Democratização do conhecimento científico esbarra no alto custo de publicação de artigos e de acesso a periódicos

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ronaldo Botelho. Para acessar, clique aqui.

Ciência | Garantia do Acesso Aberto nas publicações científicas e riscos do mercado de publicações predatórias mobilizam gestores e pesquisadores. Capes fomenta uma política de Desenvolvimento de Coleções

*Foto: Freepik

Há um certo consenso entre a comunidade acadêmica de que o conhecimento científico é um bem público. Mas a democratização da ciência, enquanto interesse geral da sociedade, esbarra em obstáculos. Entre eles está o custo de publicação e de acesso às pesquisas. Desde que se iniciou, pelos anos 1980, o processo de migração de periódicos para o universo online, a manutenção dos suportes de publicação se tornou um desafio às instituições de ensino superior.

Para a bibliotecária Letícia Strehl, diretora do Sistema de Bibliotecas da UFRGS, o pagamento de assinaturas pelas agências não está se refletindo no acesso. “Se a revista publica 100 artigos e, destes, 50 foram pagos, a assinatura deveria cair à metade. Só que essa conta não está aparecendo, as assinaturas só aumentam, temos cada vez mais pesquisadores pagando taxa de publicação de acesso aberto”, analisa.

Ao lado disso, muitas publicações de qualidade duvidosa assediam diariamente os pesquisadores com propostas de veiculação rápida e custos bem mais baixos que a média, mas geralmente insuficientemente confiáveis em termos de qualidade de revisão. Gestores universitários, editores e pesquisadores preocupados com esse cenário levantam questões sobre como enfrentar e aperfeiçoar os meios e os canais de comunicação entre os cientistas (comunicação científica) e democratizar o acesso da ciência a toda população (divulgação científica).

“Desde 2017, a CAPES vem debatendo os modelos de Acesso Aberto e ampliando as discussões sobre o tema junto à comunidade acadêmica com o objetivo de elaborar uma Política de Desenvolvimento de Coleções que contemple, por exemplo, o pagamento de APCs (Article Processing Charges ou Taxas de Processamento de Artigos) nos contratos firmados”, revela Andréa Carvalho Vieira, coordenadora-geral do Portal de Periódicos e Informação Científica da Capes.

Mudanças e Impactos

Para melhor entender a crise por que atravessa o segmento de publicações científicas, é preciso olhar para algumas décadas atrás, quando as revistas eram impressas e vendiam assinaturas.

“As bibliotecas e os pesquisadores que pagavam individualmente a assinatura eram a maior fonte de recurso. Nos anos 1980, houve uma grande crise financeira internacional, com um salto no valor das assinaturas. E os recursos anuais das bibliotecas não acompanharam”, explica a coordenadora da Comissão Assessora de Apoio à Edição de Periódicos Científicos da UFRGS, Samile Andréa de Souza Vanz.

Nesse processo de mudança do papel para o formato digital houve vários ganhos, mas também o surgimento de novas necessidades. “Nesse período de transição, há revistas que já nasceram em acesso aberto. Mas as revistas científicas têm um custo mínimo para a sua operação. Esses custos básicos, dentro desse movimento de acesso aberto, em que a revista não cobra mais assinatura, precisam ser repassados ou subsidiados”, explica Samile, que também é editora-chefe da revista Em Questão. Com mais de 35 anos de existência, essa publicação circulava em papel e cobrava assinatura; e agora ocorre só em acesso aberto.

Como não poderia deixar de ser, a nova realidade de transferência dos custos para os autores e/ou leitores contribuiu para um novo arranjo no mercado editorial, com facilidades e oportunidades, mas também com abusos e precariedades.

“Há revistas cobrando APCs [taxas de processamento de artigos] de 5 mil dólares. Daí não é custo de publicação, com certeza; aí nós temos o mercado editorial extremamente lucrativo. Editoras como a Springer, a Elsevier e a Taylor & Francis têm lucros superiores a bancos, empresas farmacêuticas e montadoras de veículos”

Samile Andréa de Souza Vanz

Para ilustrar melhor o que diz, Samile recomenda o artigo The Oligopoly of Academic Publishers in the Digital Era (O oligopólio das editoras acadêmicas na era digital), que trata da consolidação da indústria editorial científica e das altas margens de lucro das grandes editoras. “É preciso considerar também que, além da significativa importância que as publicações em periódicos científicos de credibilidade têm para a carreira acadêmica de um pós-graduando, a quantidade e a qualidade de revistas científicas influenciam também na avaliação de um programa de pós-graduação. O volume de publicações interfere no ranking que determinada universidade vai ter e no quanto de financiamento ela recebe das agências de fomento”, repara.

