero” foi cunhada entre as décadas de 1990 e 2000, no contexto da oposição do Vaticano aos avanços em políticas de gênero estimulados pelas Conferências da ONU Mulher, a expressão foi abraçada por evangélicos e encampada por pessoas de diferentes classes sociais, grupos religiosos e até mesmo não religiosos.
Na obra “Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação”, a pesquisadora Magali do Nascimento Cunha, aborda os caminhos do fundamentalismo religioso em quatro países: Argentina, Brasil, Colômbia e Peru. Dentre os diversos temas abordados estão a “ideologia de gênero” e o pânico moral.
Magali Cunha explica que os avanços em termos de políticas públicas e leis conquistados na América do Sul, a partir dos anos 1980 (período de redemocratização em vários países do Continente, ao fim de ditaduras), referentes aos direitos das mulheres, em especial os sexuais e reprodutivos, e das pessoas LGBTQIAP+, provocaram reações de grupos religiosos e setores políticos conservadores nos diferentes países da região, como relatado nos casos expostos na introdução deste texto. Esta reação se configura mais intensamente depois da potencialização da demanda pelos direitos de gênero promovida pela IV Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU, em Pequim (China, 1995) com o tema “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”.
A autora pontua que, como estratégia, dissemina-se o termo “ideologia de gênero”, um discurso construído de maneira a criar abjeto, produzir rechaço, pânico moral. Um exemplo destacado é o do Brasil, onde o atual presidente, já em seu discurso de posse, prometeu “combater a ideologia de gênero, preservando nossos valores”. Uma das primeiras medidas de Jair Bolsonaro, ao assumir o cargo, foi extinguir os comitês de gênero, diversidade e inclusão, eliminando a população LGBTQIAP+ como sujeito de medidas e políticas relacionadas aos direitos humanos. Em junho de 2020, o governo nomeou para a Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde um médico ligado a movimento “pró-vida”.
A construção destas bases e a adesão a elas são conquistadas por meio do pânico moral, da retórica do medo, para gerar insegurança e promover afetos. Pânicos morais são fenômenos que emergem em situações nas quais sociedades reagem a determinadas circunstâncias e a identidades sociais que presumem representarem alguma forma de perigo. São a forma como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos e, ao se sentirem ameaçados, tendem a concordar que “algo deveria ser feito” a respeito dessas circunstâncias e dessas identidades sociais ameaçadoras.
Temas semelhantes aparecem constantemente em redes sociais digitais ou mídias noticiosas, como por exemplo a suposta cartilha que a Prefeitura de Fortaleza distribuiu dizendo que é natural fazer masturbação infantil para acalmar as criançasou a suposta ilustração de ato sexual que foi usada em cartilha do MEC para crianças. As duas notícias falsas foram devidamente verificadas e negadas por agências de checagem e órgãos de imprensa, porém o pânico moral já estava criado e disseminado.
No contexto dos quatro países observados na pesquisa, Magali Cunha relata que foi desenvolvido um pânico moral em torno da “defesa da família” e dos filhos das famílias, como núcleos da sociedade que estariam em risco, por conta da agenda de igualdade de direitos sexuais. Mensagens alarmistas apresentam esta agenda como de destruição e de ameaça à sociedade com base na noção de que se a família e as crianças estão em risco toda a sociedade está em risco. Para isso, movimentos fundamentalistas articulam amplo recurso às mídias em todos os formatos, tradicionais e digitais, com farto uso de desinformação, em especial de fake news, para alimentação do pânico moral e para interferência nas discussões e políticas públicas.
É importante recuperar em nome da informação justa e digna que estudos científicos que têm origem no século 18, passam pela construção das ciências humanas e sociais e culminam na segunda metade do século 20, com o surgimento da noção de “gênero”. Ela é distinta da noção de “sexo”, o que se consolida, nessa mesma época, como categoria de análise, que confronta a oposição binária universalizada e atemporal entre homem e mulher com base no referencial biológico (anatomia/sexo). Daí gênero ser uma categoria científica analítica: por meio dela, é possível estudar os significados e sentidos estabelecidos sobre os gêneros masculino e feminino, a partir do questionamento do que é ser “homem” e do que é ser “mulher”, para além de categorias fixas, concebidas previamente. Nesse sentido, não é o sexo que determina a compreensão da vida mas o gênero. E isto tem relação com a cultura (o modo de vida dos grupos sociais), com a linguagem, e, fortemente, com o poder, como as hierarquias de gênero são construídas, legitimadas, contestadas e mantidas. A estudiosa Joan Scott é uma referência importante neste tema. Em relação aos estudos das religiões, a Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza tem oferecido muitas contribuições, entre outras autoras.
