Clubes sociais negros são símbolos de resistência e união

Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.

Ciências Sociais | A partir do resgate da história do Clube Gaúcho, de Caxias do Sul, dissertação de mestrado buscou entender de que forma esses espaços promovem visibilidade, sociabilidade e acolhimento à população negra

*Arte: Paulo Corrêa, recorte da obra Resistência. Técnica mista. Acervo Museu de Arte do Rio Grande do Sul.

Durante o mestrado em Museologia e Patrimônio na UFRGS, a historiadora, professora e museóloga Fabiana Ferreira Santos tinha uma missão: visibilizar e preservar o patrimônio cultural negro da cidade onde nasceu, Caxias do Sul. Mulher negra e mãe de dois filhos, Fabiana se dedicou a investigar a presença histórica da comunidade negra em uma cidade predominantemente associada à imigração italiana.

A experiência de pessoas negras em Caxias é marcada por movimentos de muita luta, resistência e enfrentamento às condições de opressão. Em um processo contínuo, por meio de diversas organizações, no pós-abolição a população negra local consolidou múltiplas estratégias de sobrevivência, como a criação de clubes sociais. Assim, o trabalho de Fabiana buscou investigar como o Sociedade Recreativa e Cultural Gaúcho (ou Clube Gaúcho, como é conhecido) promove a visibilidade da população negra na sociedade caxiense. 

A trajetória acadêmica e profissional de Fabiana começou com o sonho de ingressar na universidade, algo que parecia distante devido às barreiras sociais. Quando soube que o Clube Gaúcho, uma instituição criada pela comunidade negra local, oferecia cursos pré-vestibulares gratuitos para pessoas negras, viu nisso uma chance. “Minha mãe e eu nos inscrevemos, e foi o primeiro contato que tive com o clube”, relembra.

Esse contato inicial plantou a semente para o trabalho de resgate e valorização da história afro-brasileira de Caxias do Sul. Ao frequentar o Museu Municipal durante um estágio e depois como professora, Fabiana percebeu a ausência de representatividade negra nos acervos históricos locais. “A nossa história não estava no museu”, observa. Isso a motivou a estudar o Clube Gaúcho, fundado em 1934 como um espaço de lazer e de apoio para a população negra, que era excluída dos clubes frequentados pela elite branca.

Para a pesquisadora, o Clube Gaúcho vai muito além de um espaço de recreação; ele é um símbolo de resistência e união. Criado por militares e apoiado por mulheres da comunidade — conhecidas como “Margaridas” —, o clube representa um esforço coletivo para garantir espaços de encontro e apoio mútuo.

Baile das Rainhas no Clube gaúcho, sem data (Fonte: Acervo Centro de Memórias Câmara Municipal de Caxias do Sul – CMCMCS)

Inspirada nas histórias de antigas frequentadoras, a dissertação também buscou valorizar o papel das mulheres negras na manutenção e na defesa da instituição. A pesquisadora relembra, emocionada, o encontro com Vera, uma antiga frequentadora, que trouxe um álbum de fotos e reviveu memórias afetivas de tempos de festividades e lutas. Fabiana conta que sentiu que havia muito carinho pela memória e que as histórias de dona Vera a transportavam aos momentos de festas, reuniões e bailes, que fortaleciam os vínculos entre a comunidade.

Com um sentimento de pertencimento e nostalgia, Vera descreveu à pesquisadora a preparação para os bailes e a emoção de usar vestidos e sapatos especiais.

“Tinham aquelas festas que eram para a população negra se fortalecer. Eu lembro quando as entrevistadas falaram sobre os bailes. Havia um ritual, não era apenas colocar um vestido; havia toda uma organização para que todas as meninas e mulheres tivessem um vestido adequado. Se não tivessem, elas o emprestavam entre si. Também traziam a questão do cabelo. Foi muito significativo entender o dia a dia delas dentro do clube”

Fabiana Ferreira dos Santos
Baile de coroação da rainha Eunice Ribas e princesas Regina Machado e Zenaide Ribas, sem data (Fonte: Acervo CMCMCS)
Debutantes no Baile Gala, sem data (Fonte: Acervo CMCMCS)
Maria Aparecida – Rainha Clube Gaúcho, 1968 (Fonte: Acervo CMCMCS)
Maria de Lurdes Ribeiro e João Ribeiro em baile de gala no Clube Gaúcho, sem data (Fonte: Acervo CMCMCS)

O estudo constatou que o clube acionou diversas estratégias para se firmar socialmente, mantendo-se ativo e relevante para a comunidade. Além disso, foi identificado que, no passado, existiram outros clubes sociais negros na mesma cidade, evidenciando a importância do associativismo negro como uma ferramenta de união e apoio para a população afro-brasileira. Esses espaços cumpriram, ao longo dos anos, o papel de fortalecer a identidade e os laços comunitários em um contexto de enfrentamento ao racismo.  

Para a pesquisadora, porém, o trabalho está longe de terminar. Ela pretende realizar uma ação educativa que vise à valorização e à promoção de uma Educação para as Relações Étnico-Raciais, com base no patrimônio cultural negro identificado durante o estudo. A proposta tem como objetivo contribuir para a construção de uma sociedade mais inclusiva e consciente das contribuições históricas e culturais da população negra. Fabiana acredita que a criação de um museu voltado à cultura negra na cidade é essencial para reforçar a presença da comunidade e celebrar seu legado. 

Este é o propósito de Fabiana: não apenas manter viva a história do Clube Gaúcho, mas também assegurar que as próximas gerações de crianças negras em Caxias do Sul possam ver a si mesmas representadas na história da cidade. “Quero construir uma educação que integre esse patrimônio e que o Clube Gaúcho seja uma referência nesse trabalho. Pretendo realizar roteiros culturais e educativos, para que os estudantes conheçam e vivenciem esse patrimônio, levando-os pela cidade para entender e ver que fazemos parte dela.”

O trabalho completo está disponível no Lume – Repositório Digital da UFRGS.

À esquerda, sede do Clube Gaúcho na década de 50; à direita, a sede atual (Fotos: Acervo SRCG)

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