Por outro lado, há casos em que o custo para se publicar pode influenciar não só na legitimidade, como na autoestima do pesquisador. “Quando estagiária, tentei publicar um artigo, mas não pude porque não era assinante da revista. Daí, convidamos uma colega assinante para publicar junto, só que aquela revista exigia que a assinante fosse primeira autora. Essa condição de secundária em um trabalho que fiz me prejudicou mais tarde em banca de ingresso no doutorado”, conta a nutricionista Giovana Paludo Giobelli, hoje doutoranda já qualificada no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS (PGDR).

Mercado das Predatórias

A questão predatória de revistas de baixo custo é outro problema que surge no mercado editorial científico brasileiro, comprometendo a qualidade de pesquisas e a própria imagem do pesquisador.

“O pesquisador recebe por dia três ou quatro convites para publicar nessas revistas. Em alguns casos, tu és convidado para revisar artigos, e daí, quando tu olhas o que estão te enviando, tu não tens a menor competência para revisar aquele artigo”

Leticia Strehl

Outra preocupação a respeito desse assédio é sobre a proteção dos dados dos pesquisadores. “Há alguns anos, após ter apresentado trabalhos em eventos internacionais em Florianópolis e Porto Alegre, começaram a chegar mensagens de editoras, até em inglês, para publicar com diversos preços. Pra mim, é um tanto perigoso”, conta José Exequiel Basini Rodrigues, professor do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas, egresso da UFRGS e atualmente pesquisador-visitante na Universidade do Quebec em Montreal.

A estética formal e o tratamento personalizado que as revistas predatórias utilizam são apontados como fatores de sedução, especialmente de pesquisadores mais jovens. “Essas revistas me confundem. Algumas são muito sutis, usam de má-fé. Não fazem avaliação por pares. Basicamente, o autor paga e publica; claro, elas são muito mais rápidas. Eles pegam alunos que precisam publicar”, observa a professora Samile Andréa. “Não temos esse tipo de publicação na UFRGS”, acrescenta.

Sobre as possíveis causas desse mercado editorial predatório, José Rodrigues atribui, em parte, a segmentos da própria comunidade científica. “Há uma visão na carreira acadêmica que é hierárquica e mesquinha, com falta de colaboração entre os colegas”, analisa.

“Se aproveitam da debilidade de falsos intelectuais. Além disso, ocorre uma pressão brutal pela produtividade, que se torna muita vezes arbitrária”

José Exequiel Basini Rodrigues
Outros Caminhos

Em busca de respostas a essa e outras demandas, em meados de setembro, o projeto de extensão Sala de Ciência, da Agência de Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, realizou o painel “O preço da ciência – pelo conhecimento científico aberto e a valorização dos periódicos nacionais”.

O evento, que teve transmissão ao vivo pela internet, reuniu pesquisadores das regiões Nordeste e Sudeste. Entre os temas, os presentes analisaram o papel social da ciência. “A Ciência é uma construção coletiva, é um bem que é comum. A gente não está lidando só com uma evidência, mas com questionamentos da sociedade”, considera Monique Oliveira, jornalista e pós-doutoranda na Unicamp, onde estuda ciência aberta e divulgação científica no Laboratório de Inclusão na Comunicação e na Ciência (LABinCC).

A pesquisadora lembra ainda que a Ciência Aberta envolve uma série de atores que a compõem e que isso tem a ver com a cultura científica. “Como esse bem, que é comum, que não é um empreendimento individual, mas coletivo, é fechado e é privatizado? Temos, portanto, uma cultura científica que está em contradição com a própria construção coletiva da Ciência”, reflete.

Ela também defende que é necessário valorizar o que já temos.

“O Scielo é uma base dados do Sul Global, é uma base construída por décadas, com critérios de qualidade”

Monique Oliveira

O pró-reitor de pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Robério Rodrigues Silva, vai mais longe: “No direito, quando há cobrança em duplicidade, eles chamam de ‘Bis in idem’; no caso da ciência, há um ‘Tris in idem’: porque a ciência é produzida com recurso público; para publicar, o pesquisador tem que pagar; e para se acessar tem que se pagar. Há uma tripla cobrança”, observa o gestor, que também é presidente do Fórum Nacional de Pró-reitores de Pesquisa e Pós-graduação.

