Defensoria Pública deve defender golpistas presos? Entenda a polêmica

Publicado originalmente em Agência Lupa por Shirlei Alves. Para acessar, clique aqui.

A atuação da Defensoria Pública no apoio jurídico aos golpistas que atacaram Brasília (DF) tem gerado divergências e até críticas. A questão central é se os presos teriam direito à assistência gratuita prevista em lei, tanto por critérios de renda quanto pelo fato de terem manifestado comportamentos antidemocráticos em 8 de janeiro. Mas há mais um componente nessa engrenagem: o fator político.

Esse aspecto ganhou força após o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), apoiador do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ter pedido à Defensoria Pública local (DPE/SC) que enviasse quatro defensores à capital federal para prestar orientação e assistência jurídica aos catarinenses detidos. A medida foi aceita pelo órgão do estado, no qual Bolsonaro teve 69,27% dos votos válidos no segundo turno das eleições de 2022.

Defensores públicos de Santa Catarina foram deslocados a Brasília para prestar assistência jurídica a golpistas – Foto: Júlio Cavalheiro/Secom

Dos quase 1,4 mil presos, 89 são catarinenses. Destes, ao menos 33 estão em liberdade condicional e 55 tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva. A DPE/SC foi a única defensoria que enviou profissionais até o Distrito Federal para prestar atendimento aos detidos. A instituição confirmou que prestou assistência jurídica a 35 presos.

Segundo a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF), que centraliza o suporte das defensorias estaduais no atendimento aos casos relacionados aos atos golpistas, as DPs do Pará e Roraima também prestaram auxílio, mas não houve necessidade de deslocamento porque já havia profissionais atuando nos tribunais superiores em Brasília quando os ataques ocorreram, em 8 de janeiro. 

Em 10 de janeiro, a DPE/SC publicou um comunicado em seu perfil no Instagram sobre o envio dos defensores a Brasília. Em poucos minutos, a publicação gerou polêmica e foi compartilhada em outras redes sociais. Além do debate sobre a competência do órgão para atuar no caso em questão, houve comentários de quem já havia procurado a assistência da defensoria para situações de saúde ou violência doméstica e não foi atendido. 

“A mesma Defensoria que se negou a advogar para meu filho portador de Diabetes Tipo 1, a fim de garantir medicamentos, se coloca à disposição de quem menos precisa. Isso tudo, pago com o dinheiro dos impostos dos catarinenses”, comentou um usuário.

Intervenção do governador

portaria da DPE/SC (página 3), que informava o envio dos quatro defensores por determinação de Jorginho Mello, levou um grupo de advogados a ajuizar uma ação contra o governador. A peça solicita a anulação dos atos administrativos imputados por Mello, requisita a apuração do Ministério Público sobre possível crime de improbidade administrativa e solicita ao Tribunal de Contas a verificação sobre eventuais danos causados aos cofres públicos. 

“Nós entendemos que o envio de defensores à Brasília é inadequado, uma vez que os presos teriam cometido crimes federais. Aqueles que, eventualmente, não tenham condições financeiras de contratar um advogado privado deveriam ser defendidos pela Defensoria Pública da União”, argumentou o advogado Gabriel Kazapi, um dos autores da ação.

“Se fosse uma questão territorial, os crimes foram supostamente cometidos em Brasília. Logo, a Defensoria Pública do Distrito Federal deveria se responsabilizar pela defesa daqueles que são hipossuficientes”, completou. 

A juíza substituta Cleni Serly Rauen Vieira, da 3ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis, intimou o governo do estado a prestar informações sobre o caso no prazo de 72 horas. O prazo se encerrou em 27 de janeiro. O governo de Santa Catarina já se manifestou no processo, mas não respondeu à Lupa até a publicação desta reportagem. 

Segundo o presidente do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) e defensor público-geral do estado de São Paulo, Florisvaldo Fiorentino Júnior, a Defensoria Pública tem autonomia constitucional, o que significa que não está sujeita à observância ou direcionamento de outras instituições ou poderes, como o Executivo. 

“A Defensoria Pública atua em defesa das pessoas mais vulneráveis, garantindo aos cidadãos a existência do devido processo legal, consagrado constitucionalmente, e o acesso à defesa justa”, disse.

Para Marcelo Ramos Peregrino Ferreira, membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SC, é dever do Estado prestar assistência jurídica observando a questão de hipossuficiência da pessoa presa. No entanto, a atitude do governador de Santa Catarina chama a atenção pela possível pessoalidade. Aliado de Bolsonaro, Jorginho Mello ganhou notoriedade ao defender a cloroquina e o tratamento precoce durante a CPI da Pandemia no Senado.  

