Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Elstor Hanzen. Para acessar, clique aqui.
Saúde | Ingresso na graduação costuma coincidir com a etapa de adaptação à vida adulta, muitas vezes longe da família e com dificuldades financeiras. Especialistas apontam a urgência de se discutir sobre saúde mental estudantil
*Foto: Flávio Dutra/Arquivo JU 07 jul. 2022
A saúde mental é influenciada por fatores individuais e condições coletivas de vida. Autoaceitação, nível de otimismo e estratégias de enfrentamento de problemas são aspectos pessoais. Desigualdade de renda, relações interpessoais, acesso a emprego e disponibilidade de serviços de saúde são condições sociais relacionadas à saúde mental. No caso dos estudantes, o ingresso no ensino superior também remete às mudanças referentes ao início da vida adulta, à necessidade de assumir uma postura ativa frente ao aprendizado e ao desencontro entre as expectativas e a realidade do curso e do mercado de trabalho. Muitos precisam mudar de cidade para seguirem os estudos, deixando para trás amigos e familiares, e necessitam construir nova rede de relacionamentos. Além disso, diversos alunos entraram na universidade com as políticas de cotas, aproximando o perfil dos estudantes ao sociodemográfico do Brasil.
Entre os brasileiros, a ocorrência de depressão e ansiedade vem aumentando: só em 2020, os casos subiram cerca de 25%, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O suicídio continua sendo uma das principais causas de morte em todo o mundo, de acordo com o relatório Suicide worldwide in 2019, da OMS, publicado em junho de 2021. Anualmente, mais pessoas morrem por suicídio do que por HIV, malária, câncer de mama ou em guerras e homicídios. Segundo o levantamento, entre os jovens de 15 a 29 anos, o suicídio foi a quarta causa de morte depois de acidentes no trânsito, tuberculose e violência interpessoal.
Na Universidade, a questão também preocupa. Conforme dados ainda não divulgados de uma pesquisa realizada pelo programa de extensão Movimento Educação e Saúde Mental (Medusa), da UFRGS, de mais de 200 estudantes entrevistados, um número superior a 10% referiu ideação suicida. Para o professor do Departamento de Psicologia Social e Institucional e coordenador do projeto, Moises Romanini, esse índice é preocupante.
“Precisamos nos preparar, enquanto Universidade, para acolher esses e essas estudantes, sem alarde, escutando seus sofrimentos e ideias de suicídio, buscando o melhor encaminhamento junto à rede de saúde”
Moises Romanini
A pandemia exponencializou os impactos nos transtornos de saúde mental da população em geral e dos estudantes das universidades, e as instituições têm buscado alternativas para lidar com a questão. Conforme levantamento do projeto Medusa, entre março de 2020 e dezembro de 2021, aproximadamente 40 ações de apoio, incluindo reuniões, planejamento, rodas, palestras, escuta de coletivos e escutas individuais, foram realizadas na UFRGS. Já de janeiro a dezembro de 2022, foram mais de 80 ações demandadas pela comunidade acadêmica.
“Muitos discentes mencionaram insegurança quanto ao futuro e à formação, medo intenso do contágio pela covid, tristeza e ansiedade recorrentes, falta de motivação, dificuldades para adaptação ao ensino remoto, intensificação dos conflitos familiares, diminuição da renda e luto pela perda de pessoas queridas”, constata Thais Ferrugem Sarmento, psicóloga da Divisão de Promoção de Saúde Discente da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis (Prae). Segundo ela, quando ocorreu o retorno às aulas presenciais, foram comuns preocupações com os custos e o tempo gasto em deslocamento, temores quanto ao convívio com outras pessoas, receio das avaliações e das demandas do ensino presencial.
“O medo é a véspera da coragem”
Essas questões permeiam a realidade de universitários de diferentes cursos e idades, que enfrentam depressão, ansiedade, exaustão e ideação suicida. Natural de Minas Gerais, Jonas da Rocha, 29 anos, mudou-se para Porto Alegre em 2018 a fim de estudar Odontologia na UFRGS. Além de se adaptar e construir novas relações longe da família e em outro estado, ele teve de enfrentar e superar desafios que passam longe da realidade da maioria dos estudantes de Odontologia: arranjar renda para sobreviver e conseguir pagar os materiais de estudo. Cotista racial e de baixa renda, conseguiu uma bolsa para trabalhar em uma biblioteca no horário inverso à aula, passou a atuar na aplicação de provas de concurso e vestibular e a buscar “bicos” nos finais de semana em festas infantis, em que recebia 80 reais por seis horas de trabalho.
