Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Cultura | A história do audiovisual nacional e pérolas esquecidas são apresentadas às novas gerações por meio de perfis focados em edits, montagens e memes
*Foto: pelo computador, é possível ter acesso aos milhares de conteúdos do cinema nacional, disponibilizados em redes sociais
como o ‘Tiktok’ e o ‘X’ (antigo Twitter), porém, em uma tela maior. (Foto: Marcelo Pires/JU)
Me apaixonei pela Fernanda Torres no terceiro dia de janeiro de 2024. Com 20 anos de idade, tive, pela primeira vez, contato com o filme que agraciou à atriz sua primeira Palma de Ouro: “Eu sei que vou te amar”.
Esse primeiro contato se deu por um edit que viralizou nas redes sociais. Um edit nada mais é do que uma montagem de imagens e/ou vídeos geralmente acompanhada de uma trilha sonora. É, por si só, um material audiovisual, construído a partir de outras produções.
O autor dessa montagem que menciono, da Fernanda Torres em “Eu sei que vou te amar”, é o paraense Lu, editor e animador freelance de 19 anos, administrador do perfil @scfimoon no X, Instagram e TikTok. O primeiro contato de Lu com edits foi em 2018: “Uma amiga me mostrou, e era muito bobo, era uma trend [conteúdo que ganha popularidade nas redes sociais por um período de tempo] na época [que se chamava] ‘heart edit/heart vine’, mas aquilo me fascinou de um jeito que no mesmo dia eu tentei fazer igual, e foi daí que eu me descobri na edição”.
Um fenômeno digital
Ir ao cinema não é um costume de Lu, visto que, há três anos, o único da cidade onde mora fechou. No entanto, o cinema brasileiro participa da vida do editor desde muito cedo: “eu sempre tive um contato, mas com o que chegava pra mim, que eram aquelas comédias da Globo Filmes, mas eu amava”. Foi em 2022 que Lu começou a ir atrás de outros filmes nacionais, começando pelos mais famosos até encontrar os menos conhecidos: “Eu estava descobrindo os filmes. Observava que eram pouco comentados, e minha única forma de poder chegar em mais gente eram os edits”.
O acesso a muitas das obras nacionais que o editor vem conhecendo desde 2022 se deu por comunidades na internet que, de alguma forma, disponibilizavam essas produções audiovisuais: “Eu sempre tive que me virar pra ter acesso às coisas na internet, pois não tinha condição financeira para comprar original ou até ficar assinando vários streamings… Então a pirataria já me salvou várias vezes nesse quesito até hoje”. Vale lembrar que uma série de filmes nacionais não aparece em catálogo de streaming algum.
“É bem raro de ir ao cinema, pois tenho que me locomover a outra cidade, como Belém, por exemplo”
Lu
O perfil de Lu no X tem em torno de 17 mil seguidores; no Instagram, 28 mil, enquanto no TikTok o número chega a 30 mil. As três páginas são dedicadas a edits de filmes nacionais e acabaram constituindo uma comunidade ansiosa por explorar esse universo. Os edits não apenas trazem longas-metragens do passado como também imprimem a visão de quem os edita a respeito das obras.
Uma outra perspectiva
Adriana Amaral é professora na Universidade Paulista (UNIP) e estuda consumo e fãs na cultura pop. Sobre produtos audiovisuais como o edit, ela comenta: “Eu acho que faz parte das práticas da cultura digital fazer esse tipo de material audiovisual, diferente do material tradicional, né? A gente sabe que o audiovisual cresceu bastante, essas outras formas, e isso tá muito dentro também da questão da viralização”.
Muitos desses edits ganham força a partir do momento em que uma nova geração entra em contato com certas produções em um contexto diferente daquele no qual foram concebidas. Eloy Vieira, pesquisador da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e do Laboratório de Pesquisa Cultura Pop, Comunicação e Tecnologias (CULTPOP), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, disserta acerca da viralização, dessa vez de uma telenovela brasileira: Hilda Furacão: “Ela teve um papel forte em relação a costumes ali nos anos 1990, e ela pode voltar agora com outra força, para mostrar como exemplo de figura feminina, de reapropriações”.
Edit da telenovela Hilda Furacão publicado no TikTok
Doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e colunista da Revista Fórum, Cesar Castanha comenta um dos possíveis motivos que torne intrigante às novas gerações o contato com a Fernanda Torres de “Eu sei que vou te amar”, visto que a atriz não tende a ser lembrada pelas atuações dramáticas: “Ela é uma atriz cômica, talvez a mais conhecida atriz cômica brasileira, e ela tem esse outro envolvimento também na carreira dela com o drama”.
Cineclubes em rede
Um cineclube é um espaço constituído de pessoas interessadas em assistir a filmes e a refletir acerca deles. Dessa forma, na grande parte das associações do tipo, o coletivo, o acesso democrático e o debate são aspectos importantes das sessões em que os filmes são exibidos.
