Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Comportamento | Em meio à crescente de conteúdos misóginos radicalizados na internet, escolas buscam maneiras de abordar a situação entre os alunos
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Poucos cliques no TikTok ou no YouTube já denunciam a gravidade do problema. No topo dos resultados de buscas por termos como red pill, alfa e sigma, vídeos de influenciadores digitais do nicho masculinista ostentam milhares de curtidas e compartilham uma temática que revela um padrão preocupante: comunidades on-line de homens que se apoiam na misoginia radicalizada para disseminar ideais de comportamento masculino ancorados em virilidade, violência e ódio ao feminino. Assuntos que antes se escondiam nos porões da internet, limitados a fóruns de acesso restrito e salas privadas, hoje angariam milhões de visualizações nas principais redes sociais e têm uma legião de seguidores. No olho desse furacão ideológico estão as escolas: com o acesso cada vez mais irrestrito à internet por crianças e adolescentes e a ampla disseminação desse tipo de conteúdo, impedir que o ambiente escolar se torne terra fértil para a propagação desses ideais entre meninos em idade de formação tornou-se uma preocupação.
Para a pesquisadora Michele Prado, autora do livro Redpill – radicalização e extremismo, evitar que esses ideais atinjam garotos em idade escolar com acesso não monitorado à internet é uma tarefa quase impossível. “Antes o conteúdo extremista ficava muito restrito a determinados blogs e sites, mas hoje está totalmente disseminado no debate público”, explica. Além disso, a necessidade de adequação e de pertencimento a um grupo, sentimentos que permeiam a infância e a adolescência, tornam meninos nessa faixa etária mais suscetíveis de serem atraídos e cooptados pela ideologia masculinista radicalizada. “Crianças e adolescentes muitas vezes ainda não têm uma base teórica que lhes sustente e permita resiliência perante determinados conteúdos extremistas”, alerta a pesquisadora.
As consequências do aumento exponencial da produção de conteúdos extremistas e seu consumo por crianças e adolescentes se traduzem em dados alarmantes. Segundo relatório do Instituto Sou da Paz, de 2002 a 2018, o Brasil registrou sete ataques violentos a escolas. Apenas entre 2019 e maio de 2023 foram 17. Muitos dos autores dos ataques propagavam conteúdos radicalizados e idolatravam outros perpetradores do mesmo tipo de ação nas redes sociais antes do cometimento dos crimes. Para o professor da Faculdade de Educação da UFRGS e coordenador do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, Fernando Seffner, o vínculo entre os fatores é claro — e estarrecedor.
“Há mecanismos sociais muito fortes envolvidos nisso e, se providências não são tomadas, eles vão crescendo, e as coisas extrapolam limites com atos de violência cada vez maiores”
Fernando Seffner
Reflexos da radicalização
Do outro lado do dilema do extremismo misógino, as estudantes mulheres e aqueles pertencentes a outras minorias — sejam elas raciais, religiosas ou relativas à orientação sexual e de gênero — se tornam as principais vítimas. “A escola é produzida pela cultura que nos forja enquanto sujeitos de gênero”, explica o professor da Faculdade de Educação Física da UFRGS e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Relações de Gênero, Educação e Violência, André Luiz dos Santos Silva. Para ele, a escola é um espelho da sociedade, e não uma bolha que não se afeta por fatores externos. Isso significa que quaisquer preconceitos e discriminações presentes na sociedade também se manifestarão no ambiente escolar.
Práticas intrínsecas à cultura escolar, reforçadas por figuras de autoridade como professores, coordenadores e diretores, também podem ajudar a perpetuar ideais misóginos entre os alunos. Costumes como separar os meninos das meninas nas aulas de educação física, por exemplo, partem de um pressuposto de fragilidade feminina e superioridade masculina no que diz respeito às atividades físicas e dificultam que as estudantes meninas desenvolvam suas habilidades esportivas no mesmo ritmo que os meninos, podando suas potencialidades e as privando de oportunidades.