Jonas conta que chegava esgotado à Casa do Estudante, onde morava no início da faculdade. Não tinha mais força e disposição para estudar e começou a consumir muita bebida alcoólica.
“As coisas que pesam mais pra mim estão fora da sala de aula, porque não é só viver uma vida acadêmica, preciso sobreviver e pagar contas. Minha família é muito pobre, e com o pouquinho que eu ganho ainda consigo mandar um pouco para ela”
Jonas da Rocha
Além de tudo, o estudante relata ter de lidar com comentários de colegas como: “Não parece que o Jonas é da Odonto”. Em um curso no qual muitos alunos são filhos de cirurgiões-dentistas e têm boas condições socioeconômicas, Jonas reconhece que é difícil não se comparar. “Talvez eu não seja do perfil lá da Odonto, como costumam comentar. Que bom que não pareço e, hoje, me orgulho disso. Parece que precisa parecer mais do que ser. E, para parecer, a gente precisa ter muito dinheiro, ter condição e até ser branco. Se for por essa lógica, estou fora”, reflete o mineiro.
Essa realidade o levou à depressão e o fez pensar em largar tudo. Conseguiu assistência estudantil, acolhimento e orientação de saúde mental da Prae para enfrentar o quadro. Hoje superou o desespero, controla a depressão e está a nove meses de se tornar cirurgião-dentista. Conclui que vê uma fagulha no futuro e cita uma frase da dramaturga mineira Grace Passô, que o ajudou a chegar até aqui com a força da arte: “O medo é a véspera da coragem”.
Mais de 80% dos estudantes apresentam dificuldades emocionais
A fase inicial da vida universitária é complicada, e uma série de fatores de risco podem deixar o estudante vulnerável nesse período. Entre eles, especialistas citam a inserção num ambiente cultural distinto, dificuldades financeiras e diferentes preconceitos. Ao longo e no final do curso, existem as pressões de apresentação de trabalhos, conclusão da graduação dentro do prazo previsto e preocupações com o ingresso no mercado de trabalho.
Uma pesquisa realizada pela Andifes em 2018 sobre o perfil socioeconômico dos alunos de graduação das universidades federais mostrou as dificuldades emocionais e o pensamento suicida entre esse público. Dos 424 mil respondentes, 83,5% declararam apresentar alguma dificuldade emocional, 63,6% relataram sofrer com ansiedade e 10,8% afirmaram ter ideia de morte. “23,7% refere que problemas emocionais ou psicológicos têm gerado dificuldades nos estudos, com um número significativo sendo de indígenas aldeados e de pessoas com deficiência”, complementa Moises Romanini.
Ericson da Silva Sanceverino, 28 anos, teve uma crise de ansiedade durante a apresentação de um trabalho na graduação em Geografia, ainda antes da pandemia. Por isso, não conseguiu terminar a exposição e foi reprovado na disciplina. “Isso me fez muito mal, senti vergonha e achava que não conseguiria fazer a disciplina novamente, ou não conseguiria terminar a graduação”, lembra. Na época, conversou com um amigo que passava por situações parecidas e o ajudou. “A partir desse momento, pude perceber o quanto é importante conversar sobre essas questões em lugar de escondê-las”, diz. No semestre posterior, fez a disciplina e foi aprovado com conceito A. “Algo que vejo hoje como um exemplo pessoal de superação”, reconhece.
No segundo semestre de 2022, Ericson se formou em Licenciatura em Geografia, e agora cursa o 5.º semestre do bacharelado. Mesmo formado e com outra graduação em andamento, ainda não conseguiu entrar no mercado de trabalho. “Atualmente, minha maior dificuldade é financeira, pois, como me formei no último semestre, não sou mais beneficiário Prae, assim não recebo os auxílios financeiros, sendo necessário fazer poucas disciplinas para conseguir ir às aulas”, relata o estudante, morador de Porto Alegre. Outra questão desafiadora, segundo ele, foi o retorno ao presencial.
“Sinto que estou com uma maior dificuldade de foco nas aulas, com ansiedade. Busquei, durante a pandemia, atendimento psicológico pela Prae, obtendo auxílio financeiro para fazer terapia, e isso me ajudou consideravelmente nas questões de saúde mental”
Ericson da Silva Sanceverino
Para a médica psiquiatra e doutora em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela UFRGS Tamires Bastos, a recomendação aos estudantes com sintomas de transtornos emocionais é que busquem ajuda junto a um profissional capaz de uma escuta empática e comuniquem a necessidade de apoio a pessoas de confiança. “Também não se deve impressionar comparando trajetórias acadêmicas: cada um sabe dos seus bastidores, o que parece do outro pode só parecer mesmo. A vida é dura, mas melhora conforme a gente aprende a lidar com ela”, observa.
