Publicado originalmente em Observatório COVID-19 BR. Para acessar, clique aqui.
*13 de agosto de 2020 – Esse texto é uma versão estendida do artigo de opinião publicado originalmente na Folha de São Paulo.
Neste sábado, sete de agosto de 2020, o Brasil se tornou oficialmente o segundo país do mundo a romper a triste marca de 100.000 vidas perdidas para a COVID-19. Nunca tantas pessoas morreram pela mesma causa num intervalo de tempo tão curto neste país. Gostaríamos de prestar nossa solidariedade a todas e todos que perderam entes queridos nessa que é uma das maiores tragédias de nossa história. Mais do que números, perdemos vidas, com seus sonhos, paixões e histórias. Este marco nos obriga a uma reflexão sobre os erros cometidos que nos levaram a alcançar esse número e quais ações estão ao nosso alcance para que não percamos ainda mais vidas de forma desnecessária.
Desde muito cedo já estava claro para a comunidade científica que a chegada no novo coronavírus não era uma questão de “se”, mas de “quando”. Causa-nos enorme frustração olhar para o passado e ver a quantidade de oportunidades que perdemos nesses mais de cinco meses desde a declaração de pandemia por parte da OMS. Estávamos há algumas semanas de locais fortemente atingidos pelo vírus, como o norte da Itália, a Espanha e Nova Iorque. Sabíamos o que iríamos enfrentar e quais eram as ferramentas necessárias. Mais importante, contávamos com uma vantagem que só nós temos: o nosso SUS. Por meio dele, o Brasil deu exemplos ao mundo no enfrentamento de muitas emergências epidemiológicas como a AIDS e o Zika. O SUS é público, universal e gratuito com um programa comunitário de atenção primária capilarizado, com conhecimento do território e proximidade das comunidades por meio das equipes de saúde da família e principalmente dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Tudo isso foi desconsiderado, entre tantas ações desastradas e descoordenadas que nos colocaram em um cenário crítico.
Ressaltamos também a falta de coordenação por parte do governo na aquisição de materiais para o combate à pandemia como equipamentos de proteção individual, ventiladores mecânicos e insumos para a realização do testes para identificação de pacientes em fase aguda da doença ou de assintomáticos, como do tipo qRT-PCR. Gastou-se muito dinheiro na aquisição de testes rápidos de qualidade questionável e de pouca utilidade no controle a transmissão. Mesmo com a aprovação da PEC do Orçamento de Guerra para o combate à pandemia, até o final de julho menos de 30% desses recursos haviam sido utilizado.
Logo no início da pandemia falhamos em monitorar a entrada de pessoas vindas de regiões com alta incidência de COVID-19. Esse controle precoce das fronteiras foi uma das muitas medidas que países que controlaram a pandemia, como Vietnã e Nova Zelândia, tomaram. Perdemos muito tempo e energia debatendo o falso dilema entre saúde e economia. Hoje fica cada vez mais evidente que o forte golpe na economia é consequência da pandemia e não da restrição da circulação. Países que implementaram um lockdown rigoroso seguindo um discurso uníssono entre os diversos níveis de governo e alinhado com a ciência já estão conseguindo retomar as atividades gradativamente e com segurança.
As medidas de distanciamento físico foram implementadas cedo no Brasil, porém de forma descoordenada, com discursos contraditórios por parte das autoridades, sem a fiscalização ou orientação necessárias, sem um plano de saída e sem ações adjuvantes indispensáveis, como o rastreamento e isolamento de contatos e a testagem em massa. A polarização política fez o distanciamento físico parecer um fim, quando é apenas um meio, uma etapa de uma estratégia nacional, que deveria ter sido coordenada pelo Ministério da Saúde e que nunca existiu. O auxílio emergencial para milhões de brasileiros que vivem sem trabalho ou na informalidade, medida essencial para permitir que se protegessem, demorou a ser implementado e sua execução foi problemática, muitas vezes causando aglomerações em agências bancárias e, deste modo, expondo as pessoas ao risco de se infectar. Os erros na implementação do auxílio emergencial expõem a dura realidade da desigualdade social no Brasil. É impossível exigir que se fique em casa quando o jantar depende do trabalho do dia. O teletrabalho é um privilégio para uma pequena parcela da população. A parcela mais pobre do país é justamente o grupo que mais sofre com comorbidades e com menor acesso à infraestrutura de saúde. Não por acaso, a COVID-19 chegou ao Brasil pelos mais ricos que viajaram ao exterior, mas tem sido brutal para os pretos, as pessoas mais pobres e as de menor escolaridade, que apresentam maior incidência de casos e maiores taxas de mortalidade. No atual cenário, quando já se observa um esgotamento de boa parte da população que levou o distanciamento físico a sério desde o início, é importante que, além dos erros passados, apontemos possíveis caminhos para a mitigação da pandemia daqui para frente.
