Contribuições de Paulo Freire na luta e na construção da pedagogia do MST

Publicado originalmente em Brasil de Fato por Eric de OIiveira e Alessandro Santos Mariano. Para acessar, clique aqui.

Em 2021, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), junto com centenas de organizações populares, celebrou o centenário de Paulo Freire, pois reafirmar e cultivar o seu legado nestes tempos difíceis é uma necessidade histórica, tanto por sua contribuição extraordinária para a construção da educação crítica e libertadora, comprometida com as causas dos oprimidos, quanto pela necessidade de recolocar a luta em defesa da educação pública na construção de um projeto de país radicalmente democrático e soberano. O MST, desde sua fundação, em 1984, tem construído um projeto de educação tendo Paulo Freire como um dos seus principais referenciais. Suas escolas e práticas educativas são orientadas pela pedagogia freiriana, constituindo-se numa pedagogia do e para os oprimidos, pois é construída no processo de luta e organização do povo sem-terra pela reforma agrária.

Este capítulo toma por base fontes primárias — documentos produzidos no MST no período de 1982 a 2000 — que resgatam a presença física e pedagógica de Freire no movimento e atestam as contribuições da pedagogia freiriana para a pedagogia do MST. Desde a sua gênese, o MST tem conectado a luta pela terra ao direito à educação, buscando conquistar escolas públicas e imprimir mudança na forma e no conteúdo de suas práticas educativas, na perspectiva da superação da educação bancária e da formação unilateral, avançando em práticas educativas dialógicas e na formação de sujeitos críticos e ativos.

Nessas quatro décadas, a luta e resistência do povo sem-terra conquistou aproximadamente 1,5 mil escolas públicas (estaduais e municipais), das quais 120 ofertam até o ensino médio, duzentas o ensino fundamental completo e as demais ofertam os anos iniciais. Nelas estudam em torno de duzentas mil crianças, adolescentes, jovens e adultos, e atuam cerca de dez mil educadoras(es). Mas um grande destaque se deve ao trabalho de alfabetização de jovens e adultos, que tirou mais de cem mil pessoas que residem em assentamentos e acampamentos das estatísticas de analfabetismo.

O ideário de Paulo Freire orienta também o conjunto de práticas formativas e organizativas diversas do movimento para além da educação, como a organização das famílias para a ocupação de latifúndios, organização dos assentamentos com a constituição de cooperativas, associações etc., reafirmando que a pedagogia freiriana é uma pedagogia dos oprimidos em luta e organização coletiva.

A luta do MST pelo direito à educação e as primeiras aproximações com a pedagogia freireana

Desde os primeiros acampamentos, o MSTdesenvolveu a luta pelo direito à educação. A primeira escola a ser construída em um acampamento sem-terra foi a do Acampamento Natalino, município de Ronda Alta (rs), em 1982, legalizada só em 1984, já quando se transformou em assentamento. Em relação à educação de jovens e adultos, sempre houve a organização de turmas de alfabetização, dada a necessidade dos camponeses que integravam a luta pela terra de aprender a assinar o nome.

A pedagogia freiriana foi o principal referencial desde esse início, como pode ser visto no registro histórico “Novo acampamento precisa de alimentos”, Jornal Sem Terra, n. 22,
mai. 1982, p. 2..

Numa nota de dois parágrafos intitulada “Paulo Freire”, encontramos a descrição da visita ao acampamento de Ronda Alta de dois assessores de Paulo Freire, que trabalharam
na formação das educadoras e educadores e de alfabetizadoras e alfabetizadores, para um processo de alfabetização de adultos. Vejamos a nota na íntegra:

Dois assessores do Professor Paulo Freire estiveram visitando o acampamento, dentro dos planos da assessoria educacional de Nova Ronda Alta, uma vez que cerca de 50% dos acampados não sabem ler nem escrever. Os professores do Idac de São Paulo aproveitaram para dar início ao treinamento de monitores que posteriormente irão realizar cursos de alfabetização com base no método Paulo Freire.

Os escritos de Camini e Stédile (2021) contam que o convite para vir orientar o trabalho com a educação no Acampamento Natalino foi feito ao próprio Paulo Freire, que havia regressado do exílio naquele período. Mas, como havia recentemente assumido funções de docência na Unicamp, Freire indicou Vera e José Carlos Barreto – casal de educadores que foi buscar Paulo Freire no aeroporto quando ele voltou do exílio, em 7 de agosto de 1979 (Haddad, 2019, p. 148).

