Publicado originalmente em Jornal da UFRGS por Ana Gonzalez. Para acessar, clique aqui.
Cultura | Família, amigos e estudiosos unem esforços para preservar o legado de um dos autores mais importantes e influentes do Rio Grande do Sul
*Foto: Jefferson Duarte
"Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais o essencial e verdadeiro."
Caio Fernando Abreu, em Ovelhas Negras (1995)
Caio Fernando Abreu personificava a intersecção entre vários proibidos. Escrevia sobre censura e autoritarismo quando a repressão da ditadura civil-militar brasileira era sufocante, remexia em temas tocantes às vivências da população LGBTQIA+ quando homens gays ainda levavam a culpa pela epidemia de HIV, encarou a iminência da morte em decorrência da Aids com placidez quando a doença ainda era popularmente considerada uma maldição divina em resposta à promiscuidade. Repetida e consistentemente, Caio fez e foi o oposto do que era esperado dele.
Impulsionada pelo amor e pela angústia, a obra resultante da subversão de Caio repercute ainda hoje, 28 anos após sua morte. Contista, romancista, poeta, jornalista e dramaturgo, Caio e sua obra sempre foram jovens — e permanecem assim. Todas as frentes da arte do escritor pegavam emprestados fragmentos de sua própria vida que, juntos, resultam num quebra-cabeças de uma vivência incansável e que traduz a realidade do seu existir em histórias que seguem atuais 30, 40, 50 anos após serem escritas, e das quais nenhum leitor sai ileso.
“Ele escreveu para os jovens, e jovens existem em qualquer época”, reflete Márcia de Abreu Jacinto, irmã do escritor, sobre a longevidade e relevância contínua da obra de Caio. As angústias, as ânsias e os medos descritos e vividos pelo autor reverberam ainda hoje nos jovens que, por acaso, esbarram em sua arte.
Para quem é Caio F.?
Em muitos casos, é preciso mesmo de uma manobra do acaso para encontrar a obra de Caio. Apesar de Morangos Mofados, seu trabalho mais célebre, já ter sido leitura obrigatória do vestibular da UFRGS e de figurar como um dos autores mais importantes da literatura contemporânea gaúcha, sua obra ainda é passada de jovem para jovem em sussurros ou descoberta por acidente em uma prateleira empoeirada da biblioteca.
Foi assim, inesperadamente, que o diretor de fotografia Bruno Polidoro se deparou com a literatura de Caio. Após assistir a uma encenação da peça O homem e a mancha, escrita por Caio e interpretada pelo ator Marcos Breda, ele descobriu, nas estantes de um sebo, um exemplar surrado de Morangos Mofados. Jovem, universitário, em plena turbulência da descoberta da vida e da sexualidade, Bruno encontrou na escrita do autor um espelho para enxergar melhor os próprios conflitos. “Eu lembro que eu li aquele livro e parecia que fazia todo sentido com o que eu estava sentindo e o que eu estava vivendo naquele momento”, lembra.
“Acho que isso é uma força muito grande na obra do Caio: parece que é uma carta que ele escreve pra gente”
Bruno Polidoro
E da mesma forma simultaneamente delicada e crua em que perpassa o amor, a inquietação e o medo, a obra de Caio também finca suas raízes no sexo, no desejo e no anseio por revolução — todos temas igualmente tocantes e viscerais para jovens de qualquer época. Censurados repetidas vezes pela ditadura cujas repressões obrigaram o autor a buscar refúgio na Europa nos anos 1970, os ideais repercutidos pelas palavras de Caio, no entanto, seguem sendo encarados com cautela por muitas frentes culturais e educacionais.
O historiador Rodrigo Neres, que entre 2009 e 2016 esteve à frente da Secretaria da Cultura de Santiago, cidade natal de Caio na região central do Rio Grande do Sul, conta que, nas aulas de literatura da escola na cidade, nunca estudou a obra do escritor. “Eu tive contato com a obra do Caio muito tardiamente, mesmo na biblioteca pública era difícil de encontrar”, explica. “Tinha aquela visão de ser uma leitura muito difícil ou de não ser apropriado para a nossa idade.”
Apesar de o autor nunca ter declarado sua orientação sexual publicamente, tendo rejeitado tanto o rótulo de homossexual quanto o de heterossexual, para Rodrigo, a homofobia e o imaginário relacionado à sexualidade de Caio desempenham um papel importante nos esforços de apagamento da memória do mais famoso escritor santiaguense. “As pessoas querem exaltar uma literatura com a visão do gaúcho macho, homem viril. Nisso, não sobra espaço pro Caio, porque o Caio não é o que eles gostam.”
Autêntica e incontrita, a obra que serviu para seu autor quase como um diário também é um retrato fidedigno de sua época e das angústias e problemáticas que a atravessam. Caio é a geração sobre a qual escreveu. “Por meio da literatura do Caio, dá pra entender um pouco mais dos anos 70, 80 e 90, das mazelas da sociedade dessa época e dos nossos conflitos internos”, reflete Lara Souto Santana, mestra em Letras e pesquisadora da obra do autor. “A importância dele está no fato de que ele falou sobre angústias e experiências humanas que vão além do seu tempo.”
A derrubada dos muros
Tamanha relevância e atemporalidade, entretanto, não se traduzem no que diz respeito à manutenção do legado do escritor pelo poder público e por meio de leis de incentivo à cultura. Além de ser pouco estudado no ensino básico mesmo em seu estado de origem, os esforços de familiares, amigos e admiradores para manter Caio vivo através da valorização de sua arte esbarram no desinteresse dos órgãos públicos responsáveis pela preservação da memória do autor.
