Publicado originalmente em Revista Justiça & Cidadania por Edgard Rebouças. Para acessar, clique aqui.
As recentes e constantes discussões sobre a proliferação de notícias falsas nos meios de comunicação não nasceram nos Estados Unidos, durante a campanha presidencial de 2016, quando o termo “fake news” passou a ser utilizado por um dos candidatos a cada vez que alguma notícia contradizia mais uma de suas falácias. Segundo a filosofa Hannah Arendt, em “Verdade e Política”, “pelo ponto de vista dos políticos, a verdade tem um caráter despótico. É, portanto, odiada pelos tiranos, que morrem de medo da competição de uma força coercitiva que não possam monopolizar”. Daí o fato de os que ocupam o poder de forma autoritária sempre tentarem menosprezar, cooptar ou calar os demais atores sociais de uma democracia: o Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público, a imprensa, os intelectuais, os artistas e a sociedade civil organizada.
No campo dos estudos da Comunicação (que envolve as áreas do Jornalismo, da Publicidade e Propaganda e a das Relações Públicas) as estratégias utilizadas pelo ex-presidente Donald Trump – e seus fãs mundo à fora – já são bem conhecidas, analisadas e teorizadas há muitas décadas, e até séculos. Todas estão inseridas em um padrão que se repete de tempos e tempos, no qual o uso da mentira e da informação intencionalmente falsa se apresenta como ferramenta eficaz para conquistar corações e mentes, sobretudo de pessoas menos esclarecidas ou daquelas que lucram com a ignorância e se mantêm no poder sem ser questionadas.
O pensador Sêneca, há cerca de 2.000 anos, já refletia sobre a passividade dos cidadãos ao discurso de alguns políticos romanos, e escreveu: “Alguns são muito crédulos, outros são descuidados. Alguns são iludidos, outros encantados com a falsidade. Alguns não a evitam, outros a procuram”. O que realmente ocorre é que aqueles que reclamam das tais notícias falsas são os que mais a utilizam como estratégia de desinformação, subinformação, falsidade ou informação fraudulenta. Alguns até falam com naturalidade que se trata de pós-verdades, fatos alternativos ou polarização de opiniões.
Tais técnicas de propaganda ideológica e manipulação da informação ressurgiram mais fortemente a partir da ascensão e construção dos discursos de “mitos” que se aproximam de ideais autoritários em campanhas eleitorais e governos recentes. Bons discípulos de Maquiavel, que sugere que o príncipe deve saber usar da arte da dissimulação, pois “tão simples são os homens e de tal forma cedem às necessidades presentes, que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar”.
Até mesmo Adolf Hitler, que soube muito bem se apresentar como “mito”, em seu livro “Minha Luta”, de 1925, cita as expressões “propaganda” por 180 vezes e “mentira” por mais 56. Isso para falar como os governos inglês, francês e dos Estados Unidos se valeram desses artifícios para vencerem (e venderem) o conflito; e como a Alemanha deveria aprender com eles. O resultado foi visto anos depois, com a ascensão do nazismo e seus discursos e ações ao longo da II Guerra Mundial. Como se vê, há uma série de proeminentes políticos que seguem a mesma escola: dizem-se vítimas de notícias falsas, mas são mestres na arte da dissimulação e da desinformação intencional.
Um dos principais referenciais dos estudos da Comunicação, o sociólogo Harold Lasswell, passou boa parte do Século XX dividindo-se entre suas atividades de professor universitário e pesquisador de estratégias de propaganda para o governo dos Estados Unidos. Em seu primeiro trabalho mais relevante – “Técnicas de Propaganda na Grande Guerra” – de 1927, ele descreveu que, para além do poderio armamentista e das sanções econômicas, uma guerra também envolve disputas ideológicas. E, segundo ele, quatro estratégias são utilizadas: 1) mobilização do ódio contra o inimigo, 2) preservação da amizade dos aliados, 3) obtenção da cooperação dos neutros, e 4) desmoralização do inimigo. Realmente, não há nada de novo debaixo do sol.
O conceito de “Propaganda” cunhado por Lasswell há quase 100 anos continua válido até hoje: “Refere-se apenas ao controle da opinião por símbolos significativos, ou, para falar de forma mais concreta e menos precisa, por histórias, rumores, relatos, fatos e outras formas de comunicação social. A propaganda preocupa-se com a gestão de opiniões e atitudes pela manipulação direta da sugestão social”.
Usos e abusos – Como dito anteriormente, os estudos da Comunicação já se ocupam do fenômeno da desinformação intencional ou fraudulenta há muito tempo, seja com interesses políticos, econômicos ou por mera manutenção de poder e status quo. Salientando que, na maioria dos casos, com a clara conivência e cumplicidade dos meios de comunicação tradicionais. Ocorre que nas últimas duas décadas um novo elemento entrou na equação: o antigo receptor/consumidor, graças à “popularização” das tecnologias, torna-se um novo emissor/produtor.