Nós sonhávamos com a possibilidade de Paulo Freire vir ao acampamento e organizarmos uma oficina de preparação de monitores de alfabetização. Contudo, por estar reorganizando sua vida no Brasil e ter assumido a docência na Unicamp, sua agenda não permitiu a viagem naquele momento. Então, gentilmente, ele destinou essa tarefa ao casal Vera e José Carlos Barreto, da sua equipe de trabalho. Com ela e ele fizemos várias sessões de trabalho, estudamos e discutimos textos de Paulo Freire. Principalmente queríamos entender o método de alfabetização, como escolher os temas geradores, as palavras-chave. Começamos o exercício de pensar como alfabetizar e conscientizar ao mesmo tempo, desde a nossa realidade, geradora de grandes questões e aprendizados. (Camini & Stédile, 2021, p. 3)

A partir dessas experiências de conquista de escolas e organização de alfabetização de jovens e adultos no Rio Grande do Sul, o movimento passou a expandir o trabalho com a educação para outros estados, constituindo em 1987 o Coletivo Nacional de Educação do mst, passando a desenvolver um processo articulado e amplo de luta pela conquista de escolas nos assentamentos, mas também campanhas de alfabetização e educação de jovens e adultos, avançando para a luta pela educação infantil e, nos anos subsequentes, pelo acesso ao ensino superior. A luta do MST levou as famílias sem-terra, nos acampamentos e assentamentos, a compreender a educação como direito, mas também a reivindicar uma educação de outro formato.

Desde as primeiras elaborações teóricas sobre a escola no MST, a pedagogia freiriana contribuiu para pensar esse outro formato, levando o MST em suas práticas educativas a pensar a organização do trabalho pedagógico que privilegia a seleção de conteúdos comprometidos com a luta pela terra. Uma das primeiras constatações foi que os conflitos em torno da terra precisavam ser trabalhados pela escola e que a função dela é vincular o conhecimento e o processo educacional à organização dos assentamentos, às formas de trabalho e à organização do movimento (Caldart & Schwaab, 1990). Acompanhando o percurso de formulações, encontramos no Documento Básico do MST, de 1991, que sistematiza a vida interna do movimento e aponta as ações para o trabalho dos setores, diretrizes para o trabalho com a educação:

transformar as escolas de 1o grau dos assentamentos em instrumentos de transformação social e de formação de militantes do mst e de outros movimentos sociais com o mesmo projeto político; desenvolver uma proposta de educação que proporcione, às crianças, conhecimentos e experiências concretas de transformação da realidade, a partir dos desafios do assentamento ou acampamento, preparando-se crítica e criativamente para participar dos processos de mudança da sociedade. (MST, 2005, p. 50)

Essas formulações foram fruto dos debates e reflexões do Setor de Educação, que avançou na elaboração da proposta pedagógica do movimento, com a realização de cursos de magistério na Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro (Fundep), que em 1992 passaram a ter a participação das lideranças do Setor de Educação dos diversos estados, tornando-se espaços férteis de debate teórico e prático. A formação de educadoras e educadores para as áreas de reforma agrária foi, portanto, a primeira atividade de educação profissional intencionada pelo movimento.

O primeiro Boletim de Educação, publicado em agosto de 1992 com o título “Como deve ser uma escola de assentamento” (MST, 2005), vislumbrava uma escola aliada ao movimento e apresentava os seguintes objetivos para as escolas de assentamentos:

(i) A escola de assentamento deve preparar as crianças para o trabalho no meio rural; (ii) A escola deve capacitar para cooperação; (iii) A direção da escola deve ser coletiva e democrática; (iv) A escola deve refletir e qualificar as experiências de trabalho produtivo das crianças no assentamento; (v) A escola deve ajudar no desenvolvimento cultural dos assentados; (vi) O ensino deve partir da prática e levar ao conhecimento científico da realidade; (vii) O coletivo da escola deve se preocupar com o desenvolvimento pessoal de cada aluno; (viii) O professor tem que ser militante; (ix) A escola deve ajudar a formar militantes e exercitar a mística da luta popular; (x) A escola é também lugar de viver e refletir sobre uma nova ética. (MST, 2005, p. 40)

Percebemos que o MST foi aperfeiçoando a compreensão da escola conectada diretamente às estratégias de luta do movimento, direcionando para as escolas o vínculo entre educação e trabalho e tomando como referência a organização do trabalho na forma de cooperação. O movimento também estruturou uma proposta de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que avançou significativamente nos anos 1990, com duas características principais: na linha política do movimento, estimular que todos os sem-terra se alfabetizassem, portanto, que dominassem a escrita para avançar em conhecimentos, sendo a tarefa de alfabetização uma tarefa política; e estabelecer uma proposta de EJA para o MST derivada do direito de acesso à alfabetização (MST, 2004).

