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Meio Ambiente | O isolamento das últimas áreas com remanescentes vegetais conservados dificulta a troca genética necessária para manter vigorosa a presença da fauna e da flora. A alternativa é a formação de pequenas passagens que garantam a interconexão entre esses espaços
*Foto: Ponte instalada em via do bairro Lami para que os bugios possam passar em locais em que não há árvores sem precisarem descer e correr riscos (Marcelo Pires/JU)
Você já se viu parado de um lado de uma avenida movimentada, precisando passar para o outro sentido, sem nenhuma faixa de pedestres ou passarela para atravessar? Diversas espécies da fauna e da flora passam por uma situação um pouco semelhante. Com o passar dos séculos e a influência da ação humana, diversas áreas de vegetação natural foram reduzidas a espaços menores e isolados. As espécies que permanecem nessas áreas existentes enfrentam a dificuldade de chegar em outro espaço. O efeito é a perda da troca genética. Os animais passam a cruzar com seus “parentes”, podendo resultar em doenças e pouca diversidade. As sementes que seriam carregadas permanecem no mesmo espaço. As espécies daquele ambiente se reduzem e, consequentemente, a ocupação da área diminui. Uma das possibilidades para evitar essa perda são os corredores ecológicos: espaços por onde a fauna e a flora podem atravessar de uma área para a outra.
O professor de Ecologia da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e ex-pesquisador da Seção de Conservação e Manejo do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, Marcelo Maisonette, explica que, “para cada animal, o corredor pode ter um sentido”. Isso significa que para um leão-baio se sentir confortável em passar é necessária uma área mais ampla, enquanto um roedor pode utilizar uma cerca com vegetação alta como corredor. Ele reforça que “ninguém pode ficar isolado, nem mesmo uma unidade de conservação”.
A ONG Instituto Curicaca trabalha com corredores ecológicos desde 1999. Atualmente, no Rio Grande do Sul, atuam como coimplementadores nos corredores de Itapeva – em Torres –, do Cervo – abrangendo a Área de Preservação Ambiental e Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos –, do Yucumã – envolvendo o Parque Estadual do Turvo, o Parque Província Moconá na Argentina, e mais cinco territórios indígenas que chegam até parte de Santa Catarina – e do Trinacional. Cada corredor foi pensado e construído de acordo com as necessidades do local. No Parque de Itapeva foram construídos microcorredores com cerca de 300 metros de largura. De acordo com o Coordenador Técnico da ONG, Alexandre Krob, é mais fácil monitorar e manter esses corredores do que grandes espaços.
Os corredores ecológicos podem assumir formas diferentes. Em casos em que o objetivo é criar um caminho entre duas ou mais unidades de conservação, é preciso mapear trajetos e negociar com possíveis proprietários de terra para que esses espaços façam parte do corredor. Quando há uma estrada “cortando” duas faixas de vegetação, é possível construir estruturas por cima ou por baixo da rodovia que permitam que os animais trafeguem de um lado para outro. Em casos de maior isolamento das regiões preservadas, onde é quase inviável criar caminhos para outras unidades, é possível implantar corredores internos para manter a conectividade dentro da própria unidade de conservação, como é o caso de Itapeva. Trechos de água, como rios, também podem ser corredores, seja na vegetação das margens ou na travessia pela água. Em todos os casos, a proposta é criar formas de travessia, em sua maioria contendo vegetação nativa do local para que os animais possam transitar, ocasionando a troca genética da fauna – e da flora, pelo carregamento de sementes.
Alexandre explica que, em longo prazo, a expectativa é de que os corredores alterem as paisagens para melhor, ou que ao menos impeçam a redução das áreas preservadas existentes. Observa, entretanto, mudanças relacionadas à maneira de uso e ocupação do solo e até mesmo de políticas públicas. Ele exemplifica com a implantação de estruturas para controle de atropelamento na Rota do Sol, onde ela atravessa um dos corredores de Itapeva. Nessa região também há o incentivo de uma economia sustentável e a preservação através do uso dos butiazais, para que seja feito artesanato, promovendo a valorização da espécie. Já nos corredores de Yucumã, na região norte do estado, há áreas sendo restauradas para aumentar a conectividade dos corredores e a articulação de políticas ambientais contra a caça de espécies como o cervo-do-pantanal, a onça-pintada e a anta. Embora o Corredor Ecológico do Yucumã tenha um nome no singular, o plano apresenta mais de um caminho para ligar as unidades alvo.
O coordenador explica que os corredores estão sempre em implantação, pois se trata de um processo longo. Ele também afirma que os resultados que a ONG tem observado mostram que os corredores são uma boa forma de apoio à gestão de territórios e à conservação da natureza “em uma estratégia não fincada na proibição, mas em oportunidades e proatividade”, já que as estratégias para preservação dos espaços podem envolver a valorização do que é produzido no local, o trabalho com a comunidade e a preservação da paisagem natural, que podem atrair o turismo.
Os macacos bugios ruivos de Porto Alegre e as pontes de travessia
Em Porto Alegre, grupos da UFRGS trabalham para a segurança e preservação dos bugios ruivos. A estudante de Biologia Camila Flores é moradora da Zona Sul de Porto Alegre e costumava observar os bugios na região. Atualmente é bolsista de um projeto que envolve os grupos Viveiros Comunitários, coordenado pelo professor Paulo Brack, e Macacos Urbanos, sob orientação de Márcia Jardim, servidora da Secretaria Estadual de Meio Ambiente. Em seu período na bolsa, a estudante pôde participar da soltura de uma bugio: “Foi aqui no meu bairro, então também teve essa integração. Pra mim foi bem simbólico”.