Magali Cunha recorda que este processo científico foi fonte para que movimentos sociais de mulheres e de cidadãos e cidadãs homoafetivos discutissem o seu lugar nas sociedades em que estão inseridos, questionassem as injustiças que lhes foram impostas pelos padrões culturais biológicos e lutassem por seus direitos civis. À medida que tais lutas têm sido bem-sucedidas, percebe-se o surgimento de movimentos reacionários que contrapõem estas transformações por meio de conteúdos falsos e enganosos como a afirmação de que exista uma “ideologia de gênero”.
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Bereia conclui que é enganosa a matéria publicada pelo Portal Gospel Prime a respeito do discurso do deputado federal e pastor da Assembleia de Deus Nação Madureira Eli Borges , pois o pronunciamento ocorreu mas a apresentação do tema, sem o oferecimento de informação devida em contraponto ao pânico moral evocado pelo deputado, é desenvolvida para confundir e invoca sensacionalismo.
A afirmação do deputado Eli Borges de que o material da Secretaria Municipal de Educação de Palmas deturpa o artigo 226 da CF é enganosa.O reconhecimento de diversas formas de família, experimentada cotidianamente pela população, segue o entendimento das decisões jurídicas da última década e a evolução da sociedade nestes temas. Além deste ponto, o deputado afirma que o material “flexibiliza” o conceito de família, entretanto, como a pesquisa do Bereia indica, este “conceito” evoluiu ao longo dos anos. Esta evolução tem como resultado o entendimento do STF que, ainda em 2011, reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar como qualquer outro e decisões posteriores que seguiram o mesmo entendimento.
É importante que veículos de mídia reafirmem que aescola é um ambiente para promover debates, reflexão e acolher os alunos levando em conta suas próprias experiências. Opiniões divergentes devem ser respeitadas e o debate democrático deve ser incentivado e não só os alunos, mas também suas famílias, devem participar. O termo “ideologia de gênero” é utilizado como estratégia política e apela à desinformação, busca causar pânico moral na tentativa de mobilizar eleitores e pautar discussões na esfera pública.
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Referências:
Cartilha. https://drive.google.com/file/d/1JZ3f2INsRud7I6Nr6a5Jzf0z_X84cT_p/view Acesso em 04/10/2021
Artigo, https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/10050/Mutacao-constitucional-do-conceito-de-familia, Acesso em 06/10/2021
Artigo, https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-171/entidades-familiares-uma-analise-da-evolucao-do-conceito-de-familia-no-brasil-na-doutrina-e-na-jurisprudencia/amp/ Acesso em 06/10/2021
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Site STJ https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-06-03_06-55_A-atuacao-do-STJ-na-garantia-dos-direitos-das-pessoas-homoafetivas.aspx Acesso em 06/10/2021
Politize Ideologia de gênero: o que é e qual a polêmica por trás dela? – Politize! Acesso em 06/10/2021
MEC, http://pne.mec.gov.br/ Acesso em 06/10/2021
Congresso em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/eleicoes/tse-diz-que-kit-gay-nao-existiu-e-proibe-bolsonaro-de-disseminar-noticia-falsa/ Acesso em 06/10/2021
El País, https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/29/politica/1535564207_054097.html, Acesso em 06/10/2021
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CNNBrasil, https://www.cnnbrasil.com.br/politica/governo-nomeia-novo-secretario-de-atencao-primaria-a-saude/ Acesso em 08/10/2021
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UOL, https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/01/01/bolsonaro-fala-em-combater-ideologia-de-genero-veja-integra-do-discurso.htm Acesso em 08/10/2021
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