Diante disso, quase todos os modelos teórico-metodológicos para analisar os processos midiáticos, informacionais e comunicacionais estão tendo que ser reavaliados e recalibrados para uma realidade do uso de mídias/redes sociais digitais. Soma-se a isso, a pandemia, que provocou uma rápida aceleração nas mutações que já vinham sendo observadas desde o final dos anos 1970, quando as tecnologias começaram a ficar mais acessíveis.
A proliferação do fluxo informacional circulando nas mídias/redes sociais digitais gera um ambiente ideal para a desinformação intencional. Aqueles que são anti-imprensa, antiverdade, anticiência e anti-educação se valem da credulidade de alguns para disseminar discursos de ódio, preconceitos e intolerância. No atual momento, um dos pontos de preocupação diz respeito ao uso responsável e ético dessas mídias, haja vista que não houve tempo – nem interesse – para que os habitus, como dizia Pierre Bourdieu, que envolvem os processos comunicacionais fossem incorporados por esse tsunami de novos agentes envolvidos.
Diferentemente da exitosa apropriação das tecnologias informacionais e comunicacionais feita por movimentos sociais, que já compunham um habitus a partir de suas tradições de reflexões e ações em torno de temáticas específicas – ex.: movimentos sindicais, feministas, negro, LGBTQIA+, ambientalista, sem-terra, etc. – o “tiozão do zap”, as juventudes e as demais pessoas que compõem a “maioria silenciosa” não tiveram ainda tempo para refletir sobre seus usos e práticas midiáticas.
Os indivíduos foram tolhidos de se expressar por tantos séculos que as possibilidades “ilimitadas” oferecidas nas últimas décadas se apresentaram como um escoadouro de discursos e narrativas reprimidos. Por um lado, isso é bom, já que abre a possibilidade de democratizar discursos antes exclusivos de grupos dominantes. No entanto, pode abrir espaço para que, sem os “filtros” da subjetividade socializada, surjam muitas questões, comportamentais, morais, éticas e até jurídicas; tudo isso escudado por uma equivocada apropriação do conceito de “liberdade de expressão”
A tão propalada “tecnodemocracia” acabou gerando um simulacro de cidadania, em que a esfera pública para o exercício da razão crítica cedeu espaço para a formação de uma sociedade incivil cada vez mais autolegitimada.
A tal “democratização” não serviu apenas para que a sociedade tivesse mais oportunidades de acesso a conteúdos diversificados, processos de ensino/aprendizagem diferenciados ou que emancipasse o receptor passivo como um emissor em potencial. Enfim, tudo aquilo que foi prometido pelos primeiros entusiastas da Internet. O que ocorreu foi algo semelhante ao que alguns pioneiros das Ciências da Comunicação descobriram, na década de 1940: que o excesso de informações superficiais disponíveis nas mídias de massa estava tornando os espectadores mais apáticos, ao invés de mais ativos; e chamaram isso de “disfunção narcotizante”.
Com a disfunção narcotizante associada às técnicas de propaganda, a infodemia gerada pelo excesso e pela disseminação acelerada de informações sobre a covid-19 e as eleições, por exemplo, ao invés de levar a sociedade a esclarecimentos, acaba gerando mais incertezas. Tudo graças a leviandades, perversidades e ao uso político da tragédia e da conjuntura socioeconômica.
Possíveis caminhos – Na tentativa de compreender melhor todos esses fenômenos e interferir para o resgate de alguma transformação em prol do esclarecimento e da democracia, várias inciativas em universidades, organizações não governamentais, instituições públicas e movimentos sociais têm sido colocadas à disposição da sociedade. Tais reflexões, propostas e ações têm convergido quanto ao combate à desinformação, no curto prazo; à regulação das mídias, no médio; e à educação midiática, no longo prazo.
As ações de checagem de informações intencionalmente falsas, como as reunidas na Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD), vieram para aprimorar o que observatórios de mídias já faziam nas últimas décadas em relação a coberturas jornalísticas que favorecem interesses políticos e/ou empresariais em detrimento do interesse público; desrespeitos aos direitos humanos em programas televisivos e publicidades abusivas e/ou enganosas.
Já no campo da regulação, as propostas são de criação de políticas públicas que acompanhem os processos comunicacionais, passando por seus modos de produção, distribuição, circulação e acumulação. Tal perspectiva engloba desde as gigantes da tecnologia, que faturam com o volume do fluxo informacional, pouco se importando com os conteúdos; até os discursos preconceituosos, de ódio e ilegais em uma simples postagem “despretensiosa”. Lembrando que, como disse tio Ben a Peter Parker: “Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”.
Nota
* Coluna que destaca as contribuições dos professores, cientistas e especialistas das entidades parceiras do Programa de Combate à Desinformação (PCD) do Supremo Tribunal Federal.