Publicado originalmente em Jornal da UFRGS. Para acessar, clique aqui.
Educação | Mesmo com problemas como mão de obra escassa e falta de financiamento público, bibliotecas comunitárias buscam democratizar e descentralizar o acesso ao livro e à cultura
*Foto: Flávio Dutra/JU
Em linhas gerais, o curso de Biblioteconomia tem por objetivo a capacitação em organizar, classificar, catalogar e divulgar acervos de bibliotecas, unidades, sistemas e serviços de informação e documentação, bancos e bases de dados. Na graduação, os estudantes aprendem teorias administrativas sobre o planejamento desses acervos – mas normalmente essas teorias são direcionadas a ambientes com orçamento próprio, como bibliotecas universitárias ou especializadas. Há bibliotecas, porém, que não possuem orçamento ou financiamento e, por isso, precisam recorrer a editais de fomento ou à ajuda da comunidade para se manter, como é o caso das bibliotecas comunitárias.
A partir desse contexto, uma atividade executada por alunos do curso de Biblioteconomia da UFRGS buscou aliar teoria e prática, auxiliando no planejamento da Beabah!, uma rede de bibliotecas comunitárias. Para Luis Fernando Massoni, professor substituto do departamento de Ciências da Informação e responsável pela disciplina “Administração e Planejamento Aplicados às Ciências da Informação”, a iniciativa trouxe uma nova forma de aplicar o conhecimento teórico em uma parceria com bibliotecas comunitárias. A atividade consistia em, após se aprofundarem no conteúdo teórico a respeito de Administração, os alunos obterem uma nova perspectiva sobre a gerência real de bibliotecas, de forma que fosse possível uma troca de conhecimentos entre os discentes e as bibliotecas comunitárias.
“Tive a ideia em que nessa disciplina os alunos aprendessem em dois momentos: primeiro, a Teoria Geral da Administração: uma série de teorias históricas a fim de formar um campo, e depois aprendessem tópicos de planejamento, ou seja, como planejar uma biblioteca a partir de sua missão, valores, objetivos, metas, entre outros tópicos que envolvem um planejamento”, explica.
Com objetivo de conciliar os conhecimentos teóricos com a prática real, Luis Fernando entrou em contato com a Beabah!, rede de Bibliotecas Comunitárias do Rio Grande do Sul fundada em 2008 com propósito de democratizar e descentralizar do acesso ao livro, à cultura e à educação. “Foi uma rede superinteressada em se articular com o projeto e fazer uma transformação nas suas bibliotecas”, aponta.
Segundo ele, o objetivo principal era a cooperação em estabelecer uma troca de conhecimento entre as bibliotecas comunitárias com os estudantes, sem que houvesse qualquer forma de imposição de conhecimento teórico.
“A universidade não vai levar o seu conhecimento à sociedade. Eles vão chegar lá e aprender com eles qual é o contexto local, e a partir disso vão elaborar, com os gestores locais, o planejamento”
Luis Fernando Massoni
Em um primeiro contato, os membros da Rede apresentaram aos alunos como funcionava a gestão das bibliotecas e explicaram que, diferente do que se estuda nas teorias administrativas pensadas para bibliotecas públicas, há uma outra perspectiva na Beabah!: não há uma hierarquia, e as decisões são realizadas coletivamente, tornando, assim, a gestão mais colaborativa.
Por conta da mão de obra escassa e da falta de financiamento público, as bibliotecas comunitárias não possuem seu próprio planejamento. Contam com a ajuda da própria comunidade para gerir os espaços, contribuir como mediadores de leitura, entre outras tarefas. Com isso em mente, Luis considerou os fatores para que os alunos pudessem realizar um planejamento adequado:
“Esse foi um cuidado que eu tive desde o início porque pensei: eles não vão ter infraestrutura, só que muita coisa não precisa de dinheiro. E eu queria justamente como professor inspirar muito os estudantes a terem a criatividade”, explica. “Quando se faz um planejamento com uma biblioteca universitária, ou especializada, ou biblioteca de tribunal (jurídica), a gente faz um planejamento com um orçamento próprio razoável para fazer algumas coisas. Uma biblioteca comunitária não tem orçamento, eles precisam ir atrás de edital ou do apoio da comunidade”, complementa.
