“De onde menos se espera…”

Publicado originalmente em Grupo de Pesquisa em Mídias Digitais e Internet – MíDI. Para acessar, clique aqui.

Inicio esta coluna quinzenal rememorando um personagem da vida pública brasileira já citado em situações anteriores, o Barão de Itararé. Apparício Torelly, jornalista e político brasileiro, é famoso por suas famosas tiradas e frases de efeito, mas também pela seriedade com que fez oposição, dentre outros, a Getúlio Vargas e Gaspar Dutra; àquele, no período auge do Estado Novo, o que o levou para o cárcere entre 1935-1936; a este, quando eleito vereador pelo Partido Comunista Brasileiro em 1947 do Rio de Janeiro com o lema “Mais leite! Mais água! Mas menos água no leite!”, teve seu mandato cassado em 1948, quando o Tribunal Superior Eleitoral cancelou o registro do partido, do que ele tascou: “Um dia é da caça… os outros da cassação”.

Esse personagem singular, com cara de profeta, em razão de sua longa barba branca, um dia sintetizou numa sentença aquilo que a psicanálise poderia referendar. Dizia ele: “De onde menos se espera é que não vem nada mesmo…”, ou segundo um meme que circula nas redes: “És completamente responsável pelas expectativas que você cria”.

A ideia, como o leitor consegue perceber, é a de que não existe qualquer possibilidade de sermos surpreendidos positivamente pelo medíocre, pelo estúpido, pelo boçal. Se uma pessoa manifesta estes atributos negativos, ou outros mais graves, como o apoio à tortura, à ditadura, civil ou militar, ao “estupro corretivo” ou à discriminação de minorias, essa pessoa não será boa, no sentido moral, e seus projetos e atuações serão da mesma natureza. O mesmo se aplica ao meme: se o cara é boy lixo, fuja, salvo se você quiser ter o trabalho de reciclá-lo. Mas lembre-se: ele é lixo não por inação, mas por escolha, e ninguém muda se não quiser.

Pois bem. Em recentes manifestações públicas, o Ministro da EducaçãoMilton Ribeiro, fez afirmações peremptórias e discriminatórias contra crianças e adolescentes deficientes que, em vez de serem segregadas em escolas especiais como ele acha mais correto, são incluídas nas redes de ensino, públicas e privadas, onde partilham do mesmo espaço, da convivência e conteúdo com os demais alunos. Para Ribeiro, 12% dos alunos nessa situação são de convivência “impossível”, sem que, no entanto, tenha dito de que buraco tirou o número. Como foi, com muito justeza, criticado, Ribeiro dobrou a aposta.

O que nós queremos? Nós não queremos o inclusivismo. Criticam essa minha terminologia, mas é essa mesmo que eu continuo a usar. É claro que existe uma deficiência como a Síndrome de Down, que existem alguns graus, que a criança colocada ali no meio, socializa. Mas 12% não têm condições de conviver ali [na sala de aula]“, disse.

Mas antes desse claro exemplo de febeapá (festival de besteiras que assolam o país, conforme dito por outro grande jornalista brasileiro já falecido, Stanislaw Ponte Preta), Ribeiro também afirmou que o Ministério da Educação não podia fazer nada pela inclusão digital de alunos nesse período de pandemia, ou que as Universidades são para poucas pessoas, já que existe muito advogado e engenheiro dirigindo Uber.

Ninguém duvida de que o Governo Jair Bolsonaro tem um projeto de destruição de todas as conquistas civilizacionais que tão arduamente o povo brasileiro conquistou desde a democratização. São tamanhas as perdas de direitos, de descontinuidade de políticas públicas, de adesão à barbárie e à discriminação sistemáticas de minorias, que ficamos, por vezes, perdidos na escolha de um campo prioritário de resistência. E talvez seja esse o projeto: fragmentar o campo social de tal forma que passe a ser um espelho da fragmentação do campo político, ensejando o já conhecido “dividir para conquistar”.

Penso com meus botões, no entanto, que precisamos ser inteligentes e escolher, em meio a esse caos, as prioridades. E a educação é a prioridade de nosso tempo, inclusive no campo da inclusão de todos no processo de educação, seja das pessoas com deficiências juntos aos demais alunos, seja os dos miseráveis que foram excluídos das aulas pela ausência de inclusão digital, dentre outras políticas públicas essenciais.

Ribeiro, embora doutor em educação pela USP, jamais teve qualquer atividade ligada à educação pública, seja em nível de pesquisa, extensão ou ensino. Foi vice-reitor de uma universidade privada, é certo, mas seu currículo não informa qualquer atividade minimamente relacionada à pasta que ele… dizer administrar é muito forte… é…, bom, na qual ele está.