O primeiro curso de formação de educadoras e educadores de jovens e adultos foi realizado em 1991, dedicado a preparar alfabetizadoras e alfabetizadores, até então chamados de monitoras e monitores, para atuação em um projeto de alfabetização nos assentamentos do Rio Grande do Sul. Esse projeto foi financiado por meio de um convênio entre o Instituto Cultural São Francisco de Assis (ICSFA) e o Ministério de Educação e Cultura (MEC), que durou até 1993 e envolveu cem turmas de alfabetização, por um período de dois anos. Foi lançado em 25 de maio de 1991, no Assentamento Conquista da Fronteira, no município de Hulha Negra, a aproximadamente 380 km da capital, Porto Alegre, e contou com a presença de Paulo Freire (MST, 2004). A visita de Freire é um marco na história da educação do MST, pois foi a única visita do patrono a um assentamento. Na ocasião, ele foi acompanhado de Ana Maria Freire, sua esposa, e Ester Grossi, então secretária de Educação de Porto Alegre. Rita Zanotto relata (Camini & Stédile, 2021, p. 5):

Trazer Paulo Freire para dentro de um assentamento, com a proposta de com ele seguir transformando, foi um sonho alimentado nos processos de formação, na leitura de seus livros, de seus textos que foram dando fundamento à ação. Foi complicada sua chegada naquelas longínquas terras de difícil acesso, onde não havia estradas transitáveis em dias de chuva. Em 25 de maio de 1991, chegou a Bagé e não havia formas de ir até ao assentamento Conquista da Fronteira. Com esta dificuldade, pensamos em fazer o ato no então Distrito de Hulha Negra, mas entendemos que não poderíamos negar a tantos assentados, que esperavam conhecer Paulo Freire, que prepararam a infraestrutura no único galpão que se dividia entre a produção e a criação de um espaço para acolher a comunidade. Fazer lá na Vila seria negar a eles e elas a oportunidade de encontrar Paulo Freire, o grande educador.

A partir desse relato, percebemos o quanto os escritos e as reflexões teóricas de Paulo Freire foram referência nesse processo, reafirmando a pedagogia freiriana como uma das principais vertentes teóricas das quais o MST e suas educadoras e educadores se apropriaram para pensar o processo de alfabetização. A metodologia que se torna referência para alfabetização vem dos temas geradores sistematizados em Pedagogia do oprimido (Freire, 1987).

Ainda sobre a visita de Freire, relatos históricos apontam que 25 de maio de 1991 foi um dia muito chuvoso, em que as estradas estavam com muita lama e atoleiros. Quando Freire chegou ao município de Hulha Negra, perguntaram a ele se estaria disposto a enfrentar o desafio da estrada em más condições, ao que respondeu: “Mas, eu que escrevi Pedagogia do oprimido, como é que eu não vou lá onde os oprimidos escrevem a sua pedagogia?” (Camini & Stédile, 2021, p. 5). Para a chegada de Paulo Freire, os assentados tiveram de consertar uma ponte, e, por conta da lama, o carro que o transportava atolou. Imediatamente os sem- -terra “de plantão” na estrada engataram o carro a um trator, garantindo assim a chegada à sede do assentamento. Nesse encontro histórico, Paulo Freire ouviu o educador Lucas Cupsinski proferir um discurso em nome dos alfabetizadores. Freire o relembrou no depoimento gravado para o MST em 1996:

Eu nunca me esqueço de uma frase linda de um educador, alfabetizador, um camponês sem-terra, de um assentamento enorme no Rio Grande do Sul aonde eu fui: um dia pela força de nosso trabalho e de nossa luta cortamos os arames farpados do latifúndio e entramos nele, mas, quando nele chegamos, descobrimos que existem outros arames farpados, como o arame da nossa ignorância. (MST, 2020, p. 112).