Integrante do Cineclube Academia das Musas, Yasmin Borges comenta que um edit funciona como a ideia de debate proposta ao final das sessões: “Tu tá demonstrando aquilo que tu tirou da obra, interpretando ela e brincando com a imagem e com o som”. Yasmin ainda acrescenta: “Deu pra ver que esses conteúdos deram uma elevada na busca por filmes brasileiros e até de outros diretores talvez não tão reconhecidos no circuito comercial”.
Se a cineclubista estabelece uma relação entre os edits e os debates, Cesar Castanha traça um paralelo entre as páginas que produzem esse tipo de conteúdo e os próprios cineclubes:
“São comunidades em torno desses perfis, pessoas que acompanham e que têm uma cinefilia, que gostam de ver filmes e que gostam de conhecer filmes diferentes e que definem os filmes a que vão assistir a partir do que esses perfis estão colocando; funcionam quase como um cineclube em rede”
Cesar Castanha
As redes sociais e as exibições
Uma outra característica dos cineclubes é o processo de curadoria que compõe uma mostra e define as sessões. Os membros do Cineclube Academia das Musas editam, todos os anos, uma revista em que discutem os filmes assistidos durante aquele ciclo. O lançamento dessa revista tem ocorrido na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre, acompanhado da exibição de algumas dessas obras.
Em 2022, no lançamento da revista, foram exibidos curtas-metragens da diretora Cecelia Condit. Foi Manu Couto, na época responsável pela edição e diagramação da revista, quem fez a sugestão, a partir de um edit. Ainda que a produção de edits não fosse tão popular entre os amantes do cinema nacional, filmes de diretores mais alternativos já viralizavam na internet. “Eu conheci Cecelia Condit em 2020/2021, quando um curta dela, Possibly in Michigan, hitou por lá [nas redes sociais]. As pessoas dublavam as músicas. A produção audiovisual que tava sendo feita no TikTok me levou a outra produção audiovisual, feita nos anos 1980, lá nos Estados Unidos, gravado em VHS. Acho que essa é um pouco a magia das redes”, comenta Manu.
“Acabei gostando muito do trabalho dela [Cecelia Condit]. Quando me surgiu a oportunidade de ir fazer o evento da revista, eu pensei nela tanto por ela se encaixar num perfil que o Cineclube já apreciava, de cinema experimental, mais alternativo, ao mesmo tempo que ela também chamava outros públicos”
Manu Couto
Manu Couto já foi bolsista na Sala Redenção, cinema universitário da UFRGS, e costuma trabalhar com produções culturais. Sobre o trabalho, Manu disserta: “Ser uma pessoa cronicamente online faz todas as minhas produções e programações terem um pouco desse efeito das redes e do virtual. Gosto de pensar no que as pessoas estão falando e usar o cinema como forma de aprofundar aquilo”.
A sala de cinema enquanto espaço físico
Quem também pensa nas relações entre as redes sociais e a programação de uma sala de cinema é Daniela Mazzilli, diretora da Cinemateca Capitólio. Desde que o espaço centenário tem sido usado enquanto Cinemateca, há oito anos, uma série de filmes fora do circuito comercial vem fazendo parte das programações.
Apesar da recorrente exibição de filmes antigos, Daniela argumenta: “Nosso público é um monte de jovem. Em grande maioria, é um recorte de 19 a 25 anos”. Em função disso, ela destaca o uso do Instagram enquanto meio de comunicar as programações do espaço. “Depois a gente tem um público com mais idade, que vem para a programação por conta de outros veículos mais tradicionais, seja o jornal, sejam os anúncios na lateral do prédio”, acrescenta a diretora.
Sobre a viralização de edits e outras produções similares nas redes sociais, Daniela comenta: “Essa peça não foi produzida pelo realizador, pela produção ou pela equipe de marketing. Ela é orgânica, vem do público. Eu acho que, se a gente consegue chegar nesse lugar, é mágico o que acontece a partir daí com o público. Acontece um engajamento que não teria de outra forma”.
A diretora da Cinemateca relembra o caráter institucional do espaço e destaca a tentativa de romper um pouco com a seriedade, vendo em edits e memes nas redes sociais uma possibilidade para isso, traçando uma autocrítica: “Muitas vezes a gente não é tão permissivo assim de usar esses espaços para criar esse tipo de conteúdo. A gente tentou fazer um pouco isso com o Halloween, de a gente começar a pensar o espaço e a ocupação das redes de uma maneira diferente”.
Os comentários de Daniela destacam a potência que materiais produzidos por perfis nas redes sociais têm de ampliar o alcance e o reconhecimento de certos filmes. Sinalizam, também, um diálogo entre comunidades construídas, seja engajando nessas postagens, seja indo à sala de cinema – afinal, os edits podem tanto direcionar pessoas a certas exibições quanto serem produzidos a partir de uma sessão frequentada.