No contexto coletivo, alerta que a saúde mental dos jovens é um tema urgente, porque é nesta faixa etária que aparecem a maioria dos transtornos mentais que podem se tornar crônicos.
“Mudanças mais profundas que campanhas de conscientização, porém, são necessárias e precisam incluir políticas públicas, financiamento adequado, formação qualificada, escuta de quem vive com transtorno mentais. O mínimo que podemos fazer é eleger lideranças comprometidas com a articulação desses compromissos e, nunca é demais dizer, cuidar do planeta”
Tamires Bastos
Precisamos falar (de forma responsável) sobre suicídio
Na sociedade de modo geral, o suicídio ainda é um tema tabu e suscita muitas dúvidas sobre como abordar a questão de forma adequada, até mesmo entre os profissionais de saúde e na própria mídia. Para os jornalistas, a OMS apresenta recomendações a serem seguidas para pautar de forma segura o suicídio. Conforme a entidade mundial, é recomendável que a imprensa divulgue orientações sobre fatores de risco e sinais de alerta relacionados ao comportamento suicida, estratégias de apoio para lidar com sofrimento, como e onde conseguir ajuda, por exemplo.
A imprensa geralmente segue as orientações técnicas e éticas dos órgãos de saúde ao tratar do suicídio. “Contudo, o tema ainda é um tabu, e as discussões sobre ele nem sempre vêm sendo realizadas de forma cuidadosa, responsável e que favoreçam a prevenção”, pondera Kelly Vedana, professora da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro de Educação em Prevenção e Posvenção do Suicídio da instituição.
Em um estudo publicado em 2021, Kelly e outros pesquisadores da USP analisaram a adequação de notícias sobre suicídio veiculadas na imprensa brasileira às recomendações da OMS. Os cientistas observaram que as indicações da entidade são parcialmente seguidas: embora a maioria das matérias tenha evitado aspectos contraindicados, a maioria também não aborda os aspectos desejáveis.
Kelly reforça ser importante evitar abordagens simplistas, sensacionalistas, que exponham a vítima ou o familiar e detalhem métodos, local de ocorrência, imagens ou cartas de suicídio. Informações que promovam culpa, julgamento, estereótipos ou a normalização do suicídio também não devem ser publicadas. Além disso, são contraindicadas expressões de linguagem que relacionem suicídio a ato “bem-sucedido”.
“A mídia tem grande potencial para contribuir com as ações de prevenção do suicídio e também precisa se comunicar de forma cuidadosa para evitar estigmatização, a disseminação de conteúdos pró-suicidas, bem como um possível efeito contágio”
Kelly Vedana
Sempre de forma responsável, o suicídio deve ser mencionado, pensado e desmistificado. Nomear os sentimentos, refletir antes de agir e praticar exercícios físicos foi o que ajudou Amanda Brusius, 24 anos, estudante de Arquivologia da UFRGS. Natural de Três Coroas, ela se mudou para Porto Alegre para fugir dos conflitos familiares e estudar. “Entre 2017 e 2018, morei numa quitinete no 11.º andar. Vivia um relacionamento amoroso terrível, talvez reflexo de tudo que era ‘normal’ na infância. Eu era dependente emocional e aceitava tudo, deixava que me tratassem mal. Diante de tudo isso, eu queria muito me matar. No dia em que tive certeza, enviei um e-mail para a Prae pedindo ajuda”, conta.
O atendimento foi marcado já para o dia seguinte. Logo em seguida, a estudante passou a praticar exercícios físicos, mais especificamente levantamento de peso. “Eu, que nunca tive objetivos ou motivos para levantar de manhã, passei a ter. Comecei até a competir no esporte”, se orgulha.
Hoje cursa quatro disciplinas, estagia, estuda, treina e faz acompanhamento psicológico. “É bizarro ver que é possível sair do limbo e da desgraça, que é possível melhorar. Ainda não posso dizer que sou feliz e que minha vida é boa, mas creio que seja tudo um processo”, conclui.
Mesmas consequências, causas diferentes
As causas de estresse dos estudantes de Medicina podem ser de outra ordem que as dos discentes de outros cursos, mas os sintomas depressivos e ansiosos e a ideação suicida são consequências comuns. Enquanto fatores sociais como o desemprego e a falta de recursos financeiros para se manter na universidade dominam a preocupação de alunos de outros cursos, o desemprego não aparece como temor para os alunos de Medicina. É o que destaca a tese de doutorado “Avaliação da saúde mental dos estudantes de medicina e sua percepção quanto à formação médica ao longo da graduação: um estudo com metodologia mista“, de Tamires Bastos, que foi tema de matéria no JU Ciência em dezembro.
