Cracolândia de São Paulo: o genocídio começa na calçada

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Daniel Mello, Aline Yuri Hasegawa, Ricardo Paes Carvalho e Verena Carneiro. Para acessar, clique aqui.

Na Cracolândia é possível ser preso por tráfico sem uma grama de drogas. Isso não é uma história, é uma vida. Foram 40 dias em um centro de detenção provisória por uma porção de crack que não se via nas imagens da televisão.

Às 22h37 da última segunda-feira, recebi uma mensagem: “Levantaram o cara pelo pescoço com golpe de mata leão [sic]”. Eram notícias da esquina da Rua dos Gusmões com a Rua do Triunfo. Na foto, duas viaturas e sete guardas civis metropolitanos. 

Como é possível se defender de uma juíza que não vê tortura nessa corda? Por que os policiais tinham uma corda? O homem carregado com os pés e as mãos amarrados às costas, jogado como um saco de batatas no porta-malas.

O que fazer contra a guarda que não protege a nada? 

Como fugir desse carro que avança sobre a multidão, sem hesitação ou marcha ré? Quanto vale esse telefone? São três pernas arrancadas, ainda que os ossos expostos sejam brancos.

Ele me liga mesmo não tendo um celular. A semana toda sinto-o nervoso.

Vou ao seu encontro e nos desencontramos.

Quando conseguimos, nosso encontro e a interação de nossos corpos chama a atenção. Camadas de violências marcam o corpo dele, suas palavras e seu olhar. A violência que marca minha experiência está em outros lugares escondidos em meu corpo, em minhas palavras e em meu olhar.

Enquanto tentamos conversar, pessoas passam e tentam nos comprar, nos vender de tudo e a si próprias. Navegamos, eu e ele, nesse monte de coisas acontecendo ao mesmo tempo, no pequeno vínculo de afeto e cuidado que nos coloca em relação. E de repente o fluxo estoura.

“vou embora, você quer ir comigo? Te deixo em meu caminho”

“quero, me deixa no hotel”

subimos no carro e ele me pediu dinheiro.

As imagens panorâmicas, de uma perspectiva de cima para baixo e despersonalista injetam anestesia em nossa sensibilidade sobre as pessoas que habitam o território sobre o qual esse olhar se projeta. Todos os dias, nos meios de comunicação, tomamos nossa dose de paralisia contra a percepção da violência absurda, abominável, terrorista e total que permeia e costura nossa relação com o mundo em que vivemos. A consciência de que a morte e o desaparecimento são constantes em territórios de vulnerabilidade é o que nos leva ao futebol ou ao cinema e a tantas outras ações no fluxo e em tantos outros territórios que buscam novas formas de estar no mundo, driblando a morte, resistindo ao desaparecimento.

E inventamos defesas em contextos de guerra.

Você já ouviu falar na Operação Caronte? Foi uma operação da Polícia Civil realizada entre junho de 2021 e dezembro de 2022 para combater o tráfico de drogas na Cracolândia. Aqui não vou me ater às evidências de que 90% das centenas de prisões (ocorridas na sexta fase da operação) foram consideradas ilegais e arquivadas pela Justiça. Quero chamar a atenção para o nome Caronte. Na mitologia grega, Caronte é o barqueiro de Hades -, o deus grego do submundo -, que tem a função de carregar as almas dos recém-mortos sobre dois rios que dividem o mundo dos vivos do mundo dos mortos.

Por isso, passam quase despercebidas as violações cotidianas de corpos e vidas na Cracolândia? Estariam seus habitantes mais mortos do que vivos? 

Entra governo, sai governo, e a Cracolândia há décadas aparenta ser um problema sem solução. Será mesmo? Ou seria apenas mais um exemplo da necropolítica em manutenção? Um reflexo da lógica neoliberal que opera a ideia de que uns valem mais do que outros. Quanto vale a vida de um usuário de droga? E de um usuário de crack?  

Vivemos em uma sociedade que legitima a violência em nome da “ordem”, da “segurança”, quando a palavra mais apropriada seria PODER. Em seu nome, constrói narrativas que desumanizam corpos, como a dos zumbis da Cracolândia. E assim se ensina para as gerações que chegam quem é de costume morrer e quem não.  

“As colônias são o local por excelência em que os controles e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da civilização” -, frase de Achille Mbembe, teórico político e autor do conceito de necropolítica.

A morte.

Morte morrida, morte matada,

Morte escondida, morte anunciada.

Morte em vida, vida de morte explorada.

Morte vida severina, ao peso de prata esterlina. 

Morte contada, manipulada, ampliada, morte distorcida, morte com torcida, fofocada.

A morte televisionada. 

A cada clic, uma guerra,

Entre um comercial de shampoo e uma nova vitamina,

Um tele repórter morre ao vivo,

A morte vendida e a morte comprada.

O show da morte.

A morte da vez, eterno mote, a moda morte,

As mortes esquecidas e as mortes aquecidas. Pré estabelecidas, percebidas?

Mortes explicitas, mortes veladas, doces estatísticas, meras notícias, 

Entre um gole de café e um pedaço de pão com margarina,

A morte que comove, que dissolve, 

Fronteiras,      

                    Identidades,

                  Humanidades.

A Morte. Tanto aqui, como lá, a morte é a mesma.  Infelizmente o cardápio local e global está farto, basta abrir a janela ou zappiar seu celular. Viva a morte, pois para isso, basta estar vivo.

A Craco Resiste

*Aline Yuri Hasegawa é mãe, pesquisadora e produtora. Integra o time misto de futebol de várzea União Lapa que, juntamente com o Coletivo Rosanegra ADF e A Craco Resiste, promove ação de redução de danos com futebol no Fluxo. Militante d’A Craco Resiste.

**Daniel Mello é militante d’A Craco Resiste e faz parte da Associação Birico. É autor do livro Gargalhando Vitória – poemas da cracolândia (Editora Elefante)

***Ricardo Paes Carvalho – educador social de rua e jornalista. Militante d’A Craco Resiste.

****Verena Carneiro: jornalista, pós-graduada em jornalismo literário. Redutora de danos pela Craco Resiste e integrante dos times mistos de várzea de São Paulo União Lapa e Rosanegra ADF -, ambos com atuação política e social por meio do futebol.

*****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

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