A partir de missão, visão, valores e organograma das bibliotecas, alunos utilizaram a criatividade para estabelecer medidas de planejamento sem que houvesse um orçamento previsto. Enquanto algumas receberam novos logotipos, outras tiveram um CNPJ criado com o objetivo de concorrer a editais de fomento, passaram a ter uma chave PIX e e-mail, assim como também foi sugerido o planejamento de uma horta comunitária. Os planos foram desenvolvidos considerando o contexto individual de cada biblioteca, levando em conta suas limitações e possibilidades. Em seguida, cada biblioteca pôde ajustar o necessário para tornar os planos viáveis.
Funcionando como uma forma de resistência cultural, as bibliotecas comunitárias têm sua importância ao atingir espaços e lugares onde bibliotecas convencionais não chegam. Com uma inserção local através de um enraizamento social, constroem uma relação com a comunidade em que há cooperação entre pessoas locais para o funcionamento. As bibliotecas comunitárias são importantes porque oferecem acesso à informação, conhecimento e entretenimento para todos, independentemente da renda ou da educação. Elas também promovem a literacia, a coesão social e a inclusão digital, e fornecem um espaço seguro e acolhedor para a comunidade. São centros de aprendizado, criatividade e desenvolvimento pessoal, e desempenham um papel importante na preservação da cultura e da história local.
Inaúma Carvalho da Silva, mediadora de leitura na Biblioteca Comunitária BiblioFlor, na Vila Floresta, em Porto Alegre, se surpreendeu com o resultado. “Tivemos uma tarde de conversa com os alunos do grupo que iriam estudar nosso espaço. Foi uma conversa respondendo a algumas perguntas, explicando o funcionamento da Biblioteca, sua localização, história e trabalho. Foi uma grata surpresa, porque longe do meu pensamento de ser um exercício teórico, os alunos e alunas realizaram um exame superdetalhado, mas colocando de forma muito clara elementos do estudo da Administração”, conta.
Os alunos também viram a experiência como positiva. Para Matheus da Costa, a atividade trouxe uma nova perspectiva ao realizar o primeiro contato com bibliotecas comunitárias. “Pude ver de perto o papel desses profissionais quando se trata de um órgão independente. O papel das bibliotecas, além de toda a propagação de informação, é entrar em contato direto com a comunidade existente e estabelecer um vínculo forte, conectando e criando laços com os habitantes.”
Para a discente Carla Pastl, a proposta de aplicar na prática os conhecimentos resultou em um melhor aproveitamento da disciplina. “Deu trabalho? Deu, mas foi um trabalho gostoso de se fazer, e a gente aprendeu muito mais do que se ficasse com os nomes das pessoas com as escolas clássicas da administração, estruturalista, então foi sensacional”, conta.
A aluna também destacou a importância de auxiliar esses espaços, que passam por dificuldades por falta de financiamento. “Ajudar as bibliotecas comunitárias, já que elas passam por bastante dificuldade, é uma coisa que não tem apoio de governo, prefeitura, é bem complicado.”
Ao final do processo, com o encerramento da disciplina, houve a apresentação e entrega dos planejamentos ao professor e à rede Beabah!, em que os alunos apontam possíveis ações e caminhos. Agora, os responsáveis por cada biblioteca podem utilizar o planejamento conforme a realidade de cada instituição. “Muitas vezes, com alta demanda de trabalho, os responsáveis pelas bibliotecas acabam não parando para pensar sobre as próprias ações. O planejamento ajuda nesse sentido, por ser o resultado de reflexão sobre a prática”, conclui Luis Fernando.