Por outro lado, ele vê com otimismo a atual política da Capes para o setor. A Capes paga por ano 100 milhões de dólares, ou 500 milhões de reais, para permitir acesso a periódicos fechados. Seria ideal que não pagássemos nada, ou quase nada, e que os acessos sejam abertos. Os Acordos Transformativos caminham nessa direção”, aponta.

A gestora da UFRGS também acredita no poder das agências de fomento para intervir nesse cenário. “Se a Capes começa a fazer isto: colocar como critério anterior a tudo o acesso aberto – e ela pode colocar –, ela influencia, porque vai definir esse como principal requisito. O segundo requisito vai ser o prestígio, vai ser a situação, vai ser o não predatório”, considera Leticia Strehl.

Conforme a coordenadora de periódicos da Capes, o Acesso Aberto envolve desafios para avançar. “Em termos de políticas e procedimentos, deverão ser aprimorados com a mais ampla participação das instâncias e dos atores da comunicação de pesquisas do Brasil, por meio do grupo de trabalho que será criado em breve para tratar da temática e propor o desenho da política de acesso aberto”, anuncia.

A necessidade de conscientizar e criar meios para que segmentos sociais que necessitam da Ciência sejam mais bem contemplados foi outro ponto destacado no debate. “A divulgação científica precisa levar ao cidadão o contínuo acesso à informação científica, que precisa estar aberta. Estamos falando de gestores, de uma série de intermediárias, uma série de setores, lidamos com conhecimentos sociotécnicos que dependem do conhecimento científico”, assinala Monique, do LABinCC/Unicamp.

Foi destacado no evento também a importância de se valorizar a divulgação científica como uma etapa necessária para a sociedade. “Nem todos precisam necessariamente fazer a divulgação científica, mas precisam apoiar e se engajar com os colegas e, sobretudo, valorizar os que realizam esse tipo de divulgação, não como uma atividade de segunda categoria para o pesquisador, mas que traz incentivo e investimento para todos e que fecha o ciclo científico”, avalia Aline Ghilardi, professora do Departamento de Geologia da UFRN.

Descolonizar a Ciência

Outro tema que emerge nos debates sobre a democratização do conhecimento científico, e que também foi abordado entre os presentes no painel “O preço da ciência”, é a difusão do conhecimento em uma perspectiva decolonizadora. “Revistas de alto impacto são concentradas no norte global e cobram dos pesquisadores do sul global na sua moeda. O quanto a ciência é acessível para ser produzida e disseminada aqui no hemisfério Sul?”, provoca a pesquisadora Aline Ghilardi, professora do Departamento de Geologia da UFRN.

“As normas de publicação científica que se seguem foram criadas todas no ocidente e excluem outras formas de pensar e de comunicar a ciência. É um ambiente que, por si só, já nasce excludente”

Aline Ghilardi

Já a bibliotecária da UFRGS Leticia Strehl, que trabalha há 20 anos com comunicação científica, apoia a atenção às fontes de conhecimento menos visibilizadas, mas repara a necessidade de se preservar a qualidade da apuração dos dados. “Não necessariamente a gente precisa reproduzir a ciência que é feita nos EUA, na Europa, o Norte Global. A gente sabe que eles têm uma tradição de séculos de Ciência. E, naturalmente, se podem perceber formas. O que não se pode é flexibilizar a capacidade de os resultados científicos serem significativos e não uma elaboração criativa”, analisa.

A professora Aline Ghirald, por sua vez, convida ainda a refletir sobre valores culturais na ciência. “É preciso tornar as informações mais importantes. Considerem a possibilidade de anexar o resumo em diferentes línguas. Como alterar as formas como são ranqueadas as publicações pelos cientistas? Será que a gente poderia privilegiar os caminhos do próprio país para as revistas institucionais, acadêmicas? É preciso se conectar com a sociedade, o fator fundamental que move a ciência”, reflete.

Já o antropólogo José Rodrigues observa singularidades no modo de se fazer ciência na América Latina, que, algumas vezes, pode levar a um preconceito. “Temos uma forma de escrever mais baseada no relato, de criar personagens, episódios, contexto… Isso, muitas vezes, não interessa às agências financiadoras, que querem objetivos. E essa forma mais narrativa é vista como charlatanismo”, avalia.

Por outro lado, ele tem ressalvas aos discursos que homogeneízam a crítica. “Tem uma forma um pouco equivocada de se combater isso que se chama ‘eurocentrismo’. Colocam uma agenda obrigatória, de clichês, enquanto o mundo discute outras coisas – como a Otan, o nazismo, a Ucrânia, que tratam do mundo que Foucault falava, da biopolítica, mais complexo, mais imanente”, considera.

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