Publicado originalmente em Instituto Palavra Aberta. Para acessar, clique aqui.
Junho de 2022, Las Colonias de Hidalgo, México. Um homem é assassinado após boatos no WhatsApp e nas redes sociais afirmarem que forasteiros estavam sequestrando crianças para traficarem seus órgãos. Uma multidão, enfurecida por essas falsas informações, agrediu, amarrou e incendiou o corpo de Picazo González enquanto ele ainda estava vivo.
O que o tornou alvo foi a placa de seu carro, que era de outra cidade. Bastou isso para que González fosse visto como um possível criminoso. No entanto, ele era advogado, trabalhou como assessor de uma deputada federal e havia acabado de terminar um curso de mestrado. Tinha 31 anos quando foi linchado.
O caso pode parecer chocante, mas não é isolado. Informações falsas como essa já foram utilizadas para gerar terror e violência em outras localidades. Em 2019, em Comodoro Rivadavia, Argentina, um grupo de cerca de cinquenta pessoas espancou um homem e o jogou na fogueira. O motivo: ele era pai de um rapaz acusado de estuprar um menino de 12 anos que voltava da escola.
Embora a vítima nunca tenha confirmado que o agressor fosse ele, o acusado conseguiu fugir, e o grupo atacou quem estava na casa. Tudo começou por meio de boatos nas redes sociais, que tomaram força e inflamaram os moradores da região. Dois policiais presenciaram o linchamento do pai do jovem mas, segundo o chefe da vigilância local, os agentes “nada puderam fazer para impedir a fúria da multidão”.
No Brasil, o uso irresponsável das mídias sociais também vitimou Fabiane Maria de Jesus, que ficou conhecida como a “Bruxa do Guarujá”, no litoral de São Paulo. Em 2014, ela foi confundida com uma suposta sequestradora de crianças, cujo retrato falado circulava pelas redes. Após ser vista oferecendo uma fruta a uma criança na rua, a vizinhança acreditou que Fabiane era a tal criminosa — que nunca existiu, como concluiu uma investigação posterior. Cerca de 100 pessoas agrediram-na, e mais de mil presenciaram os golpes. Ela foi arrastada pelas ruas do bairro, teve seu rosto desfigurado, chegou a ser golpeada com uma bicicleta e, dois dias após a internação em um hospital da região, faleceu.
O que esses casos têm em comum? Todas as vítimas sofreram linchamento coletivo após mentiras serem espalhadas em plataformas digitais. Em um mundo em que 65 bilhões de mensagens são enviadas diariamente somente pelo WhatsApp — número divulgado pela própria empresa —, o que pode estar por trás de tudo isso?
A resposta, por mais complexa que seja, envolve diversas questões, mas fica latente a falta de educação midiática e digital para que as pessoas tenham conhecimentos mínimos para verificar a confiabilidade de informações, ainda mais quando se trata de boatos aterrorizantes, que envolvem crimes hediondos com crianças e instauram facilmente o pânico em quem os recebe.
Saber diferenciar o que é uma informação falsa de uma verdadeira é uma tarefa que desafia até especialistas no assunto, como jornalistas e comunicadores, profissionais em tese capacitados para lidar com a informação. Embora desafiador, é cada dia importante e tem como ser feito. É preciso investimento em políticas públicas que deem conta desse contexto, considerando a profunda desigualdade socioeconômica de territórios como o brasileiro.
Mas sabemos que a ausência de iniciativas de educação midiática e digital por parte do poder público não é o único fator que leva a assassinatos motivados por desinformação. Somando isso a contextos de altas taxas de violência e crime e à falta de confiança da população nas instituições de segurança, temos uma combinação extremamente perigosa, em que se anulam quaisquer possibilidades de defesa física e jurídica das vítimas.
De acordo com um levantamento realizado pelo sociólogo José de Souza Martins, autor do livro “Linchamentos”, em média, uma pessoa por dia é vítima de linchamento no Brasil. Tal ataque pode ocorrer por diversos motivos, desde uma acusação grave como um estupro, até bobagens como espirrar lama no carro de alguém. Se pensarmos que, em 2021, quase 83% dos brasileiros temiam ser vítimas de um crime violento e que o País é o terceiro menos pacífico na América do Sul, segundo dados do Global Peace Index, temos um cenário delicado e desafiador.
Vale destacar que, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre os fatores de risco para a violência coletiva estão a desigualdade no acesso ao poder, a crise democrática, a desigualdade na distribuição de recursos, o acirramento do fanatismo religioso, étnico ou nacional e a fácil disponibilidade de armamentos. Infelizmente, encontramos essas condições no Brasil e em outros países latinos.
Na equação em que somamos o baixo letramento midiático digital, o contexto de vulnerabilidade social e a violência urbana, o resultado só pode ser trágico. Mas, conforme dito, não há soluções simples para conjunturas complexas. A habilidade de ler, interpretar e interagir plenamente com aquilo que chega às nossas mãos é só um dos passos para que crimes motivados por mentiras, como os que vitimaram Picazo, o homem argentino e Fabiane, não se tornem ainda mais corriqueiros.
*Elisa Tobias é educomunicadora e assistente de comunicação do Instituto Palavra Aberta