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Artigo | Rosa Maria Castilhos Fernandes, Alice Domingos Kaingang e Bruno Brazão Lopes Baré relatam resultados de pesquisa sobre a presença e os desafios enfrentados por estudantes indígenas na Universidade
*Por Rosa Maria Castilhos Fernandes, Alice Domingos Kaingang e Bruno Brazão Lopes Baré
*Ilustração: Gugu Lacerda/ Programa de Extensão Histórias e Práticas Artísticas, DAV-IA/UFRGS
Brasil território indígena. Universidade território indígena. Assim, iniciamos o relatório de um processo investigativo desencadeado no ano de 2022 na UFRGS, reafirmando a relevância das ações afirmativas na educação superior no Brasil. Neste estudo, nos referimos aos povos indígenas. As políticas de ações afirmativas vêm provocando diferentes reflexões no ambiente acadêmico e, na última década (2012-2022), com o avanço da inclusão de indígenas, pretos e pardos, estudantes de escola pública e/ou baixa renda e pessoas com deficiência na educação superior (Lei Federal n.º 12.711/2012 e Lei n.º 13.409/2016), temos motivos suficientes para a realização de avaliações das cotas na UFRGS. Esse foi o nosso objetivo: o de identificar os fatores intervenientes (limites, potencialidades) das tendências e avanços necessários para a afirmação das cotas indígenas.
Na pesquisa de natureza qualitativa e de tipo documental, foram analisados os relatórios da Coordenadoria de Ações Afirmativas (CAF), os editais de monitorias, trabalhos do salão de ensino e extensão, os benefícios da assistência estudantil, assim como os textos veiculados no Jornal da Universidade. Também realizamos dois grupos focais: um com servidores da UFRGS e outro com estudantes indígenas.
O Brasil tem 1.693.535 de pessoas que se autodeclararam indígenas, o que representa 0,83% do total de habitantes do país (IBGE, 2022). Mais da metade, o que corresponde a 51,2% da população indígena, está concentrada na Amazônia Legal, região formada pelos estados do Norte, Mato Grosso e parte do Maranhão. No RS, um total de 36.096 pessoas se autodeclaram indígenas. Do total, 20.372 vivem fora de terras indígenas, como, por exemplo, em contextos urbanos, o equivalente a 56,5%. E 15.724 vivem em terras indígenas, que equivale a 43,5%.
A presença indígena no contexto acadêmico brasileiro no ano de 2000 correspondia a 4.397 estudantes. Em 2018 foram 57.706 indígenas matriculados – 0,68% do total de estudantes no ensino superior –, um crescimento de 695% em relação a 2010, quando eram 7.256 conforme os dados do Censo da Educação Superior do Inep. E no ano de 2019, o Censo da Educação Superior registrou a existência de 72 mil indígenas matriculados.
Importante ressaltar que a UFRGS não estava no ranking do INEP de 2018, pois na ocasião não possuía mais de 100 estudantes indígenas matriculados. Em 2022 constatamos 65 estudantes matriculados na UFRGS com predominância nos cursos da área da saúde. No período correspondente ao estudo identificamos a presença de estudantes indígenas nos seguintes cursos: Medicina, Enfermagem, Odontologia, Psicologia, Serviço Social, Nutrição, Fisioterapia, Pedagogia, Ciências Jurídicas, Educação Física, Saúde Coletiva, Artes Visuais, Políticas Públicas, Ciências Biológicas, Ciências Sociais, Engenharia Ambiental, Engenharia Mecânica, Farmácia, Geografia, História, Administração, Letras e Música.
No chamado Processo Seletivo Específico Indígena (PSEI) instituído na UFRGS desde 2008, são disponibilizadas dez vagas por ano, que são suplementares àquelas ofertadas no Concurso Vestibular. Essas vagas são destinadas exclusivamente aos estudantes indígenas do território nacional que sejam egressos do sistema público de ensino médio. Esse número para ingresso por meio do PSEI seguiu inalterado até o ano de 2023, quando então passaram a ser disponibilizadas ao todo 20 vagas. Constatamos que dos 145 estudantes indígenas que ingressaram na UFRGS no período de 2008 a 2022: 22 foram diplomados e 51 correspondem a situações de desistência, abandono, desligamento, trancamento e transferência.
Para os participantes da pesquisa, as ações afirmativas são estratégias de luta antirracista e enfrentamento das desigualdades sociais. São políticas sociais públicas que têm como premissa a defesa dos direitos humanos e a intencionalidade de reparação sócio-histórica. Para alguns, as ações afirmativas são medidas compensatórias, têm a intenção de fazer justiça cognitiva, de afirmação ao direito social à educação, de convivência intercultural e de diversidade, que têm efeito pedagógico e político.
Contudo, ainda que a inclusão seja garantida pelo sistema de cotas, o modo de gestão e as decisões políticas e participativas no âmbito da Universidade influenciam na real efetivação deste direito. Para os estudantes participantes da pesquisa, ainda é preciso erradicar as práticas de racismo institucional, rever epistemologias, valorizar os saberes ancestrais, ampliar as cotas pelo PSEI e o acesso a diferentes cursos da UFRGS, incluir conteúdos sobre a questão indígena nos currículos e concursos para docentes e técnicos indígenas e realizar investimentos para melhorias na Casa de Estudantes Indígenas, além de outros aspectos. Entre os documentos analisados está o Jornal da Universidade, onde encontramos 24 textos, entre reportagens e artigos, 10 no site do JU e 14 no LUME, que traziam diferentes temáticas sobre ações afirmativas envolvendo estudantes indígenas.
A pesquisa reuniu um significativo acervo envolvendo a discussão das ações afirmativas indígenas na UFRGS. A intenção não foi esgotar, mas dar visibilidade àquilo que existe dentro do universo amostral do estudo. São evidentes os esforços de alguns segmentos da Universidade em instaurar processos democráticos e dialógicos, assim como as lutas travadas pelos estudantes indígenas na busca dos seus direitos para permanência. Mas é preciso avançar com: agendas de planejamento coletivo, monitoramento e avaliação das ações, construção de indicadores, afirmação da permanência, transparência dos dados e informações quanto à efetivação dos direitos estudantis dos indígenas, reconhecimento das diversas e plurais iniciativas, aumento da oferta de cursos no PSEI, ocupação imediata das vagas ociosas, revisão dos currículos.
Para saber mais, acesse o e-book da pesquisa.
Rosa Maria Castilhos Fernandes é professora do Departamento de Serviço Social e do PPG em Política Social e Serviço Social da UFRGS.
Alice Domingos Kaingang é graduanda do curso de Fisioterapia
Bruno Brazão Lopes Baré é graduando do curso de Serviço Social.