Formado em teologia, Ribeiro é pastor de uma Igreja Presbiteriana em Santos, São Paulo. Já que essa formação, como a de bacharéis em direito e em engenharia, segundo a sua fala, só o habilita a ser motorista de Uber, caso não tenha uma igreja que pague o seu salário, fez direito numa faculdade privada de baixíssima qualidade no interior de São Paulo. Completou sua formação com um mestrado em direito na universidade pertencente à sua Igreja, Mackenzie (sobre liberdade religiosa), e doutorado em educação pela USP.

Quem analisa o seu currículo Lattes depara-se com uma nulidade intelectual. Ribeiro, por ser um segregacionista educacional – e por isso mesmo um árduo defensor do homeschooling –, nunca saiu da zona de conforto da sua formação religiosaSua tese de doutorado é uma defesa do modelo de ensino envergado por sua Igreja, que tem sua base teológica no calvinismo, e é realmente um absurdo que a USP, que canta em prosa e verso a sua “excelência”, tenha permitido a qualificação e a defesa desse arremedo de trabalho acadêmico. Sem um efetivo problema, Ribeiro brincou de “target effect”, isto é: atirou a flecha, acertou-a em um lugar qualquer entre a indigência intelectual e a incapacidade reflexiva, e depois pintou o alvo no exato lugar em que queria. Com isso não errou o alvo, pois ele nunca o teve.

Uma síntese dessa incapacidade de refletir sobre a educação é ter se referido às políticas públicas de inclusão como “inclusivismo”. O sufixo “ismo” denota uma ideologia, uma concepção subjetiva, uma opinião, enquanto inclusão denota ação, o efeito de, apesar das dificuldades que os diferentes terão no contexto educacional, propiciar que aprendam reciprocamente, se ajudem, demonstrando que a educação é mais do que incutir dados, é tornar a pessoa responsável pelo mundo, entendido por Hannah Arendt como a esfera de convivência entre as pessoas, mas também da terra, o ambiente vital que é a condição essencial para a vida humana.

Conforme afirmado por Eliana Cunha Lima, ouvida pelo G1: “Fiz mestrado e doutorado em educação inclusiva e posso dizer que ‘inclusivismo’ não existe na área educacional. O ministro parece querer expressar que a inclusão é algo ruim para todos – pessoas com ou sem deficiência”. Já a jornalista Claudia Werneck, que fundou a ONG Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, disse: “Ninguém que trabalha com educação inclusiva usa esse termo. Deduzo que ele queira criticar a inclusão e dizer que, na prática, ela significa colocar uma criança com deficiência na sala de aula, mas não garantir o direito à aprendizagem. Mas isso é tudo, menos inclusão”.

O importante da fala dessas duas especialistas é que se pode, por contraste, rechaçar o que foi afirmado por Ribeiro como um “nonada” acadêmico, posto não existir respaldo à sua afirmação nem na legislação educacional, que determina e assegura o direito à inclusão, nem no campo teórico da educação, formado, como regra geral, por profissionais que escolheram, entre tantas atividades possíveis, dedicar suas vidas ao aperfeiçoamento daquilo que nos torna mais civilizados e dignos de nossa humanidade.

Ribeiro, pelo contrário, assumiu a função que ocupa com a clara atribuição de contribuir com a destruição da educação brasileira.

Um exemplo, dentre os muitos, foi a sua fotografia, todo sorridente com Bolsonaro e Sikêra Júnior, conhecido apresentador de um programa “mundo cão”, que tem por bordão “CPF Cancelado”, com o qual justifica, para sua audiência, a violência policial. Fosse Ribeiro “só” o Ministro da Educação já seria um absurdoSendo ele pastor, atividade com a qual se identifica mais do que qualquer outra, é um acinte à imagem do Nazareno, que uma vez afirmou: “Vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Evangelho de João, 10: 10).

De onde menos se espera é que não vem nada mesmo, dizia Barão de Itararé, portanto, não esperem nada de Ribeiro, salvo uma disposição renhida pela destruição da educação brasileira.

A nós nos compete trincar os dentes e resistir, e fazer como o poeta Mário Quintana um dia afirmou, quando teve seu nome rechaçado numa eleição para a Academia Brasileira de Letras: “Todos esses que aí estão/ Atravancando meu caminho,/ Eles passarão…/ Eu passarinho!”.

Ribeiro passará e será lembrado, se assim o for, como o pior Ministro da Educação que o Brasil já teve, pari passu com o seu antecessor, Weintraub. Quanto a nós, sejamos passarinhos levando a sempre boa-nova da educação inclusiva, gratuita e de qualidade.

Marcus Oliveira é professor de Direito e coordenador do Jus Gentium na UNIR.

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