“Em princípio, não se vê ilegalidades, mas chama a atenção que os manifestantes, golpistas, coadunam do mesmo ideário do governador do Estado. Isso que, de fato, chama para outros temas como a impessoalidade, a moralidade e a ideia de se usar uma instituição do Estado para a defesa de um correligionário. Isso, no entanto, vai depender da instrução processual”, avaliou.

Defensoria gratuita para quem?

O principal ponto de debate é a questão da hipossuficiência dos presos em Brasília, ou seja, a real necessidade de receberem assistência jurídica gratuita do Estado, uma vez que boa parte deles estava havia 70 dias acampada em frente ao QG do Exército por conta própria. 

Para que um cidadão catarinense seja atendido pela defensoria pública, ele precisa se enquadrar em alguns requisitos, como ter renda familiar de até três salários mínimos; não ser proprietário, titular de aquisição, herdeiro, legatário ou usufrutuário de bens cujos valores ultrapassem a quantia de 150 salários mínimos; e não possuir recursos financeiros em aplicações ou investimentos em valor superior a 12 salários mínimos. Os requisitos das defensorias dos outros estados são semelhantes, mas não idênticos – cada estado considera uma margem diferente de salários mínimos, por exemplo. 

Segundo o Condege e a Defensoria Pública da União (DPU), porém, existe uma exceção para os critérios de hipossuficiência. No caso de defesa criminal, a pessoa acusada tem o direito de receber assistência jurídica independente da renda, para que o acesso ao contraditório garanta o andamento regular do processo legal. 

O artigo 4º de uma resolução publicada em 2014 pelo Conselho Superior da DPU prevê que a assistência jurídica deve ser prestada, independente de renda, quando for constatado que não houve possibilidade de acesso à justiça. Segundo Peregrino, é comum que, diante da ausência de um advogado, em uma audiência já agendada, o juiz nomeie um defensor público ou advogado dativo.

A DPE/SC se respalda em dispositivos das Leis Complementares Federal 80/1994 e Estadual nº 575/2012, que regulamentam as atribuições das defensorias, para justificar que é sua função institucional “atuar na defesa de réus em Processo Penal, independente de condição financeira”, e no caso de o réu não constituir advogado “mesmo tendo recursos para tanto”. 

Embora os crimes sejam no âmbito federal, afirma o Condege, as defensorias estaduais podem atuar em apoio à DPDF, pois as competências foram divididas entre o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). A DPU, por sua vez, está atuando no âmbito do TRF1. 

Ainda segundo o Condege, as defensorias teriam atuado no sentido de dar celeridade às audiências de custódia pela grande e atípica demanda de presos, mas que no decorrer do andamento dos processos a hipossuficiência deverá ser verificada. Os presos que tiverem condições financeiras de pagar um advogado deverão ter as suas defesas substituídas e os honorários da defensoria ressarcidos ao Estado.

A DPU também afirmou que os critérios de hipossuficiência ainda não foram analisados por conta da alta demanda. Ao menos 40 defensores federais atuam em 1.027 processos de assistência jurídica de presos envolvidos nos atos antidemocráticos.

“A atuação da DPU ocorre de duas formas distintas. Em um primeiro momento, houve repúdio aos atos, por ser uma instituição que tem como um de seus objetivos a afirmação do Estado Democrático de Direito. Em seguida, a DPU passou a atuar para garantir os direitos coletivos e garantias das pessoas detidas”, afirmou a instituição via assessoria de imprensa. 

Lupa entrou em contato com as defensorias de cinco estados cujo número de presos foi maior do que 80, considerando a origem das pessoas detidas. Apenas os defensores de Santa Catarina atuaram nas audiências de custódia. As defensorias de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul negaram que tenham enviado seus servidores a Brasília. 

A Defensoria Pública de Santa Catarina (DPE/SC) informou que fez contato com a DPU e a DPDF para oferecer ajuda com princípio na “unidade e indivisibilidade que regem constitucionalmente as defensorias públicas”. Além disso, a instituição confirmou que foram designados quatro defensores para atuar em Brasília, sendo que três deles foram deslocados de Florianópolis no dia 11 e retornaram no dia 12. O quarto defensor já estava no Distrito Federal, atuando nos tribunais superiores. 

A DPE/SC reforçou que houve uma convocatória do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) para que as defensorias estaduais prestassem apoio, “considerando o volume de prisões já efetivadas, início das audiências de custódia, necessidade de atendimento individualizado e elaboração de defesa”.

Nota: Esta reportagem faz parte do projeto Lupa nos Golpistas, produzido pela Lupa com apoio da Fundação Heinrich Böll Brasil.

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A Flourish map

Editado por

Leandro Becker e Bruno Nomura

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