Como enfrentar os casos de adoecimento no trabalho?

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.

Sociedade | Projetos apontam diferentes caminhos para combater os casos de doenças relacionadas ao emprego, que ainda são subnotificados e estigmatizados

*Foto: Peter Ilicciev/Fio Cruz

Foi em setembro de 2023 que o então balconista de farmácia Rick Azevedo expressou em um vídeo no TikTok seu descontentamento com a escala de trabalho 6×1, que consiste em seis dias consecutivos de trabalho seguidos por um dia de folga. Radicado no Rio de Janeiro, o tocantinense de 30 anos já publicava vídeos sobre temas diversos na rede social há algum tempo, mas foi a publicação pedindo a extinção da escala 6×1 que o tornou conhecido no ambiente digital, fez sua conta disparar no número de seguidores e plantou a semente que se tornaria o Movimento Vida Além do Trabalho (VAT).

Hoje, a postagem já conta com quase 890 mil visualizações e mais de 110 mil curtidas, e Rick já possui mais de 245 mil seguidores somados no TikTok e Instagram, onde segue levantando a pauta. “Eu postei o vídeo sem intenção alguma”, explica. “Não esperava essa repercussão, mas aconteceu e eu percebi que precisava fazer alguma coisa.”

Após o vídeo viralizar no TikTok e em outras redes sociais, como o X e o Instagram, Rick percebeu que existia uma demanda de trabalhadores empregados na escala 6×1 pela redução na jornada de trabalho e um melhor balanceamento entre vida pessoal e profissional.

“Pessoas que trabalham nessa escala muitas vezes não têm tempo de estudar, fazer um curso de inglês, se preparar pra entrar na faculdade”

Rick Azevedo

Foi nesse cenário que ele teve a ideia de criar uma petição pedindo por uma revisão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que reavaliasse a existência da escala 6×1. A petição já conta com mais de 700 mil assinaturas e tramita no Congresso Nacional.

Além das demandas relacionadas à escala 6×1, a petição também pede a criação e a fiscalização da garantia de políticas de proteção ao trabalhador, como a licença parental e a limitação de horas extras. O movimento, que conta com núcleos em diversos estados brasileiros, também realiza manifestações e panfletagens em algumas cidades do Brasil para disseminar suas ideias para mais pessoas.

Rick ainda aponta que a escala 6×1 e outras partes da cultura trabalhista vigente contribuem para o adoecimento de empregados. “Não temos tempo pra ver nossas famílias, nem condições de pagar uma terapia”, afirma. “É também um recorte socioeconômico quando falamos da escala 6×1.”

Homem de cabelo grisalho, camiseta escura e bermuda branca aparece de costas no meio de avenida movimentada. Ele está segurando objetos, que aparecem cabos de celular, enquanto há carros em sua volta passando. Na sua frente está uma moto com duas pessoas, e a imagem está sendo refletida por um retrovisor de carro.
Além do trabalho em que há uma empresa por trás do empregado, existem aqueles que estão nas ruas, trabalhando de forma informal, sem direitos trabalhistas ou folgas. E para eles, existe o mesmo adoecimento trazido pela jornada de trabalho exaustiva, além da urgente necessidade de leis trabalhistas que os contemplem. (Foto: Vinícius Marinho/Fio Cruz)
Casos de adoecimento no trabalho são subnotificados

Segundo o Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho, divulgado pelo Ministério da Previdência Social, o Brasil registrou mais de 648 mil casos de acidentes e adoecimentos relacionados ao trabalho em 2022. Apesar dos altos números, segundo a psicóloga e professora no Centro de Documentação, Pesquisa e Formação em Saúde e Trabalho (CEDOP) da UFRGS Mayte Amazarray, existe uma subnotificação de todos os tipos de acidentes e adoecimentos trabalhistas no país, problema multifatorial e de difícil solução.

“Muitas vezes, os diagnósticos não cogitam que aquilo possa estar relacionado ao trabalho”

Mayte Amazarray

Ela ainda destaca que, por conta do estigma atrelado ao adoecimento trabalhista, pode haver uma iniciativa do próprio empregado de esconder sua condição da empresa. “Por conta do medo de retaliação, de ser demitido, de sofrer algum tipo de segregação no trabalho, eles escondem.”