Acreditamos que a expressão “ocupação do latifúndio do saber” aponta uma relação figurada para compreender o papel de ocupar a terra, mas também ocupar o latifúndio do conhecimento, no sentido de ser mais uma das dimensões negadas à classe trabalhadora. Essa compreensão foi sendo carregada, referenciada no conjunto dos materiais e elaborações do MST, no sentido de explicar para os sem-terra que não sabem ler e escrever que esse não é um problema de sua individualidade, mas uma questão sistêmica que precisa ser enfrentada, superada por meio da luta das trabalhadoras e trabalhadores. No discurso proferido por Paulo Freire, direcionado aos camponeses assentados, entre vários elementos de valorização da luta, ele frisou a importância do acesso ao conhecimento como um direito:

Essa tarde marca o começo mais sistematizado de um grande processo de luta, que é um processo político, que é um processo social e que é também um processo pedagógico. O que hoje se inicia tem a ver com dois direitos fundamentais entre outros, que poucos têm e por que têm que brigar. O direito a conhecer o que já conhece, e o direito a conhecer o que ainda não conhece. Esses dois direitos, o domínio da cultura, do domínio do saber, que imbricam necessariamente no direito de comer, o direito de dormir, o direito de sonhar. Esse primeiro direito, conhecer melhor o que já conhece, tem que ver com o que a gente chama de saber popular, sabedoria popular ao lado do saber que a gente chama de saber erudito, o saber acadêmico, saber científico. São aqueles dois saberes que a canção cantada aqui se referia com relação a caneta e enxada. E foi dito aqui como uma verdade histórica que desde o começo esses dois saberes representados pela caneta de um lado e a enxada de outro foram divididos, separados pela burguesia. E esses dois saberes precisam complementar-se. Então saber o que já conhece significa também saber a prática, por exemplo a prática de produzir, a prática de pensar, que está sempre associada à prática de fazer. Essa prática em todos nós gera certo saber, gera um certo conhecimento, uma certa sabedoria, essa prática é uma prática social. (“Educar para liberdade”, Jornal Sem Terra, n. 107, set. 1991, p.8.)

Para Freire, conhecer melhor o que já conhece, o que ele chama de saber popular, é importante, por isso aponta o método de alfabetização que parte de palavras geradoras “colhidas” da realidade. Mas ele também se refere ao saber científico, que são os conhecimentos ensinados pela escola e pela universidade (saber acadêmico), que são os conteúdos que precisam se complementar. Essa junção seria importante, pois se conectaria à prática social. Nas elaborações em cadernos e cartilhas do movimento nessa época foi assumido o tema gerador como orientação metodológica para a EJA e as escolas. Nesse sentido, a metodologia é compreendida como forma de ensinar partindo da realidade (da prática), definindo assim o problema da realidade (situação-limite) abordado como assunto para o estudo e o trabalho integrado entre as várias disciplinas. Essa metodologia se baseia numa concepção que liga ensino e prática, garantindo a relação entre teoria e prática, acreditando que o resultado da reflexão levaria à transformação da realidade, isto é, uma prática concreta (mst, 2005). A concepção de realidade assumida inicialmente está sistematizada no primeiro número da publicação Caderno de Educação, intitulado “Como fazer a escola que queremos”, publicado em 1992, que descreve a concepção de realidade da seguinte forma:

Realidade é o meio em que vivemos. É o nosso trabalho. É a nossa organização. É a natureza que nos cerca. São as pessoas e o que acontece com elas. São os nossos problemas do dia a dia e também os problemas da sociedade que se relacionam com nossa vida pessoal e coletiva. (MST, 2005, p. 51).

Evidenciamos que a compreensão explicitada é a de que a realidade deveria ser estudada para que o ensino estivesse ligado com a vida das crianças e com as necessidades concretas — suas, de seus pais, de sua comunidade. Outro elemento é que os conhecimentos serviriam para compreender o mundo em que vivem, o entorno de sua escola, da sua família, do assentamento, do município, do movimento, do país, para que participassem da busca por soluções aos problemas que o mundo apresenta.