De acordo com André, o desmantelamento da cultura misógina no ambiente escolar é atravessado por muitos fatores importantes, mas o maior deles é o entendimento das demandas específicas de cada escola pela equipe pedagógica. Para que as estratégias adotadas funcionem, é imprescindível que sejam levadas em conta as diversidades racial, religiosa e de gênero presentes no ambiente escolar e que as famílias dos estudantes sejam incluídas no processo.
“A gente precisa ver o que vale e o que não vale pra cada um desses espaços, e o contato com a comunidade escolar é fundamental para escolher as estratégias mais acertadas”
André Luiz dos Santos Silva
Construindo novas possibilidades
Foram muitos os alunos da professora de sociologia do Colégio de Aplicação, Katiuci Pavei, que se mobilizaram para que os debates acerca das relações de gênero fossem levados para dentro das salas de aula da escola onde cursam o ensino médio na modalidade Ensino de Jovens e Adultos (EJA), mas foi o relato de um estudante em específico que inspirou a educadora a acatar os pedidos.
“Ele disse que tinha sido criado pensando que ser homem era uma coisa, mas, conversando sobre o assunto na escola, estava se dando conta de outras possibilidades de viver, agir e pensar de uma forma que respeite mais as mulheres”, conta. A professora ainda ressalta que a demanda de abordar o assunto com mais profundidade partiu de estudantes tanto homens quanto mulheres: os homens, enquanto agentes do sistema que os coloca em uma posição de privilégio, e as mulheres, enquanto suas principais vítimas — todos em busca de maneiras de construir possibilidades que desviem do caminho da masculinidade tóxica.
Katiuci acredita ainda que a discussão sobre os conceitos de masculinidade e as relações de gênero na escola não acaba na sala de aula, mas é levada a outros patamares e potências por meio da conscientização e da participação dos alunos.
“É importante principalmente para incentivar as masculinidades positivas e colocar em discussão um projeto de desconstrução das masculinidades que são tóxicas”
Katiuci Pavei
Contracorrente
Apesar da aceitação positiva por parte dos alunos de Katiuci, os debates sobre as relações de gênero e os direitos femininos em sala de aula, que já estão inclusos no currículo da equipe do EJA do Colégio de Aplicação e de muitas outras escolas, sofrem com esforços para que o tema não seja abordado no ambiente escolar. De acordo com um relatório da Human Rights Watch, entre 2014 e 2022 foram apresentadas mais de 200 propostas legislativas que visavam proibir a educação acerca das relações de gênero e sexualidade nas escolas no Brasil.
“Existe um contexto social de recrudescimento do conservadorismo que tem tentado impedir esse tipo de debate”, afirma André. Ele ressalta, no entanto, que existe respaldo legal para que o tópico seja levantado em sala de aula. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) garante o ensino de conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todos os tipos de violência contra a mulher. Além disso, foi aprovada, em 2022, uma lei que criou a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher em escolas públicas e privadas de todo o país.
O professor Fernando, contudo, sinaliza que, apesar dos avanços positivos no âmbito legal, a maioria das iniciativas de combate às ideologias radicalizadas nas escolas parte de esforços individuais dos professores, e não de políticas sociais robustas e eficazes. “A política pública não aporta dinheiro, não dá apoio, não se envolve”, explica.
É nesse cenário conturbado, que mistura esforços de progresso com expressivas investidas na direção contrária, que as escolas se equilibram entre os perigos da radicalização misógina e as tentativas de combate e prevenção às violências geradas pelo extremismo. Os educadores, nesse meio tempo, seguem enquanto peças fundamentais no embate à cultura extremista e na criação de novos modos de pensar e agir num mundo que apresenta possibilidades hostis, mas também aquelas inovadoras e surpreendentes. “Eles fazem coisas muito importantes e que precisam ser ampliadas e incentivadas”, pontua Fernando.