Além de prejudicar os empregados, que são afetados individualmente, a baixa notificação desses casos também impossibilita a criação e o reforço de políticas públicas adequadas para o combate dessas ocorrências no local de trabalho. “A partir do momento em que reconhecemos que aquele adoecimento está relacionado ao trabalho, também reconhecemos alguns direitos que as pessoas têm”, explica Carlota Brum, médica trabalhista e coordenadora do programa Caminhos do Trabalho na UFRGS. O projeto, iniciado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), visa identificar e oferecer amparo jurídico e tratamento médico e psicológico a trabalhadores afetados por acidentes de trabalho e adoecimento ocupacional, e já conta com núcleos ativos em nove universidades federais.

Adoecimento psíquico no trabalho ainda é estigmatizado

Em 2022, foram mais de 11 mil casos notificados de afastamento do trabalho por condições ligadas à saúde mental do empregado, como depressão, ansiedade e bipolaridade. Entretanto, assim como ocorre com o adoecimento físico, esses números provêm de uma subnotificação sintomática. Tratando-se de saúde mental, no entanto, esses dados podem ser impactados ainda mais profundamente pelo forte estigma ligado ao adoecimento psíquico, adversidade que também perdura dentro dos ambientes de trabalho.

Para Mayte, é importante lembrar que a saúde mental e física do trabalhador andam juntas e frequentemente são influenciadas pelos mesmos fatores. “Muitas vezes as causas do adoecimento físico ou psíquico vão ser as mesmas”, reforça. “Algum trabalhador pode adoecer do corpo das mesmas causas que um outro colega vai adoecer da mente.”

Já segundo o professor da Faculdade de Administração da UFRGS Cláudio Mazzilli, existe uma inferiorização dos impactos e consequências das doenças psíquicas em relação às enfermidades físicas na cultura do trabalho. “Acham que qualquer pessoa pode ter depressão, ficar afastado algum tempo, fazer tratamento clínico e depois voltar, quando não é o caso”, aponta. “É preciso que exista um apoio pra esse trabalhador se reinserir no mercado após a sua volta”, afirma.

Cláudio ainda reforça a importância da capacidade de encontrar prazer no trabalho para uma diminuição nos níveis de adoecimento. “É preciso encontrar uma ressonância simbólica em relação ao que se faz”, explica. “Dessa maneira, é possível ter uma relação harmoniosa ou, pelo menos, equilibrada com a organização.”

Empresas devem investir na saúde dos trabalhadores

Além de iniciativas como o Movimento VAT e o Caminhos do Trabalho, o Movimento Abril Verde, criado pelo Ministério do Trabalho do Governo Federal, busca trazer visibilidade à prevenção de acidentes e adoecimentos trabalhistas e à possibilidade de criação de uma cultura de saúde que permeie todo o ambiente empregatício.

No entanto, para Cláudio, apesar da inegável importância desses movimentos, ainda é fundamental que as empresas reconheçam seu papel na manutenção de uma cultura tóxica de trabalho e identifiquem caminhos para uma mudança.

“As empresas devem sempre combater o assédio e as exigências absurdas em relação à produtividade e à multifuncionalidade”

Cláudio Mazzilli

Além disso, Mayte reforça que a prevenção através da criação de ambientes mais saudáveis de trabalho é sempre a melhor estratégia. “É sempre bom investir nisso e, caso ocorra o afastamento mesmo assim, é importante que existam políticas de apoio no retorno ao trabalho”, reforça.

Cláudio também fortalece a importância da conscientização dos trabalhadores quanto aos seus direitos e da capacidade de balancear a vida dentro e fora do trabalho. “O que nós temos a oferecer à organização é o nosso trabalho, nossa capacidade produtiva. Mas não é a nossa vida”, afirma. “E nós temos os direitos de sermos tratados como qualquer ser humano, com dignidade, respeito e atenção às leis trabalhistas.”

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