Contribuição da pedagogia freireana na luta e na construção da pedagogia do povo sem-terra

A pedagogia de Paulo Freire, especialmente as elaborações da obra Pedagogia do oprimido (Freire, 1987), deu ao MST a oportunidade de reconhecer a necessidade de fazer a luta com o povo pelo direito à educação, mas também de reconhecer a necessidade da construção de uma pedagogia a serviço dos interesses do povo. A pedagogia do oprimido serviu como referência para pensar o papel da educação das trabalhadoras e trabalhadores, mas também para a compreensão da necessidade de construção da própria pedagogia do movimento. Esta talvez seja a maior contribuição de Paulo Freire ao MST: fornecer reflexões sobre o papel da educação na libertação dos oprimidos, tendo como pressuposto o necessário protagonismo das trabalhadoras e trabalhadores, do povo, no processo de transformação social. Suas formulações, escritas no calor na luta contra a ditadura, inspiraram a formação dos militantes e lideranças que atuaram no período de gestação do MST. Segundo Camini e Stédile (2021, p. 2):

Nas conversas e nos encontros, momentos em que a militância se dava a conhecer pelas suas histórias e pela troca de conhecimentos, se faziam referências à sua obra Pedagogia do oprimido, que já circulava amplamente e se tornou um clássico. E foi muito importante o acesso que tivemos à época, ao texto, ainda mimeografado e em espanhol, que Paulo Freire havia construído coletivamente com a experiência do trabalho político na Reforma Agrária chilena. Texto que depois foi publicado como livro também no Brasil, Extensão ou comunicação?, e continua muito lido até hoje. Foi naquele momento um precioso guia para repensarmos a forma do trabalho pedagógico com as famílias camponesas, chamado de “extensão rural”, e partindo de uma experiência concreta feita com camponeses chilenos.

A pedagogia do oprimido não se apresentava como uma teoria a ser seguida, implantada; se apresentou como a união da teoria e da prática, pois se afirmava como uma pedagogia do ser humano engajado na luta por sua libertação. Dessa forma, o ato de educar é um ato coletivo, a tarefa da educadora/educador e educanda/ educando é atuar nessa realidade para transformá-la. Ou seja, transformar a sociedade capitalista fundamentada no processo de desumanização do ser humano, resultado de uma ordem construída historicamente, fundada nos pilares da injustiça, da discriminação e da violência. “A pedagogia do oprimido é do oprimido, não para ele, ou seja, é forjada com ele e não para ele, em uma luta permanente de recuperação de sua humanidade” (Freire, 1987, p. 32).

No Jornal Sem Terra de 1989, encontramos uma entrevista de Paulo Freire intitulada “Educar é um ato político”, na qual ele ressalta que “a educação não é alavanca da transformação social, a educação deve ter um conteúdo de classe, a educação não é, nunca foi e não será neutra, a educação é sempre um ato político” (“Educar é um ato político”, (Jornal Sem Terra, n. 81, mar. 1989, p. 16). Uma das principais contribuições de Freire ao MST é a compreensão da educação como instrumento de luta: “a educação deve ser pensada do ponto de vista dos trabalhadores com vistas à transformação”. Na dimensão metodológica, ele indica como fazer a educação na perspectiva libertadora, em suas palavras:

A formação se baseia na reflexão sobre a prática que os componentes de um determinado grupo têm, por exemplo, você discute com grupo de camponeses sua experiência de luta ou a própria experiência de trabalho. Da reflexão do cotidiano da vida de um grupo de camponeses, é possível discutir a prática individual e social dos formandos, a partir daí se discutem por exemplo as classes sociais, as formas de exploração do trabalhador e outros fatores presentes na vida dos camponeses. Insisto que a melhor forma de fazer formação é propor a quem está se formando uma análise sobre que faz, e é analisando o que se está fazendo que se descobre a teoria que está escondida na prática e nem sempre é percebida.

A metodologia presente em Freire indica que a formação deve partir da reflexão sobre a luta pela terra ou a forma de trabalho, para ir desvelando as situações de opressão. Em relação ao papel das educadoras e educadores, Freire nessa entrevista fala da importância de se engajarem na luta das trabalhadoras e trabalhadores e de não terem uma postura autoritária:

Outra coisa que muda é a compreensão da relação educador-educando. Numa perspectiva autoritária o educador é proprietário do conhecimento. Numa perspectiva democrática revolucionária o educador não é dono do conhecimento. O educando não é considerado incompetente, o educando é considerado possuidor de um conhecimento, um tipo de saber pouco rigoroso em face do saber do educador. Portanto, é tarefa do educador partir de como o educando conhece e avançar para um conhecimento mais rigoroso.