“Há limitações do que podemos extrapolar para os demais estudantes, os quais devem enfrentar estressores diferentes e peculiares a cada curso e perspectiva profissional”, destaca Tamires. Por outro lado, segundo a médica psiquiatra, a etapa qualitativa da tese revela dificuldades que podem ser comuns a muitos universitários: adaptação ao início da vida adulta longe da família, dificuldades financeiras, sobrecarga com estudos e avaliações. Outras podem ser comuns aos cursos da saúde. “Existe, porém, uma parte importante do que os alunos [da Medicina] percebem como relevante para permanecerem saudáveis ou não que têm relação com questões específicas da formação médica altamente competitiva e expectativas conflitantes em torno da profissão”, especifica.
A fase quantitativa da pesquisa apresentou prevalências alarmantes de sintomas de ansiedade (52,1%), depressão (49,5%), risco moderado ou grave de abuso de álcool (57,2%) e suicidalidade (46,1% pensou em suicídio seriamente ao longo da vida, 11,5% no último mês e 6% relatou tentativa prévia) nos estudantes de Medicina. As análises apontam que variáveis como ser mulher, LGBTQ+, ter sintomas depressivos mais intensos e piores relações familiares estão associadas a maior chance de reportar necessidade de tratamento em saúde mental. “Entretanto, pela metodologia empregada, não podemos fazer inferências de causa e efeito, apenas hipóteses”, pondera Tamires.
Torção dos sentidos com a pandemia
A partir das contribuições do filósofo português João Pedro Cachopo no livro A torção dos sentidos, Moises Romanini considera relevante compreender a torção dos sentidos com o impacto da pandemia. “Essa torção envolve não o modo como nos concebemos no mundo, tampouco pensar sobre o vírus como uma metáfora existencialista que questiona aquilo que somos e aquilo que estamos nos tornando com a pandemia, mas implica o revolvimento do modo como nos imaginamos próximos ou distantes das coisas e pessoas que nos rodeiam”, explica Romanini. Conforme Cachopo, parte-se de um sentimento partilhado: por um lado, “sentimo-nos mais distantes dos próximos; por outro, sentimo-nos mais próximos dos distantes”, chegando a ser um paradoxo.
Romanini analisa que essa torção, remediada pelas tecnologias e precipitada pela pandemia, convoca a todos a se posicionar diante do acontecimento. “Nós estamos tanto sujeitos a ele quanto somos sujeitos dele.” Com tudo isso, explica o docente, o próximo passou a ser percebido como distante, sendo possível testemunhar isso nas interações cotidianas em salas de aula na universidade, “que passaram a ser (re)mediadas pelas tecnologias da informação e da comunicação, sendo essas as principais ferramentas de que se dispõe para seguir os semestres letivos”.
Nessa direção, a torção dos sentidos provocada por essa remediação digital diz mais respeito à imaginação do que à percepção. Por isso, os sentidos torcidos são aqueles cujas experiências se assentam no reconhecimento de uma distância e de uma proximidade que incorporam significados para cada um. “São nossas aulas, encontros, nossos prazeres cotidianos simbolizados nos sorrisos e abraços”, exemplifica. O sentimento de não pertencimento e vinculação com a universidade foi um dos efeitos dessa torção dos sentidos, da imaginação, do desejo, trazendo consequências para a saúde mental dos estudantes.
Situações de vulnerabilidade para o suicídio:
• tentativas anteriores de suicídio;
• transtorno mental (depressão, uso abusivo de álcool e outras drogas, esquizofrenia);
• doenças graves;
• isolamento social;
• ansiedade e desesperança;
• crise conjugal e familiar;
• situações de luto;
• perda ou problemas no emprego;
• facilidade de acesso aos meios.
Alguns sinais de alerta:
- preocupação com a sua própria morte ou com a falta de esperança;
- expressão de ideias ou de intenções suicidas;
- isolamento;
- outros fatores, como exposição a agrotóxicos, perda de emprego, crises políticas e econômicas, discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, agressões psicológicas e/ou físicas, sofrimento no trabalho, diminuição ou ausência de autocuidado também devem ser considerados, se o indivíduo apresenta outros sinais de alerta para o suicídio.
Fonte: Guia “Suicídio: Saber, agir e prevenir”, do Ministério da Saúde