O grupo Macacos Urbanos realiza a construção de “pontes de travessia de fauna” para que os bugios possam passar em locais em que não há árvores sem precisarem descer e correr riscos – evitando também que sejam eletrocutados ao utilizarem a fiação elétrica para cruzar a rua. Paulo Brack exemplifica que, em geral, as reformas nas estradas ocasionam a poda de árvores que possibilitariam a travessia da espécie para vegetações do outro lado da via. O grupo mapeou os locais de passagem dos bugios, construiu e mantém as pontes.
Apesar de crença que circula entre a população de que os bugios ruivos seriam transmissores da febre amarela, os pesquisadores esclarecem que eles são, na verdade, indicadores de que a doença está se espalhando, pois costumam estar entre os primeiros afetados. O grupo realiza atividades de conscientização a respeito do assunto, a fim de evitar que as pessoas matem os macacos para “erradicar” a doença. Camila percebe que parte da população da Zona Sul está ciente sobre os animais e convive de forma pacífica. Ela explica que o bugio constitui uma espécie guarda-chuva. “Então se a gente conseguir fazer com que as pessoas entendam a importância da preservação dele, a gente já tá, consequentemente, preservando também outras espécies.”
De acordo com Paulo Brack, na beira do Guaíba, no extremo sul de Porto Alegre, há uma vegetação com restingas, natural da Mata Atlântica, que serve como corredor entre o bairro Lami (com ênfase na Reserva Biológica do Lami), o Morro do Coco (limite norte de Viamão) e o Parque Estadual de Itapuã. Junto desta vegetação há outras espécies de fauna e flora ameaçadas de extinção, como a Ephedra tweediana, as árvores grápia (Apuleia leiocarpa), uma espécie de tuco-tuco (Ctenomys lami) e os macacos bugios-ruivo. As restingas e dunas da região são protegidas pela Lei da Mata Atlântica e como Áreas de Preservação Permanente pela Lei Orgânica de Porto Alegre, já que abrigam espécies ameaçadas. Não há, entretanto, o reconhecimento ou tratamento desse espaço como corredor ecológico.
O grupo Viveiros Comunitários realiza a criação de mudas de diversas espécies e fomenta atividades de educação ambiental. Entre estas está o ensino de como fazer mudas de plantas da região, com o objetivo de que a população entenda a importância da preservação das espécies e de aumentar a vegetação, permitindo que esses corredores não reconhecidos sigam existindo – e que outros se criem com o aumento de vegetação para a circulação de animais.
Possibilidades para os corredores
O doutor em Geografia Jean Caneppele analisou em seu TCC, ainda na graduação, o surgimento de corredores ecológicos em espaços agrícolas de Esperança do Sul. Antes de se mudar para fazer faculdade, ele trabalhou em propriedades agrícolas da região. Anos depois, percebeu que diversas propriedades em que havia trabalhado estavam ociosas, sem nenhum cultivo. Foi quando avistou uma família de quatis: “Morei quase 20 anos lá e nunca tinha visto quatis”. Sua percepção foi de que as regiões que não estavam mais sendo cultivadas estavam formando corredores ecológicos. A fauna e a flora daqueles espaços estavam voltando naturalmente.
Com o envelhecimento e aposentaria dos proprietários, o êxodo da população jovem e consequente perda da mão de obra e dificuldade de automação pela localização das terras, deixou-se de produzir nessas áreas. Jean analisou onde estariam os corredores e propôs a realização de Pagamento de Serviços Ambientais (PSA). Os Serviços Ambientais são os “serviços” que os ecossistemas oferecem e que os humanos aproveitam, como, por exemplo, a purificação do ar feito por plantas ou a fertilização e dispersão de sementes feitas por animais. Na proposta que elaborou, os proprietários receberiam um valor de algum órgão governamental para manter as áreas que estavam se reestabelecendo, aumentando a biodiversidade, e, portanto, prestando um serviço ambiental.
Esse tipo de pagamento, de acordo com Jean, é mais comum para preservação de nascentes de água. Após a publicação do TCC, foi promulgada a política nacional de pagamentos por serviços ambientais. No caso dos corredores ecológicos há uma dificuldade em quantificar o valor da biodiversidade. A proposta não foi adiante, pois Jean trocou o foco de pesquisa na pós-graduação. Ele, todavia, entende que essa é uma possibilidade para a manutenção e permanência dos corredores. Em sua percepção, é muito difícil modificar a visão das pessoas sem um incentivo financeiro.
Raquel Pretto, coordenadora da Equipe Executiva Transitória do Corredor Ecológico da Quarta Colônia, na região central do estado, explica que na área também há espaços agrícolas sendo abandonados que colaboram para a conectividade, mas já existiam propriedades com grandes áreas florestadas preservadas em que não há uso útil do solo. Para essas propriedades, o PSA é uma alternativa que vem sendo debatida. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) desenvolveu um Banco de Áreas que podem se beneficiar com o pagamento – recebem a nomenclatura de ‘áreas de servidão ambiental’.
O objetivo é que empresas que precisem cumprir a Reposição Florestal Obrigatória – medidas que devem ser tomadas quando há dano na vegetação nativa – selecionem um local do Banco de Áreas para realizar o Pagamento por Serviço Ambiental. Ou seja, uma empresa realiza o pagamento ao proprietário de terra para que o espaço mapeado siga preservado. De acordo com Raquel, ainda não há nenhuma área recebendo pagamento, pois o mapeamento realizado pela Sema foi recente.
Outra novidade é o Programa Estadual de Pagamento por Serviços Ambientais, que deve lançar editais focados para o PSA através de outros procedimentos que ainda devem ser definidos. Raquel salienta que a maior dificuldade é garantir a continuidade dos pagamentos em longo prazo, já que os editais costumam ter um tempo limitado, mas as propostas seguem em debate e em construção.