Freire encerra a entrevista falando da compreensão de escola pública popular que está a serviço do povo. É muito importante perceber como esses elementos sedimentaram a consciência da luta pela educação e a construção da pedagogia do MST, formulações estas presentes nas elaborações iniciais da educação no movimento. Freire e sua pedagogia se tornam compreensíveis aos olhos dos sem-terra, que entendem que a luta pela terra é a luta pela libertação, então colocar a alfabetização e a escolarização como aliadas desse processo seria a tarefa do movimento.

A pedagogia do oprimido é a pedagogia dos seres humanos que se empenham na luta por sua libertação, é a pedagogia dos sem-terra na luta pela terra, por intermédio da práxis revolucionária, portanto é uma pedagogia da luta concreta das trabalhadoras e trabalhadores. Ela não é a pedagogia da passividade, é de ação, luta, organização, pois a liberdade é uma conquista, não um presente da classe burguesa; uma conquista que exige movimentação permanente, mesmo porque, como “seres inconclusos” na busca por “ser mais”, isso demanda necessariamente um conjunto de ações transformadoras. E, na compreensão do MST, não são as ideias que transformam a realidade, mas as ações coletivas, concretas, na luta política, na luta de classes.

A partir das experiências de alfabetização, Freire formula o método do tema gerador como instrumento de investigação da realidade, exigindo uma pesquisa para chegar aos temas geradores. Não se trata apenas de uma metodologia de investigação temática, mas também combina a problematização das situações-limite (situações de opressão) que devem ser desveladas, compreendidas por meio dos temas geradores. A partir dos temas geradores se organiza o processo de alfabetização e escolarização por dimensões significativas da realidade, cuja análise crítica possibilita aos educandos reconhecer a interação de suas partes.

Em síntese, o MST encontra em Freire (1987) elementos para compreender a educação como instrumento de luta e libertação guiadas por uma pedagogia da classe trabalhadora, e encontra pistas, formulações de uma pedagogia crítica e problematizadora da realidade, capaz de desnaturalizar as relações de opressões. Outra concepção importante é a compreensão do ser humano como inconcluso e, consciente de sua inconclusão (estar sendo), em permanente movimento de busca por ser mais, ou seja, a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não algo que se deposita na consciência do outro.

Aponta a dimensão da práxis para a educação, que implica uma relação dialética, portanto sempre criadora, de ação e reflexão das mulheres e homens sobre o mundo para transformá-lo. Essa formulação também aponta para a construção de uma pedagogia coletiva que não se formula sozinha, mas indica a necessidade de ser tecida em diálogo com outras companheiras e companheiros de projeto histórico. Entretanto, as trabalhadoras e os trabalhadores devem ser protagonistas dessa construção, ou seja, a pedagogia não é para o oprimido, mas sim do oprimido: e não é para o MST, e sim a pedagogia do MST.

Referências

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. 3a ed. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

CALDART, Roseli Salete & SCHWABB, Bernadete. “Nossa luta é nossa escola: a educação das crianças nos acampamentos e assentamentos”, Caderno de Educação, n. 13, edição especial, 2005 (publicado originalmente em Fundep/der e mst/rs, 1990).

CAMINI, Isabela & STÉDILE, João Pedro. “O encontro de Paulo Freire com o MST”, Jornada Paulo Freire 2021 — Centenário do nascimento de um educador do povo. Subsídio para Estudo, n. 1, 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

HADDAD, Sérgio. O educador: um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019.

MARIANO, Alessandro Santos. Ensaios da escola do trabalho no contexto das lutas do MST: a proposta curricular dos ciclos de formação humana com complexos de estudo, nas escolas itinerantes do Paraná. Dissertação (Mestrado em Educação). Guarapuava: Unicentro, 2016.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). “Educação de jovens e adultos: sempre é tempo de aprender”, Caderno da Educação, n. 11, 2004.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). “Dossiê MST escola. Documentos e estudos 1990-2001”, Caderno da Educação, n. 13, São Paulo, 2005.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). “Paulo Freire e a pedagogia do trabalho popular”, Boletim da Educação, n. 15, 2020.

*Territórios Freireanos: contribuições de Paulo Freire na luta e na pedagogia do MST integra o livro Paulo Freire e a educação popular: esperançar em tempos de barbárie (Elefante, 2023).

**Alessandro Santos Mariano atua no Setor de Educação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), é doutorando na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: alessandromstpr@gmail.com.

***Eric de Oliveira atua no Setor de Formação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/Espírito Santo (mst/es). Mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: eric.eira.mepes@gmail.com

Edição: Leandro Melito

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