No nível individual, há medidas de prevenção simples de serem apoiadas por políticas públicas. Os últimos estudos mostram o papel fundamental das máscaras faciais. Além de diminuir a emissão de aerossóis e perdigotos contaminados pelas pessoas infectadas, elas também reduzem a carga viral a qual um indivíduo não infectado é exposto. As evidências indicam que a severidade da doença pode estar relacionada à carga inicialmente exposta. Além disso, a confirmação de transmissão do vírus pelo ar reforça a importância se evitar ao máximo aglomerações em ambientes fechados e de mantermos distanciamento entre as pessoas em ambientes como supermercados e feiras, dentre outros.
No entanto, o ponto mais importante que gostaríamos de levantar é a importância das ações que diminuem as possibilidades de espalhamento do vírus na comunidade. Em especial, a testagem e identificação dos sintomáticos, acompanhada do rastreamento de contatos, utilizando a rede de atenção primária e os agentes comunitários de saúde como espinha dorsal da resposta. Explicamos brevemente o conceito por trás do rastreamento de contato nesse texto. Em linhas gerais, a busca ativa de casos garante que isolemos indivíduos expostos ao vírus antes que eles possam infectar outras pessoas. A identificação rápida de pessoas que tiveram contato com um infectado é fundamental, pois elas podem estar transmitindo o vírus sem terem conhecimento. A transmissão começa, em média, dois dias antes que apareçam os sintomas, ainda que eles sejam leves ou não notados. Por isso, para encontrar rapidamente uma cadeia de transmissão e interrompê-la, é necessário, além de uma grande quantidade de testes que detectam o vírus ativo nos pacientes (qRT-PCR), uma equipe bem capacitada e munida dos devidos equipamentos de proteção individual. A rede do SUS é altamente capilarizada com a capacidade de atingir a população mais vulnerável, particularmente por meio dos agentes comunitários da saúde devido ao amplo conhecimento do território e à relação de confiança mútua com a população. De fato, muitos desses profissionais são parte da comunidade. Tais profissionais teriam condição não só de identificar casos ativos e contatos, como também acompanhar o quadro de saúde dos infectados, encaminhando-os para hospitais e postos de saúde, nos primeiros sintomas que exigirem este atendimento. Além disso, poderiam identificar famílias em vulnerabilidade social que necessitam ajuda imediata.
A situação angustiante na qual estamos envolvidos é terreno fértil para soluções mágicas e fáceis, mas sem comprovação científica. Desperdiçamos muito tempo e energia discutindo medicamentos sem eficiência comprovada no combate a COVID-19, enquanto as soluções óbvias não foram implementadas. Mais do que isso, a discussão sobre o protocolo da cloroquina derrubou dois ministros da saúde durante a maior crise sanitária em um século e hoje estamos há quase três meses sem um titular na pasta. Mesmo com o esforço hercúleo da comunidade científica na busca por uma vacina e tratamentos eficazes, precisamos encarar a dura realidade de que a pandemia ainda está muito longe do fim e, hoje, temos apenas medidas não farmacêuticas para controlar a COVID-19, como distanciamento físico, o uso de máscara e o rastreamento de contatos, utilizando-se da estrutura do SUS disponível.
Estamos há semanas observando uma média de mais de 1000 óbitos notificados por dia pela COVID-19 e, infelizmente, o sentimento é que a morte foi normalizada. Não podemos continuar perdendo oportunidades de enfrentar essa crise de forma séria. Não há mais espaço para negacionismo da ciência, desinformação e politização da saúde pública. As vidas perdidas não voltam, mas a história que contaremos daqui para frente depende da seriedade com a qual vamos encarar o combate a pandemia nos próximos meses.