Em 18 de julho de 2022, a casa onde Caio passou os últimos anos de sua vida, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, foi demolida às pressas em meio a protestos da sociedade civil e de entidades culturais, que reivindicavam o tombamento do imóvel há anos. A liminar da justiça que foi ajuizada no início daquela tarde para suspender temporariamente a demolição não chegou a tempo de parar as máquinas. Em questão de horas, toda a história abrigada pelas paredes do imóvel de dois andares no número 12 da rua Oscar Bittencourt foi levada ao chão e reduzida a escombros por retroescavadeiras. Hoje, quem passa por aquele ponto da rua vê apenas uma muralha de tapumes de construção — a memória de Caio foi removida junto dos entulhos.
Para a pesquisadora e professora do Instituto de Letras da UFRGS Márcia Ivana de Lima e Silva, a destruição da casa representa apenas um sintoma de um adoecimento muito maior, que tem raízes políticas e sociais. “O que aconteceu com a casa do Caio está acontecendo com várias casas em Porto Alegre. Casas com arquitetura das décadas de 50, 60 e 70 estão sumindo, porque estão demolindo em prol de uma especulação imobiliária”, reflete. Ela aponta, ainda, que o problema não é algo que ocorre exclusivamente com Caio.
“O Brasil não tem uma tradição de preservação de memória, não há um planejamento estatal estruturado para isso”
Marcia Ivana de Lima e Silva
Em Última carta para além dos muros, crônica publicada pelo jornal Estado de S. Paulo em 1994, parte da série de textos em que Caio revelou ser soropositivo, o autor escreveu uma pequena carta de amor dedicada à casa que lhe serviu de morada durante o final de sua vida: “Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto.”
Para sempre Caio F.
Indo de encontro ao cenário de apagamento, família, amigos e fãs de Caio seguem mobilizados pela continuidade do legado construído pelo autor. A Associação de Amigos do Caio Fernando Abreu (AACF) batalha desde 2010 em diferentes frentes para manter a memória do autor viva e presente através de exposições, saraus e outras manifestações culturais. O projeto Caio na Memória Viva, que realizou o festival Caio Entre Nós, foi financiado por meio de um edital do Sistema Pró-Cultura do governo estadual do Rio Grande do Sul, que possibilitou sua execução entre outubro e novembro de 2022. Com a chegada da data de validade do apoio financeiro, no entanto, o projeto teve que ser parado devido à falta de verba.
Atual presidente da AACF, Rodrigo conta que a falta de auxílio monetário dificulta a continuidade ou mesmo a execução de muitas propostas, que acabam nunca saindo do papel. “Muitos projetos não conseguem se manter por muito tempo, não só pela falta de recursos financeiros, mas também recursos humanos, porque todas as pessoas na associação são voluntárias”, explica.
Lara, que também é membro da associação e já contribuiu na curadoria de exposições sobre a obra de Caio, destaca a habilidade do autor de cultivar uma comunidade como a AACF através de sua arte, mesmo tanto tempo após sua morte.
“Quem conheceu o Caio fala que ele tinha esse poder de conectar as pessoas, de ser ponte. E eu creio que, mesmo não estando mais aqui, esse poder continua existindo, e quem proporciona tudo isso é a literatura dele, que também é ele, de alguma forma”
Lara Souto Santana
Rodrigo também descreve os projetos que implementou enquanto secretário de Cultura em Santiago para a preservação do legado do autor: inaugurado em 2016, o Memorial da Poesia Contemporânea, que conta com exposições permanentes voltadas à obra de Cácio Machado, Ney Aramy Dornelles e de Caio, tem uma ala imersiva voltada apenas aos trabalhos do autor. Além disso, o busto do escritor ocupa a principal esquina da Rua dos Poetas, no centro da cidade, que homenageia os mais célebres artistas santiaguenses. “A gente lutou muito pra manter o Caio em foco”, conta.
Novas edições de coletâneas dos contos, poemas e correspondências de Caio também ajudam a manter suas palavras e ideias circulando e mais vivas do que nunca, assim como comunidades da internet dedicadas a compartilhar os melhores trechos extraídos de sua obra. Márcia, irmã de Caio, no entanto, alerta para citações falsamente atribuídas ao autor. “Sempre recomendamos às pessoas que citem a obra e a editora em que foi publicada”, explica.
Outros projetos também visam resgatar a memória do autor em diferentes mídias. O documentário Sobre sete ondas verdes espumantes, dirigido por Bruno Polidoro em parceria com Cacá Nazario, remonta a vida e a obra de Caio por meio de imagens das várias cidades que, em algum momento, o escritor chamou de casa — do começo da vida em Santiago ao início e decolagem da carreira jornalística e artística em Porto Alegre e São Paulo e o exílio em Amsterdã, com várias paradas no meio do caminho. Tudo para retratar a inquietude que nunca o deixou ficar parado no mesmo lugar por muito tempo e que também está presente em seus escritos. “A gente achou que o Caio sempre colocou muito da vida dele nas obras, então nós queríamos que ele fosse o narrador do próprio documentário”, conta Bruno. “Usamos a obra dele como um mapa.”
Por tudo isso, apesar das forças contrárias, a maior virtude de Caio enquanto artista acaba sendo o que o mantém vivo entre novos e velhos admiradores: sua capacidade inigualável de pintar, letra por letra, frase por frase, um retrato autêntico de sentimentos visceralmente humanos, mesmo que contraditórios, reprimíveis ou absurdos — ainda, e talvez exatamente por tudo isso, visceralmente humanos.