Publicado originalmente em Nujoc Checagem por Ana Regina Rêgo. Para acessar, clique aqui.
A complexidade que envolve o fenômeno da desinformação requer tanto um conhecimento de todas as dimensões que o compõe, quanto das estratégias necessárias para contrapor cada uma delas.
Como se sabe, a mentira é tão antiga quanto a humanidade, o uso de informações falsas, manipuladas ou enganosas em veículos jornalísticos e canais de comunicação também é uma prática secular que teve seu auge nos momentos de crise, guerras e regimes totalitários e ditatoriais do século XX, no ocidente e no oriente, mas não deixou de se fazer presente também em regimes democráticos.
A potência do fenômeno atualmente, entretanto, possui dimensões que o transformam em algo extremamente lucrativo no sentido literal. Se no passado, a mentira e as informações falsas procuravam garantir objetivos pretendidos com a manipulação das massas em termos ideológicos e políticos, hoje, esses resultados permanecem só que acrescidos de outras variáveis e uma delas é exatamente a extrema lucratividade promovida pelas big Techs, o que torna o trabalho diário com desinformação muito mais atrativo, sobretudo, para quem deseja dinheiro em grande quantidade e de modo relativamente fácil. Por outro lado, é válido pontuar que as plataformas também lucram com esse produto paralelo e que negam como pretendido.
A biosvirtual em que estamos mergulhados diuturnamente nos impõe padrões de comportamento nas redes sociais e a um tempo, procura extrair de nós, não apenas dados, informações pessoais e sociais, mas principalmente nosso comportamento como usuários das redes e consumidores potenciais. Essa parte do que é extraído de nós, ou seja, o nosso comportamento no que concerne tanto a movimentos pelo mercado de produtos que desejamos adquirir, como a posicionamentos ideológicos, religiosos e políticos é o conforma o atual grande capital das grandes empresas de tecnologia em nível mundial. O que elas vendem é tanto a nossa atenção, como a nossa ação futura e imediata, para isso, investem no que Shoshana Zuboff denomina de capitalismo de vigilância e que se compõe tanto de grandes mecanismos de vigilância ininterrupta que se estabelece por meio de todos os aparelhos através dos quais nos conectamos virtualmente, como por uma economia da ação, cujos princípios são guiados por um processo holístico de psicometria e cujas ações podem, inclusive, nos levar a mudanças imediatas de comportamento.
Essa realidade em que grande parte da população mundial se encontra inserida ( há que se considerar que uma grande parcela não tem acesso a educação, meios de subsistência e muito menos ao mundo digital) é um dos pilares estruturantes do fenômeno da desinformação, visto que em suas vias nascem e proliferam redes de desinformação que ganham grande poder e relevância, já que seu produto, as famosas fake News, possuem uma potência 70% mais veloz para circular e alcançar um grande público do que uma informação, segundo dados de uma pesquisa de 2018 do Instituto de Tecnologia de Massachussetts nos EUA.
Por outro lado, há que se considerar que no Brasil por exemplo, os últimos dados dão conta de que cerca de 150 milhões de brasileiros ou um pouco mais de 70%, utilizam as redes sociais com frequência, o que nos leva ao terceiro lugar no mundo, como um dos maiores mercados de usuários das plataformas digitais. Quando nos voltamos para as plataformas individualmente, vamos ver que no YouTube que é considerado o maior repositório de desinformação no país, de onde tudo pode ser compartilhado para outras redes, o Brasil ocupa o primeiro lugar. Já no WhatsApp considerado o principal meio de circulação de desinformação que vem de outras redes como YouTube e Instagram, por exemplo, ocupamos a segunda posição em número de usuários.
Todavia, quando a pesquisa foca na faixa etária entre 16 e 24 anos, nosso país volta ao topo do ranking com 92% dos brasileiros acessando alguma rede social.
No que concerne à média diária de horas de uso das redes sociais, o Brasil, onde os usuários ficam cerca de 3h42min online, se mantém na terceira posição perdendo somente para Filipinas e Colômbia, dentre os países pesquisados.
O combate a este cenário de desinformação e completa imersão na virtualidade totalmente comandada pelas plataformas que decidem as leis e as formas de comportamento em seus territórios, assim como, quando e onde nos vender ( já que somos seu principal produto), para os diversos tipos de mercado que atravessam as redes; requer um trabalho de esclarecimento social junto à população, mas também, uma legislação que oriente um processo regulatório que nem transforme o cidadão, visto como usuário pelas big Techs, em fantoche das redes, nem que sobre este cidadão incida condutas voltadas para a censura e controle do Estado.
É nesse sentido que a sociedade civil brasileira através de instituições, pesquisadores e cientistas tem procurado trabalhar junto ao Congresso nos debates sobre o PL 2630/2020 conhecido como PL das fake News, e que embora em sua redação atual traga avanços necessários, ainda mantém questões mal resolvidas e históricas do campo da comunicação no Brasil, como a remuneração para empresas de mídia, o que deve reforçar o peso dos conglomerados e não garante pagamento aos trabalhadores.
Em outro ponto, a redação do PL quando se refere às obrigações dos agentes públicos, termina por restringir a membros do Executivo e Legislativo, mas não engloba Ministério Público, Judiciário, Forças Armadas e Polícias. Além disso, a criminalização de algumas condutas traz riscos e abre margem para abusos na aplicação da futura lei.
É certo, no entanto, que a regulação das plataformas e o combate às fake News devem andar juntos, mas é necessário também outras formas de atuação para que possamos efetivamente contrapor o mercado que trabalha diuturnamente com esse tipo de produto desinformativo.
Há, portanto, que se ter em mente que o mercado da desinformação não somente se aproveita de um sistema que permite que a desinformação prolifere e seja lucrativa, mas também é preciso ter consciência de que as estratégias narrativas utilizadas dão conta de uma morfologia híbrida que trabalha em um mesmo produto, uma mentira completa, junto a um fato que tanto pode vir puro, como descontextualizado temporalmente e/ou espacialmente, como totalmente manipulado. Mas, as estratégias não param por aí, e os engenheiros da mentira também utilizam uma estética, muitas vezes, um tanto grotesca para chamar e prender a atenção dos usuários das redes sociais, sensibilizando-os e levando-os a agir de modo impulsivo, comentando e compartilhando as mensagens que recebem e acessam.
Quando nos reportamos ao campo político, constatamos que muitas vezes tais estratégias são construídas tendo como foco o acirramento das tensionalidades entre os regimes de verdade, da evidência com o da experiência, dos valores e das crenças, procurando assim, despertar o ódio, plantar a dúvida, o desentendimento político e a polarização. O famoso dividir para dominar mais facilmente.
Nesse sentido é que ações do jornalismo de verificação, projetos de divulgação científica, educação crítica para a comunicação e/ou educação midiática se fazem imperiosas para o desenvolvimento do pensamento crítico na população. Contudo, outras frentes ainda se fazem necessárias e uma delas vem através do monitoramento e das pesquisas que tem tanto a desinformação como foco, como a vida nas plataformas digitais. Para além disso, movimentos nascidos entre os consumidores como o Sleeping Giants tem obtido grandes resultados no combate tanto à desinformação, como a discursos de ódio e preconceito, com a desmonetização dos canais e perfis desse mercado.