Consórcio da Covid-19: Quando o jornalismo fez (e mostrou) a diferença

Publicado originalmente em ObjETHOS. Para acessar, clique aqui.

Marco Britto
Mestrando no PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS

Foram encerradas no último dia 28 as atividades do consórcio de imprensa para o acompanhamento dos números diários da Covid-19 no Brasil. Durante quase mil dias, entre junho de 2020 e janeiro de 2023, uma redação virtual de jornalistas de veículos concorrentes foi formada para preencher o vácuo informacional sobre a evolução da pandemia, gerado quando o Ministério da Saúde ensaiou a omissão e a manipulação dos dados públicos sobre a doença.

A criação e o funcionamento do consórcio constituem um exemplo potente de uma vocação do jornalismo na sociedade: informar os cidadãos para que eles possam tomar suas decisões. A liga que reuniu as maiores forças da imprensa nacional deixou de lado a disputa econômica para prestar um serviço que hoje já se caracteriza como histórico.

Diariamente, os participantes do consórcio reuniram dados das secretarias estaduais de saúde para levar a público a leitura mais exata possível sobre o quadro da pandemia no país. Foram números que se tornaram essenciais para a definição de muitas questões, seja para prefeitos fecharem ou abrirem comércios, seja para famílias decidirem se fariam festas de aniversário e outras confraternizações.

A pandemia afetou a vida de todos, independente de orientação política e classe social. E este consórcio atendeu todas estas pessoas lembrando a sociedade de que informação é item de primeira necessidade.

Segundo a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), nos dois anos iniciais de pandemia, 314 jornalistas morreram em decorrência da Covid-19, colegas que muitas vezes se expuseram fazendo reportagens em hospitais e outros pontos do front.

O começo da pandemia no Brasil agravou um quadro que já se mostrava crítico: o presidente Jair Bolsonaro mantinha uma rotina de farpas com a imprensa, evitando a comunicação com publicações consideradas de oposição.

Jornalismo reage

Em resposta a esta postura agressiva, ilustrada em casos como o da jornalista Patrícia Campos Mello, que processou o presidente e venceu, o tom da cobertura presidencial foi igualmente subindo o tom das críticas, principalmente na palavra dos colunistas, jornalistas com liberdade maior para proferir opiniões. Virou ringue, e uma velha premissa do jornalismo, de ser imparcial, foi duramente testada quando muitos escolheram de que lado gostariam de estar na história.

A imagem do jornalismo saiu arranhada dessa briga, e colegas foram agredidos fisicamente em manifestações de apoio ao presidente, ou de pautas inconstitucionais como o fim do Supremo Tribunal Federal e uma intervenção militar, que, em outras palavras, significa o fim da democracia. Surgem clichês de ataque à imprensa (não os repetirei aqui), ao mesmo tempo em que sites difusores de desinformação pipocaram como “fonte alternativa” dos fatos no país.

E veio a Covid-19. Brasileiros (e aqui repito) de todas as orientações políticas e classes sociais, começaram a morrer às centenas, milhares diariamente, e a resposta do governo federal foi ensaiar uma “operação abafa”, sequestrando os dados oficiais, mudando horários de divulgação para evitar os telejornais de maior audiência, e por fim, propondo uma “leitura diferente” das informações que mostravam um sistema de saúde em colapso.

Em seguida, ocorreu o primeiro de 965 dias de trabalho do consórcio. Um capítulo importante da história do jornalismo no país, onde brasileiros tiveram garantido o acesso à informação mais preciosa daquele momento. Não se tratava de um número. Se tratava de saber se poderia viajar ou não, dar aquele abraço ou não, redobrar seus cuidados, e claro, se deveria se vacinar.

Este “deveria” trago com simplicidade. Não entro aqui em discussões de negacionismo científico, tema para outro debate, mas procuro destacar a importância do trabalho do consórcio em dar esta oportunidade aos brasileiros, que puderam livremente acessar a informação e tomar a decisão que melhor julgassem. Uma cena que retrata o jornalismo na sua essência, proporcionada por uma força-tarefa que transpôs as barreiras econômicas do mercado da comunicação em nome do interesse público – o que é um feito e tanto.

Nota do objETHOS: nossa pesquisadora Vitória Peraça Ferreira está concluindo uma dissertação de mestrado que documenta o surgimento e o desenvolvimento do Consórcio de Imprensa. A defesa pública está prevista para o final de março.

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